Cultura
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Por , Em The New York Times

Em 1970, quando Jill Ciment era uma adolescente rebelde, ela fez algo chocante. Sonhando em ser artista, se matriculou no curso de Arnold Mesches, conhecido pintor cujo trabalho admirava. O respeito transformou-se em paixão e, uma noite, depois da aula, ela esperou que os outros alunos saíssem e se aproximou dele. “Desabotoei os três primeiros botões da minha blusa de camponesa, atravessei o chão salpicado de tinta e o beijei”, escreveu Ciment, agora uma aclamada romancista, em seu livro de memórias de 1996, “Half a Life”.

Ela tinha 17 anos na época. Ele estava com 47, era casado e tinha dois filhos adolescentes. Quando Ciment escreveu “Half a Life”, ela e Mesches estavam juntos há mais de 20 anos. Ele era o primeiro leitor de tudo o que ela escrevia. Depois de ler a cena, ele discutiu algumas frases, mas concordou no fato principal: ela instigou o beijo.

Mas, há alguns anos, Ciment reconsiderou sua história de origem. Mesches morreu de leucemia em 2016, aos 93 anos. O movimento #MeToo desencadeou um debate sobre o assédio sexual e a agressão cometida por homens em posições de poder. Ciment começou a questionar seu relato anterior sobre o namoro.

Ciment pegou “Half a Life” para reler, encontrou a passagem que descrevia o primeiro beijo deles e ficou chocada ao ver como distorceu o encontro, diz. Ela se lembrava perfeitamente daquela noite, porque fantasiou sobre isso durante meses. Depois que os outros alunos saíram do estúdio de arte, ela ficou ali. Queria pedir conselhos a Mesches sobre como seguir a carreira de artista. Ele a puxou para si e a beijou.

Jill Ciment e Arnold Mesches em 1975 — Foto: Via Jill Ciment
Jill Ciment e Arnold Mesches em 1975 — Foto: Via Jill Ciment

Olhando para trás, cinco décadas depois, ela percebeu que havia algo sinistro na conduta dele que não havia conseguido compreender antes – um homem mais velho, um professor em posição de poder, aproveitando-se de sua aluna, uma adolescente que ansiava por sua aprovação.

— Em um casamento, você divide essa mitologia e precisa compartilhar enquanto seu parceiro ainda está vivo — diz Ciment. — Mas quando ele morre, a história passa a ser sua.

Ciment decidiu realizar uma autópsia em suas memórias. O exercício rendeu um novo livro, intitulado “Consentimento”, que a Pantheon lança nesta terça-feira (11) nos EUA. Com distanciamento quase clínico, Ciment investiga as falhas e lapsos factuais em seus trabalhos anteriores e, em meio a esse processo, questiona o artifício inerente ao livro de memórias como forma literária.

— Toda a ideia de escrever a verdade em um livro de memórias é tão absurda — avalia. — Você tem essas memórias dispersas e está tentando extrair delas uma história.

Ciment deu a entrevista durante o chá em sua casa em Gainesville, Flórida, repleta de ousadas pinturas acrílicas de Mesches e situada em um lago plácido onde crocodilos costumam tomar sol na costa. Ciment, com uma auréola de cachos grisalhos, olhos castanhos e uma risada baixa e rápida que frequentemente pontua suas frases, sentou-se diante de um grande tríptico de pinturas a óleo de Mesches de um cavalo, um peru e um chihuahua de aparência triste usando chapéu. “Eu costumava chamar esses três autorretratos”, disse ela.

É incomum para um escritor revisitar trabalhos anteriores e desmontá-los de forma tão pública. “Consentimento” é um livro surpreendente e muitas vezes chocante: parte memórias e post-mortem, parte recriminação e reclamação e, ainda assim, parte história de amor também.

Na primeira metade do livro, Ciment examina minuciosamente a história que contou sobre seus primeiros anos com Mesches em “Half a Life”. Às vezes, ela reimprime passagens inteiras de suas memórias anteriores e depois relata os mesmos acontecimentos, revelando o que distorceu ou deixou de fora. Na segunda metade, ela continua de onde parou seu primeiro livro de memórias e descreve suas décadas de casamento; a forma como suas vidas criativas se entrelaçaram; e como foi envelhecer como uma mulher mais jovem e ver Mesches tornar-se cada vez mais dependente dela na velhice.

Examinando suas próprias palavras em “Half a Life”, comparando-as com suas memórias, Ciment ficou com uma conclusão desconfortável: ela não havia contado toda a verdade, talvez porque não fosse capaz de fazê-lo.

— Não sei se conseguiria realmente escrever a verdade. Quando o que você está escrevendo está sendo lido pela pessoa sobre quem você está escrevendo, você pode ser completamente honesto? — questiona. — Tenho certeza de que o fato de ele ter participado da redação do livro de memórias mudou o livro de memórias. Assim que me livrei dessa história colaborativa, fiquei livre para analisá-la novamente.

Ciment ficou chocada com outros detalhes relevantes que ela omitiu em “Half a Life”. Mesmo antes do primeiro beijo, Mesches não escondeu seu interesse por ela. Ele se inclinava sobre ela na aula para inspecionar seu trabalho e olhar para sua camisa. Certa vez, durante a aula, ele sussurrou em seu ouvido: “Gostaria que você fosse mais velha” – o que Ciment deixou de fora de seu primeiro livro de memórias.

Mesches era um adúltero em série que teve muitas mulheres, incluindo outras estudantes. Quando o caso começou, ele já estava traindo a esposa com outra mulher, mas Ciment não fez menção a isso em “Half a Life”. (Mais tarde, ela se tornou amiga daquela outra mulher, disse ela.)

Ela deixou de lado o fato de que, quando ainda era adolescente, ela e Mesches ocasionalmente faziam sexo em um parque perto de seu estúdio, e uma vez eles escaparam por pouco de serem pegos por um policial que passava enquanto ela fazia sexo oral nele. Ela deixou de lado as muitas refeições que faziam em um restaurante chinês com uma discreta mesa escura nos fundos, onde costumavam ir depois de fazer sexo em seu estúdio de arte e onde o garçom sabia os pedidos de bebidas: uma Coca-Cola para ela, uma vodca martini para ele.

Climent e Mesches em 1983 — Foto: Via Jill Ciment
Climent e Mesches em 1983 — Foto: Via Jill Ciment

Quando ela escreveu sobre a primeira vez que eles fizeram sexo em “Half a Life”, foi uma cena de paixão desenfreada mútua. Relatando a mesma noite em “Consentimento”, ela revela novos detalhes que tornam o encontro mais ambíguo. Ela achou a pele flácida de seu pescoço de meia-idade “repulsiva”, mas “optou por ignorá-la”. Quando se deitaram nos lençóis sujos de uma cama em seu estúdio de arte, Mesches não conseguiu ter uma ereção. Ele sugeriu que ela o fizesse sexo oral e, como ela era muito inexperiente, ele lhe disse exatamente o que fazer.

Agora com 71 anos, Ciment acredita que em “Half a Life” ela não teve a intenção de proteger Mesches de ser rotulado de predador. Mas não queria pensar em si mesma como uma presa.

— Ele ficaria chateado se eu tivesse escrito que ele havia me beijado? Não, não ficaria. Eu queria mostrar meu próprio poder, mais do que me esconder dos defeitos dele.

Enquanto ela escrevia “Consentimento”, Ciment ocasionalmente se perguntava o que Mesches pensaria disso se ainda estivesse vivo.

— O que mais o incomodaria é que escrevi sobre seus fracassos e como ele desistiu de ser artista.

Alguns dos amigos mais próximos de Ciment não ficaram surpresos por ela ter decidido revisitar seu primeiro livro de memórias e essencialmente destrui-lo.

— Eu sabia que ela seria implacável e honesta — diz Amy Hempel, contista que é amiga íntima de Ciment há décadas. — Ela se torna tão responsável quanto ele. Ela não é vítima.

A vida de Ciment antes de conhecer Mesches foi marcada pelo caos e pela instabilidade. Seu pai, doente mental e sujeito a acessos de raiva violentos, se afastou da família depois que sua mãe o expulsou de casa, em Los Angeles. Depois disso, sua mãe lutou para manter a casa funcionando e cuidar sozinha dos quatro filhos.

Ciment e Mesches em 1993 — Foto: Via Jill Ciment
Ciment e Mesches em 1993 — Foto: Via Jill Ciment

Ciment abandonou o ensino médio para se tornar uma artista e, depois de frequentar as aulas de Mesches, mudou-se para Nova York para perseguir seu sonho, mas acabou trabalhando como modelo nua em um peep show perto da Times Square. Quando ela voltou para casa depois de quatro meses, falida e derrotada, foi encontrar Mesches, e eles retomaram o caso.

Ele acabou deixando a esposa e, quando Ciment tinha 18 anos, se mudaram para um pequeno bangalô perto de uma rodovia. Ela foi admitida no CalArts, usando notas falsas no SAT que obteve ao pedir a um amigo que fizesse o teste para ela. Preocupada com a possibilidade de nunca sair debaixo da sombra de Mesches, acabou desistindo da arte e começou a escrever.

No início da década de 1980, eles se mudaram para Nova York e moraram em um prédio sem elevador no quarto andar do East Village. No final do dia, mostravam um ao outro o seu trabalho e muitas vezes eram brutalmente honestos nas suas críticas.

— Eles eram verdadeiros iguais, e você não vê isso com frequência em qualquer relacionamento, muito menos em um relacionamento em que um deles é 30 anos mais velho que o outro — disse a escritora Jo Ann Beard, amiga íntima de Ciment.

Ainda assim, Beard disse que entendia por que Ciment não conseguiu contar a história completa de seu relacionamento em “Half a Life”.

— Ela fez um esforço para protegê-lo do julgamento do mundo e, a propósito, isso também a protegeu do julgamento do mundo.

Ciment tinha 40 anos quando publicou seu primeiro romance, “The Law of Falling Bodies”, que era fortemente autobiográfico e centrado em uma adolescente de um lar instável que se apaixona por um homem chamado Arthur, 30 anos mais velho que ela.

Ciment e Mesches em 2015, na estreia em Nova York do filme de Richard Loncraine "5 Flights Up", que foi adaptado do romance de Ciment "Heroic Measures". — Foto: Jim Spellman/WireImage, via Getty Images
Ciment e Mesches em 2015, na estreia em Nova York do filme de Richard Loncraine "5 Flights Up", que foi adaptado do romance de Ciment "Heroic Measures". — Foto: Jim Spellman/WireImage, via Getty Images

Alguns de seus romances posteriores também contêm retratos fictícios de seu casamento. Seu romance de 2009, “Heroic Measures”, apresenta um casal mais velho morando em um prédio sem elevador no East Village; como Mesches, o marido do romance é um artista idoso cujas pinturas incorporam páginas de um dossiê que o FBI compilou sobre ele durante a Guerra Fria.

Em seu romance de 2019, “The Body in Question”, Ciment baseou-se na experiência como cuidadora de Mesches em seus últimos anos. O romance é centrado em uma mulher de 52 anos da Flórida chamada Hannah, que fica aliviada por ter uma folga dos cuidados com seu marido enfermo de 86 anos quando é escolhida como jurada para um sensacional julgamento de assassinato.

Ciment começou a escrevê-lo quando Mesches tinha 91 anos e deu ao marido fictício uma forma aguda de leucemia, a mesma doença que acabou matando Mesches. Ela adaptou algumas de suas conversas sobre sua morte iminente como um diálogo entre marido e mulher do romance, e algumas das linhas do romance aparecem literalmente em “Consentimento”.

“Uma das coisas que escrevi naquele romance foi sua morte, para que quando ele morresse eu tivesse um lugar para colocar minha dor”, disse Ciment.

Agora que terminou “Consentimento”, Ciment está imaginando como poderá reescrever o livro se o revisitar daqui a algumas décadas.

— Quando eu chegar aos 90, se tiver vontade, provavelmente reescreveria estas páginas para falar sobre como Arnold me ensinou como envelhecer — disse ela. — Ele nunca desistiu. Ele entrou naquele estúdio uma semana antes da morte, desenhou e pintou. Aprendi algo inestimável: você estará vivo enquanto estiver vivo.

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