Acordo Israel-Hamas: Por que o Catar se firmou como um mediador na guerra em Gaza (e no Oriente Médio)

Monarquia no Golfo Pérsico exerceu papel central em crises no passado, mas ligação do reino com grupos extremistas põe imagem de apaziguador em xeque


Chanceler do Catar, Mohammed bin Abdulrahman bin Jassim al-Thani (D), participa de entrevista coletiva com a chanceler da França,Catherine Colonna Karim Jaafar / AFP

A aprovação do acordo para a libertação um grupo de reféns israelenses mantidos pelo Hamas foi um dos momentos mais importantes desde o início da guerra em Gaza — além de garantir a segurança de mulheres e crianças capturadas, e de obter uma aguardada pausa nos combates, a iniciativa firma o papel do Catar como um dos mediadores mais influentes no Oriente Médio. Um título construído ao longo de décadas, à base de muito dinheiro, e que também guarda sua parcela de críticas.

O Catar, que conquistou sua independência em 1971, dois anos antes da Guerra do Yom Kippur, não é um elemento estranho à questão palestina. Em 2006, meses depois das eleições que na prática dividiram os Territórios Palestinos entre a Cisjordânia, controlada pelo Fatah, de Mahmoud Abbas, e a Faixa de Gaza, onde o Hamas foi dominante, os catarianos se apresentaram como mediadores, mas o esforço fracassou. Seis anos depois, Hamas e Fatah firmaram um compromisso sobre um governo de união nacional e a realização de novas eleições, novamente mediado por Doha e que jamais saiu do papel.

Depois do "cisma" palestino, o Catar manteve laços com o Hamas, apoiando o grupo depois do sangrento golpe de 2007 na Faixa de Gaza. Foram gastos milhões de dólares em projetos de infraestrutura no território, além do pagamento de funcionários públicos e lideranças do grupo. Desde 2012, lideranças do Hamas moram em Doha, e estabeleceram ali um escritório político. Após os ataques de 7 de outubro, o Catar não condenou os atos do Hamas, e tem feito críticas públicas ao governo israelense, incluindo acusações de genocídio.

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O que explica a escolha do Catar como o mediador no caso dos reféns israelenses? A primeira resposta é simples: dinheiro e influência. Ao longo dos últimos anos, Doha se consolidou como um dos maiores produtores de gás natural do planeta, e cultivou amizades com países da região, como o Irã, e potências globais, como os EUA: a maior base militar americana no Oriente Médio fica em al-Udeid, a cerca de 30 km da capital.

Como dizem diplomatas, o país quer ser reconhecido como uma espécie de Suíça do Oriente Médio, ou seja, imparcial e capaz de conciliar diferenças — em 2008, a atuação do Catar foi determinante para um acordo entre as facções políticas rivais do Líbano, evitando uma possível guerra civil. Indo além do Golfo Pérsico e da Costa do Mediterrâneo, o país viabilizou as conversas entre EUA e Talibã, em 2020,embora o desfecho tenha sido negativo, com a desastrosa saída americana do Afeganistão em 2021.

A segunda é a "expertise" sobre a libertação de reféns. Em 2004, Georges Malbrunot e Christian Chesnot, dois jornalistas franceses, foram sequestrados por uma milícia extremista perto de Najaf, em meio ao caos pós-invasão do Iraque pelos EUA. Os dois foram libertados quatro meses depois, depois de um acordo mediado pelo Catar, que teria envolvido milhões de dólares.

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Em 2022, Mark Frerichs, um prestador de serviços americano e capturado pela Rede Haqqani, uma milícia afegã ligada à inteligência paquistanesa, foi trocado por um traficante de drogas, Haji Bashir Noorzai, depois de dois anos no cativeiro. Em setembro, cinco cidadãos americanos presos no Irã fossem trocados por cinco iranianos presos nos EUA, que também descongelaram US$ 6 bilhões em fundos de Teerã no exterior. Em todos houve a mediação do Catar, sem contar dezenas de sequestros que tiveram menos publicidade.

No caso do Hamas, contou a favor do Catar a relação com o grupo (além do aval dos EUA). Mas a "vantagem" é criticada por políticos e especialistas.

— A comunidade internacional deveria exigir que o Catar, que financia o Hamas, consiga a imediata libertação dos reféns mantidos pelos terroristas — disse o chanceler israelense, Eli Cohen, em reunião do Conselho de Segurança da ONU. Outras autoridades israelenses e americanas acreditam que o Catar poderia fazer conseguir, de maneira imediata, que todos reféns sejam liberados.

Convidados polêmicos

A presença de escritórios de grupos considerados terroristas também é apontada como um ponto negativo em situações como a guerra em Gaza. Além do Hamas, o Talibã tem uma representação no Catar desde 2013.

— Para mim, o Catar é um Estado que apoia o terrorismo e que precisa ser pressionado — disse, em um seminário recente, Gershon Baskin, que negociou a libertação de vários reféns do Hamas, citado pelo Guardian. — Os americanos precisam dizer ao Catar: se você não forçar o Hamas a libertar reféns, vamos retirar o Hamas do Catar.

Moussa Abu Marzouk, um dos líderes políticos do Hamas, que hoje vive no Catar, em foto de 2008 — Foto: AFP

Há outro elemento que influenciou na contundência com a qual o Catar entrou nas negociações: a concorrência de outros candidatos a protagonistas na crise. Um deles é a Turquia, que mantém seus laços com o Hamas e abriga alguns integrantes do grupo em seu território — o país se apresentou como um possível negociador, mas foi gradualmente afastado.

O Egito também foi apontado como capaz de quebrar o impasse, mas hoje está diante de uma crise humanitária na fronteira com Gaza, e diante de políticos israelenses que defendem a transferência dos palestinos para a Península do Sinai. Um terceiro ator, a Arábia Saudita, perdeu força e representatividade entre os palestinos (e muitos árabes) depois de sua iniciativa para normalizar os laços com Israel, um processo hoje congelado.

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