Teatro
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Por O GLOBO

Barbara não tinha papas na língua. "A crítica condescendente é uma má crítica", dizia. Não à toa, a sua chegada ao teatro provocava tensão nos bastidores. Em algumas ocasiões, a relação entre ela e os criadores esgarçou, transformando-se em polêmicas públicas, algumas mais uma troca educada de ideias, como a que manteve com o diretor Aderbal Freire-Filho, outras virulentas – Gerald Thomas desejou a morte da crítica por pneumonia, num confronto travado fora das páginas do jornal. Veja aqui três contendas com encenadores e a crítica que fez a atriz Marília Pêra parar de falar com Barbara. (Nani Rubin)

Gerald Thomas

  1. O crepúsculo de um diretor

Ulysses Cruz

  1. Diretor impede que crítica do GLOBO veja estreia de peça: Ulysses Cruz ataca Barbara Heliodora em 'A dama do mar'
  2. Editorial do GLOBO: O direito de não gostar

Aderbal Freire-Filho

  1. Shakespeare cai ferido no Leblon
  2. Loucura em prosa e verso: resposta de Aderbal Freire-Filho à crítica de Barbara Heliodora
  3. Prosa e verso: resposta de Barbara ao artigo de Aderbal Freire-Filho

Marília Pêra

  1. Peça revive teatro brasileiro barato e apelativo de um século atrás. A saga da sra. Café: engano total começa pelo texto de Heloisa Périssé

Gerald Thomas

Provocada pelo descontentamento com as críticas publicadas no Segundo Caderno, a polêmica com Gerald não se deu nas páginas do GLOBO. Em entrevista à revista "Isto É", Barbara disse sobre o diretor: "Gerald Thomas desejou minha morte por pneumonia e eu sobrevivi a várias, ele se ajoelhou e pediu perdão durante um espetáculo no Paraná. Mas isso é irrelevante, como é irrelevante falar do trabalho dele".

Em resposta, o diretor de "Nowhere man", "The flash and crash days" e "Um circo de rins e fígado" publicou em seu blog, no dia 3/1/2005: "Eu proibi a sua entrada nas minhas estreias. Isso durou algum tempo. Sim, e esperava que a próxima pneumonia a derrubasse de vez. De fato, pedi desculpas. Como somos todos seres explosivos e, ao mesmo tempo uns 'doces rebeldes' nesse meio teatral, all was forgiven."

1. O crepúsculo de um diretor (publicado em 12/11/1990)

"M.O.R.T.E.", o espetáculo de Gerald Thomas que entrou em cartaz por apenas 12 récitas no Teatro Nelson Rodrigues, é uma penosa constatação do que pode acontecer quando um artista cede aos chamados de seu violon d'Ingres; o talento e o brilho do diretor, que explodiram no panorama cultural do Rio de Janeiro em "Quatro vezes Beckett", estão sendo implacavelmente imolados em favor da insistência de Thomas em ser também autor. "M.O.R.T.E." é um espetáculo vazio e entediante, cujas exaustivas repetições não chegam a ser justificadas pelas prolixas proclamações pseudo-filosóficas do realizador. A triste conclusão a que se pode chegar com a montagem é a (já conhecida) de que a citação não substitui a criatividade, pois a impressão deixada pelo texto é a de que seu autor está apenas regorgitando uma quantidade excessiva de leituras nem sempre bem digeridas, pois não resultaram no aparecimento de alguma visão individualizada. Constituído apenas por uma insossa e repetitiva colcha de retalhos de citações, o texto ora encenado só serve para demonstrar que Gerald Thomas não conseguiu "colesterizar" suas leituras (termo com poucas probabilidades de sobrevida, virtual única contribuição pessoal do autor), pois se compraz em citá-las tautologicamente, fora de contexto, seja em tom que pretende sugerir recônditos novos significados (não existentes), seja com empobrecimentos que beiram a vulgaridade.

A forma do espetáculo, com uma série de quadros vagamente conexos que jamais se enriquecem mutuamente, mas contêm incontáveis repetições que nem por isso levam o material a adquirir maior significado oriundo do acúmulo; além das onipresentes citações favoritas temos aqui, principalmente, citações que formam uma espécie de retrospectiva do próprio trabalho de Gerald Thomas. Não contente com isso, estas últimas citações são repetidas várias vezes dentro da própria encenação, causando inevitavelmente a impressão de falta de novas ideias e, pior do que tudo, de empobrecimento do trabalho de direção, no qual Thomas já se mostrou tão brilhante.

Nada em "M.O.R.T.E." alcança o nível mais satisfatório dos espetáculos anteriores: nem mesmo a cenografia de Daniela Thomas parece inspirada, talvez realmente por não haver no projeto nada de inspirador, e embora a ponte que atravessa o alto do quadro cênico seja um elemento forte, detalhes como as frestas que servem de entradas e saídas acabam por parecer tão artificiais, maquinadas, em ingrata busca de "algo novo", quanto o texto. E sem dúvida os figurinos são os mais desapontadores que ela já produziu, misturando o déjà vu com o apenas quase repetitivo. E do mesmo grau de empobrecimento é, lamentavelmente, a iluminação em outras ocasiões um dos pontos altos do trabalho de Gerald Thomas: um arbitrário acende/apaga jamais "ilumina" interiormente a ação.

Afirmou Gerald Thomas, em suas costumeiras muitas declarações, que agora está finalmente preocupado com o público, mas a não ser por um par de tímidas tentativas de fazer piada (com a incompetência do "intelectual" que se rebaixa até o "vulgo"), "M.O.R.T.E." parece passar bem menos para a plateia do que seus trabalhos anteriores, pois depois de algumas tentativas iniciais de mostrar reação, esta caiu em desânimo e sonolência perceptíveis. Parte disso, é claro, vem do fato de um "espetáculo Gerald Thomas" já não constituir novidade e, por isso mesmo, causar menor impacto, menos ainda este, no qual a capacidade do diretor se vê tão reduzida, com marcas rotineiras e de medíocre valor plástico.

O elenco da Companhia de Ópera Seca já é conhecido e atua em sua forma habitual de obediente execução da artificial interpretação determinada por Gerald Thomas; com a repetição, é claro, ele se torna bem menos eficaz e as limitações de seus componentes vão ficando cada vez mais aparentes. Bete Coelho, Luiz Damasceno, Magali Biff, Malu Pessin, Mario Cesar Camargo, Ludoval Campos, Joaquim Goulart, Kiki Duarte, Cacá Ribeiro, Ligia Feliciano e Marcelo Lopes compõem o elenco remota e confusamente inspirado em "Hamlet", e procuram fazer crer (embora desta vez também eles pareçam menos convencidos) que estão engajados em alguma coisa muito importante. Bete Coelho, o ator favorito de Gerald Thomas, faz grande esforço para interpretar Você (um Hamlet não assumido) do texto, mas é muitas vezes incompreensível e não chega a ser convincente. Não há em todo o espetáculo, na verdade, uma única atuação que se destaque por criatividade ou qualidade, e é constrangedor ver uma atriz como Giulia Gam aceitar, a título de participação especial, apenas entrar em cena no final, como parte do conjunto de percussão "citado" de "Mato Grosso".

O espetáculo se arrasta e é frequentemente interrompido pela voz de Gerald Thomas pelo sistema de som, fazendo presunçosas e vazias dissertações magisteriais sobre tudo/nada, sempre com a preocupação de afirmar que o que faz é muito significativo. Infelizmente sua postura é deslavadamente ditatorial, mas não é chamar todos os que possam não concordar com ele de imbecis que vai resolver a pobreza e as deficiências desta "M.O.R.T.E.".

Ulysses Cruz

1. Diretor impede que crítica do GLOBO veja estreia de peça: Ulysses Cruz ataca Barbara Heliodora em 'A dama do mar' (publicado em 19/10/1996)

O diretor Ulysses Cruz impediu, na noite de ontem, que a crítica de teatro do GLOBO, Barbara He- liodora, assistisse à estreia da peça "A dama do mar", de Henrik Ibsen, que está sendo encenada num palco montado no píer da Praça Mauá, no Centro. Antes que o público começasse a formar fila para entrar, por volta 20h, o diretor fol visto prometendo a um de seus assistentes, em frente à bilheteria, que sería capaz de bater na crítica se ela aparecesse. Segundo integrantes da produção, o diretor vinha repetindo a ameaça à crítica do GLOBO desde os ensaios.

Por volta das 20h45m, assim que Barbara Heliodora chegou, acompanhada de um amigo, Ulysses Cruz a abordou de forma agressiva:

"Há 16 anos que eu a convido para os meus espetáculos e a minha mesa e você não vem. O que a senhora está fazendo aqui? A senhora detesta os meus espetáculos!", afirmou ele.

Em seguida, o diretor disse que queria que a crítica fosse embora, levando-a a deixar o lugar.

Vários convidados da estreia presenciaram a cena. A peça está sendo apresentada numa estrutu ra montada à beira do mar e, na noite de ontem, entre os convidados, estavam artistas como Carolina Dieckman, Marcelo Serrado, Tonia Carrero, Paulo José, Zezé Polessa, Janaina Diniz, Maria Padilha, Camila Pitanga e o sociólogo Rubem César Fernandes. Falando em nome da produção, a assessora de Imprensa Angela de Almeida declarou que a atitude do diretor representava uma posição pessoal, contrária ao pensamento do restante do elenco e da equipe.

NOTA DA REDAÇÃO: A crítica da peça "A dama do mar será publicada no GLOBO assim que esteja garantida a segurança de Barbara Heliodora.

2. Editorial do GLOBO: O direito de não gostar (publicado em 23/10/1996)

A crítica de espetáculos não é apenas um serviço que os meios de comunicação de massa oferecem - há séculos e em todos os países civilizados - a seus leitores.

Trata-se também de um exercício de democracia. O crítico exerce o direito de criticar, o leitor decide se faz dele o seu guia, ou se o ignora. Ao artista está reservada a prerrogativa de não gostar. Merece, inclusive, abrigo para o seu protesto - sempre que o mantiver nos mesmos termos da opinião negativa que o atingiu.

Só não existe o direito de calar o crítico. O artista que o tenta comete uma forma de suicídio; agride a liberdade indispensável ao seu próprio processo de criação. Foi precisamente o que fez o diretor que impediu a entrada da crítica Barbara Heliodora, do GLOBO, em seu teatro.

Seu gesto não torno a peça melhor ou pior. e cada um avaliará como quiser os índices de vaidade e insegurança que ele revela.

O GLOBO mantém sua diretriz: toda manifestação artística merece divulgação à altura de seu potencial e nenhuma está imune à apreciação no nível de sua qualidade.

Aderbal Freire-Filho

1. Shakespeare cai ferido no Leblon (publicado em 15/3/2009)

O "Hamlet" dirigido por Aderbal Freire-Filho não traz nada de novo ou desbravador e, a não ser por dois aspectos, seria um espetáculo perfeitamente tradicional. O primeiro é o corte radical de todo o lado político da peça, que rouba a Hamlet a oportunidade de dar seu voto a Fortimbrás, parte do desejo do príncipe de repor o reino nos eixos, pelo que, afinal, ele deu sua vida. O segundo afeta texto e interpretação: no original, a suposta loucura de Hamlet é claramente identificada pelo autor, pois, quando "louco", Hamlet fala em prosa, e, quando está em sua condição normal, em verso. É possível que a confusão tenha nascido da opção feita pelos tradutores de só usar prosa. Seja por isso ou não, o fato é que o príncipe assume o comportamento de "loucura" na peça inteira (a partir do momento em que a sugere). Com isso desaparece toda uma possibilidade de serenidade e reflexão que prejudica muito a interpretação do protagonista da obra.

A encenação tem um cenário interessante de Fernando Mello da Costa e Rostand de Albuquerque, que sugere cena e bastidores, com uma imensa tela onde vários momentos da ação são projetados, sem maior proveito para a compreensão do texto.

Os figurinos de Marcelo Pies são fraquíssimos, os melhores sendo os que ficam em trajes simples e contemporâneos. É boa a luz de Maneco Quinderé e interessante a música de Rodrigo Amarante.

Crítica de Barbara Heliodora à montagem de Hamlet dirigida por Aderbal Freire-Filho e com Wagner Moura no papel-título — Foto: Acervo/O GLOBO
Crítica de Barbara Heliodora à montagem de Hamlet dirigida por Aderbal Freire-Filho e com Wagner Moura no papel-título — Foto: Acervo/O GLOBO

A direção de Aderbal é um tanto confusa, não dá para que se reconheça algum foco definido, parecendo muitas vezes que ele simplesmente deixou cada um fazer o que quisesse. A momento algum o pensamento do texto é explorado, pois todos gritam tanto que não é possível alcançar qualquer intenção ou sutileza.

A interpretação do elenco é toda ela prejudicada, de início, por uma gritaria sem fim, que parece sempre ser usada, em nossos palcos, como substituto da emoção e da projeção da voz. Wagner Moura, já rouco no final, apesar dos pesares, deixa bem claro que poderia fazer um bom Hamlet, se pudesse ser "louco" apenas onde Shakespeare indica, e é uma presença forte. O resto do elenco fica todo muito abaixo dele: o rei de Tonico Pereira é um bufão cafajeste, enquanto Gillray Coutinho faz um Polônio caricato e ridículo, que dificilmente poderia ser tido como um hábil político. Nada menos que cinco atores (Candido Damm, Fábio Lago, Felipe Koury, Marcelo Flores e Mateus Solano) fazem o Fantasma ao mesmo tempo, tirando a tensão do encontro de Hamlet com o pai, e vários outros papéis; só o último tenta dar uma certa dignidade a Horacio. Carla Ribas (Gertrude) e Georgiana Góes (Ofélia) são ambas fraquíssimas e maltratadas por seus figurinos.

No todo, esse "Hamlet" tem poucos momentos de impacto e, apesar de contar a história da peça, se perde na confusão de valores.

2. Loucura em prosa e verso: resposta de Aderbal Freire-Filho à crítica de Barbara Heliodora (publicado em 25/3/2009)

Alguma vez pensei, sinceramente, em dedicar minha encenação de "Hamlet" a Barbara Heliodora. Queria expressar meu reconhecimento a essa mulher que tanto fez e faz pela divulgação da obra de Shakespeare entre nós. Estou inevitavelmente ligado a ela, um espetáculo teatral tem vida breve e nasce e morre geralmente na mesma cidade. Com Barbara Heliodora, contemporânea e concidadã, mantive um diálogo sem vozes (nem telefonemas), eu com cenas sobre os palcos da cidade, ela com palavras impressas, ao longo de muitos anos. Discordamos muito, mas isso já importa pouco, assim são as coisas e as pessoas.

Esse "Hamlet" foi um dos meus raros espetáculos estreados fora de casa. Quando se transformou no sucesso que lotou o teatro paulista por oito meses seguidos, lamentei não ter feito essa homenagem, pois ela se justificaria então plenamente. No primeiro momento era só a expressão de um reconhecimento, quando eu fazia meu espetáculo-síntese, aquele que me cobrava todas as artes e engenhos experimentados antes, para encenar a peça de Shakespeare. Mas o sucesso faria da dedicatória mais do que isso, seria uma maneira de dividir com ela uma conquista, de dizer "você que ama tanto esse autor, que certamente mais do que ninguém no Brasil quis que ele fosse amado está presente quando tanta gente — 40 mil pessoas — se emociona, se diverte, se envolve profundamente com talvez a mais bela história que ele criou".

Não quero simplesmente discordar dela mais uma vez quando leio sua crítica. Queria, como autor de uma imaginada dedicatória, tomar a liberdade de sugerir a ela um novo olhar: o olhar de quem procura entender por que tanta gente lota esse "Hamlet", mais ainda, por que tanta gente assiste a ele absolutamente fixada no palco (uma rara plateia sem tosses), se diverte, se emociona, chora, e ao final aplaude com gritos de "bravo" e com entusiasmo? Não será certamente porque a direção é confusa, porque não dá para descobrir quando Hamlet se faz de louco e quando não se faz, pois não fala em versos uma hora e em prosa outra.

Aliás, ao informar isso aos seus leitores que não conhecem a peça, ela deixa de dizer que são versos não rimados. Ou seja, versos que teriam que ser reconhecidos, quando ditos, pela métrica. Mas não é tudo. Falar em verso quando não se faz de louco não é uma regra absoluta na peça. Os lúcidos conselhos de Hamlet aos atores estão escritos em prosa. O monólogo de Hamlet com a caveira de Yorik, o bobo da corte, está escrito em prosa e Hamlet também não está louco.

Ora, esse critério pode ser no máximo tomado como uma indicação de Shakespeare aos atores, como se o autor dissesse: mostre a loucura de Hamlet com os recursos da sua arte, assim como eu também mostrei com recursos da literatura. E Wagner Moura demonstra isso extraordinariamente, dando vida a um Hamlet que vai da mais rasgada exaltação à mais fina inteligência.

Podia citar Peter Brook, que se celebrizou encenando Shakespeare, inclusive com a Royal Shakespeare Company. Diz ele : "Os acadêmicos põem o acento na diferença entre prosa e verso, eles insistem em respeitar a forma. Isso conduz a uma nova heresia chamada 'apresentar o texto' ou 'dividir o texto com o público'. Sugere-se ao jovem comediante que seja uma espécie de apresentador dessas grandes palavras (...). Assim nasce o pior de todos os horrores: a voz shakespeariana". ("Avec Shakespeare", edições Actes Sud-Papiers, prefácio de George Banu).

Barbara Heliodora diz que minha montagem não traz nenhuma novidade e seria perfeitamente tradicional a não ser por dois motivos: abandonar prosa e verso e excluir Fortimbrás. Pois nenhuma das duas atitudes é nova, muitas montagens já fizeram isso, se é por isso, minha montagem é perfeitamente tradicional.

E se penso numa tradição que vem diretamente do grande poeta, orgulho-me de segui-la. Mesmo a tradução não mantendo a métrica original, isto é, o pentâmetro, não recusou a linguagem poética, a poesia está lá, viva. Passou, sim, ao largo das tradições acadêmicas e do teatro sem ar, de que nos dá um pequeno exemplo John Gielgud, o notável ator shakespeariano, em suas memórias. A propósito de uma cena importante, diz lamentar que o público prestasse pouca atenção a ela, pois se representava diante da cortina e os espectadores "sabem que atrás se está preparando algo surpreendente e, subconscientemente, estão desejando ver o que será". Nosso Hamlet é um Shakespeare puro, apoiado apenas em um pequeno banco, uma poltrona de vime, um pano que às vezes a cobre, um tapete como lugar sagrado e dessacralizado ao mesmo tempo, para liberar o jogo vivo, novo, renovado dos atores. Eles mostram um Shakespeare forte, presente, profundo e claro, ao mesmo tempo complexo e simples, poético sem afetação, enfim, como Shakespeare é, passando por cima das camadas de pó (a tradição má) para encontrar limpo o espelho que ele põe diante do homem da plateia e que o reflete (a tradição boa).

Um novo palco, livre de limitações, um velho marinheiro e uma excelente tripulação a navegá-lo é o que está oferecido ao público do Rio nesse "Hamlet". Podia ser mais breve, bastando dizer que o enorme sucesso desse "Hamlet" é a extraordinária qualidade da peça, é Shakespeare, vivo. Melhor ainda, bastaria o texto da dedicatória : "À Barbara Heliodora, o Shakespeare que amamos fazendo o sucesso que quisemos sempre que fizesse. Com carinho, Aderbal".

3. Prosa e verso: resposta de Barbara ao artigo de Aderbal Freire-Filho (publicado em 29/3/2009)

Não desejo que Aderbal, meu caro coshakespeariano, fique com a impressão de que eu sonho com um "Hamlet" declamado... O verso branco de William Shakespeare é um instrumento fluido, precioso instrumento para a mais autêntica expressão de suas intenções. No caso da loucura de Hamlet, no entanto, estou certa de que ele desejaria que o público pudesse ler no espetáculo, com clareza, quando ele fingia (com sua loucura de bobo da corte, sempre dirigida especificamente ao rei ou a Polonius) e quando o poderíamos ver refletindo sobre a ingrata tarefa imposta pelo pai.

É verdade que, para o público da época, ainda existia uma óbvia diferença entre o vingador legítimo (que não ficava culpado com seu crime) e o mero regicida (que ele seria se o Fantasma fosse, por exemplo, o diabo mentiroso que o próprio príncipe temia que fosse. E é na interpretação que o príncipe pode deixar o público ver a diferença...

Quando você fala de Fortimbras, não é só o voto que importa: esse aspecto político, e de bom governo, é o que distingue o "Hamlet" de Shakespeare de todos os que o precederam, e que empresta à ação como um todo uma dimensão trágica muito mais ampla. Não podemos esquecer que quando, no cemitério, Hamlet diz e é "o dinamarquês", ele está assumindo suas funções de rei, e sua vingança final não é apenas pessoal mas, sim, a da preocupação de tirar do trono o mau rei e trazer o reino de volta ao bom governo (o mesmo que acontece em todas as outras tragédias).

Mas vamos ao que me pareceu mais grave: é possível que o diretor tenha ficado um pouco fascinado demais com o "teatro dentro do teatro", esquecendo um pouco, ao menos, o texto: mas quem diminui o antagonista diminui o protagonista, e dificilmente um Hamlet teria de morrer para superar o Cláudio que aparece menos em cena: será que o Conselho poderia realmente optar por dar a ele e não a Hamlet a coroa? Situando tudo um pouco mais perto de nós: será que a atual quadrilha do Senado continuaria no poder com o comportamento do seu Polonius?

Tenho a certeza de que poderíamos discutir o "Hamlet" por alguns meses, sem chegar à "interpretação ideal", já que até hoje ninguém a alcançou, justamente em função da riqueza do texto.

De qualquer modo, no entanto, agradeço a quase dedicatória, e espero que o nosso diálogo, escrito, oral ou telepático, possa continuar harmônico por muito tempo.

Marília Pêra

Não chegou a haver uma polêmica travada nas páginas do jornal, mas a avaliação demolidora de Barbara (leia abaixo) para um espetáculo dirigido por Marília fez com que a atriz cortasse relações com a crítica. Em entrevista à revista "Isto É" meses depois, por ocasião dos seus 80 anos, Barbara, perguntada sobre o episódio, reforçou que a montagem era "uma coisa vergonhosa" e tentou amenizar o efeito devastador do que escrevera: "A única coisa que eu disse é que acho que ela tem um nome a zelar, não devia fazer aquilo." Dez anos depois, Marília foi ao lançamento de um livro de Barbara. O mal-estar havia acabado.

Crítica de Barbara Heliodora à montagem dirigida por Marília Pêra — Foto: Acervo/O GLOBO
Crítica de Barbara Heliodora à montagem dirigida por Marília Pêra — Foto: Acervo/O GLOBO

1. Peça revive teatro brasileiro barato e apelativo de um século atrás. A saga da sra. Café: engano total começa pelo texto de Heloisa Périssé (publicado em 4/6/2003)

Fica ainda mais chocante o desastre total que é "A saga da sra. Café" quando se pensa no desapontamento que é ver Heloisa Périssé, que escrevera "Cócegas" com um humor inteligente, dar-nos aqui uma trama primária, incompetente e derivativa, voltada para o mais surrado humor sexual, com a sutileza de um tanque de guerra. Uma espécie de imitação barata do brilhante "Irma Vap", o texto revive (???) uma dramaturgia de quase um século atrás, quando o teatro brasileiro mais barato e apelativo vivia de pequenas comédias (???) tolas e incompetentes: a trama é lamentavelmente indigente, um sem pé nem cabeça injustificável, sem um único momento, uma única frase, que o redima.

Igual ou maior desapontamento é ver Marília Pêra, que tão brilhantemente dirigira o imitado "Irma Vap", apelar aqui para um primarismo de chanchada, que acompanha e ressalta todos os defeitos do texto. É possível que, tendo em mãos um elenco a ser encabeçado por dois homens travestidos de mulher, a diretora se tenha dado conta que tudo seria de tal modo implausível que o exagero, a caricatura, a chanchada, talvez pudessem ser sua tábua de salvação. Porém enganou-se. Em primeiro lugar, porque nada poderia salvar o texto; e, por outro, a solução buscada teria de ser magistralmente executada, e o elenco com que contou não poderia dar conta de tal intenção. Há corridas, rodopios, poses e agitação, mas tudo malfeito e sem sentido.

Tudo no espetáculo é remetido para o (felizmente) já superado, sem qualquer visão crítica, simplesmente trazendo de volta o pior momento do teatro brasileiro: o cenário de Marcio Medina, misturando o telão pintado com uma escadaria desnecessária, do tipo desfile de vedete, é de extremo mau gosto, igualado apenas pelos figurinos (que atingem seu auge no grotesco erro das supostas calças de golfe do "senhor Café"), despropositados, cafonas.

O elenco é igualmente insatisfatório: Ilvio Amaral e Maurício Canguçu fazem poses e gracinhas, mas não conseguem nem por um momento chegar além do show de travestis, enquanto Sandra Pêra, que seria o melhor elemento do grupo todo, é levada a interpretar um inqualificável detetive que, por razões insondáveis, está vestido de Jeca Tatu. Ricardo Graça Mello tenta existir correndo e gritando, mas não convence, enquanto Bruno Faria nem sequer corre e grita, é apenas errado. Jerônimo Coelho aparece vestido de cachorro não se sabe por que, já que o animal é irrelevante para a trama e para o espetáculo.

Por que montar esse texto é a pergunta que não quer calar; e tomando a dúbia resolução de o montar, por que fazê-lo nesse tom e com esse elenco? O engano é total.

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