Cultura
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Por — São Paulo

Momentos antes de morrer, no 55º capítulo da novela “Renascer”, da TV Globo, o Padre Santo (Chico Díaz) deu uma última lição ao Pastor Lívio (Breno da Matta). “Deus tá no mundo, na natureza”, afirmou. “É... O Deus de Espinosa”, completou o discípulo. O pastor pescou a referência porque, 20 capítulos antes, o padre já havia confessado seu espinosismo ao discursar contra o dogmatismo religioso: “Eu acredito em Deus, mas também acredito no Deus de Espinosa.” As cenas foram escritas pelo autor da novela, Bruno Luperi, e não constavam na versão original, de Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1993.

— Espinosa fala sobre um Deus não necessariamente dogmático e sem vínculo com nenhuma religião. Não no Deus que nos separa, mas naquele que nos une, que rege a natureza, que rege essa lógica do universo — afirma Luperi. — Einstein também disse que acreditava no Deus de Espinosa.

Mas que Deus é esse? Não é o da Bíblia, um ser transcendente ou um monarca que rege o Universo. O Deus de Espinosa é a própria realidade, é tudo o que existe. É o Deus sive Natura apresentado na “Ética”, obra máxima do filósofo judeu holandês, publicada postumamente, em 1677: “Esse ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou natureza.”

Nas últimas linhas da “Ética”, Espinosa afirma que o sábio, aquele que conhece a si mesmo, Deus e as coisas, “possui sempre a verdadeira satisfação do ânimo”. Embora admita que a “via” que conduz à sabedoria “parece muito árdua”, ele garante: “Pode ser encontrada.” E não faltam incentivos a quem quiser percorrê-la. Espinosa não está só na novela das nove. Em cartaz no Teatro UOL, em São Paulo, até o dia 30, a peça “O Deus de Spinoza” explica conceitos forjados pelo filósofo (cujo nome aceita mais de uma grafia) e retrata seus embates com os religiosos. No romance “O segredo de Espinosa” (Planeta), recém-lançado no país, o português José Rodrigues dos Santos dramatiza a biografia do pensador ao mesmo tempo em que esclarece suas ideias.

Antifanático ateu também

E a Editora 34 acaba de publicar uma nova tradução da “Ética”, assinada por Diogo Pires Aurélio, professor da Universidade Nova de Lisboa. Há outras três traduções no Brasil: a da Autêntica, a da Vozes e a da Edusp (que foi coordenada por Marilena Chaui, mais conhecida especialista em Espinosa no país).

“Ateu insatisfeito com os vieses típicos do materialismo”, o premiado escritor Daniel Galera vem trilhando a árdua via apontada por Espinosa. Descobriu que o filósofo discute temas caros à sua ficção, como o livre-arbítrio. O autor da “Ética” argumenta que tudo o que acontece é determinado por causas necessárias e que cabe ao homem livre conhecê-las.

— O protagonista do meu romance “Barba ensopada de sangue” (2012) não tem instrução filosófica, mas diz: “Sei que não existe escolha e que mesmo assim a gente precisa viver como se existisse.” Sem saber, já me aproximava de Espinosa pela via da ficção. Não existe escolha, mas buscamos compreender como cada coisa acontece. A liberdade está no conhecimento — afirma o escritor. — Espinosa é um antídoto aos fanatismos, tanto o religioso quanto os ateus-materialistas. Sua filosofia também demonstra nossa insignificância diante da totalidade do mundo, uma lição sempre útil e que ganha importância em tempos de devastação ecológica planetária provocada por humanos.

Galera pertence a uma vasta linhagem de escritores espinosanos, como Goethe, Balzac e Fernando Pessoa. Machado de Assis, o argentino Jorge Luis Borges e o português Jorge de Sena dedicaram poemas ao filósofo. Diogo Pires Aurélio, o tradutor da “Ética”, ressalta três aspectos que explicam o apelo do autor: sua biografia dramática, sua personalidade afável e cautelosa (o francês Gilles Deleuze o chamou de “o Cristo dos filósofos”) e seu pensamento revolucionário.

Baruch de Espinosa nasceu em 1632 na comunidade judaica portuguesa de Amsterdã, formada por refugiados da Inquisição — sua família vinha de Portugal. Aos 23 anos, foi excomungado devido a suas ideias heterodoxas a respeito de Deus e da Bíblia, que ele afirmava ser um livro cheio de contradições, escrito por homens que ignoravam a razão. “Maldito seja de dia e maldito seja de noite”, anunciaram os rabinos, que proibiram os judeus de manter contato com Espinosa. Não à toa, Jorge de Sena o descreve como um “coitado”, “sem ter Deus nem pátria”.

No romance “O segredo de Espinosa”, José Rodrigues dos Santos (best-seller em Portugal) descreve a angústia do jovem filósofo ao contemplar as consequências das ideias que germinavam em sua mente. Ainda menino, Espinosa vira Uriel da Costa ser expulso da comunidade, acusado de heresia. Uriel terminou por cometer suicídio. Santos destaca três lições de Espinosa:

— A frase “não ridicularizar, não deplorar, não detestar, mas compreender” é de grande lucidez metodológica. O Deus sive Natura é uma bomba, porque recusa o sobrenatural. E ele ainda causou outro terremoto no pensamento ocidental ao afirmar que o objetivo do governo é a liberdade.

Ator Bruno Perillo interpreta Espinosa em peça que está na quarta temporada em São Paulo e já viajou pelo interior do estado — Foto: Ronaldo Gutierrez
Ator Bruno Perillo interpreta Espinosa em peça que está na quarta temporada em São Paulo e já viajou pelo interior do estado — Foto: Ronaldo Gutierrez

Um resumo dessas lições aparece na peça “O Deus de Spinoza”, que está na quarta temporada em São Paulo e já viajou pelo interior do estado. Interpretado por Bruno Perillo, o filósofo denuncia os líderes religiosos que alimentam a superstição do povo para dominá-lo, inclusive politicamente. Seu “Tratado teológico-político”, que expõe sua interpretação Bíblia, foi acusado de ter sido forjado no inferno pelo próprio diabo. O “Tratado” (que terá nova edição este ano pela Autêntica) começa com uma análise da superstição que nasce do medo, tema recorrente em sua obra. Considerados “como vícios em que os homens incorrem por culpa própria”, os afetos são valorizados pelo autor.

— Nunca fui religioso, mas depois de conviver com deputados-pastores perdi a crença de vez no transcendente. Espinosa solucionou todas as dúvidas que eu tinha a respeito de Deus — afirma o autor da peça, o jurista e ex-deputado federal Régis de Oliveira.

Citando Deleuze, o professor Diogo Pires Aurélio descreve a “Ética” como uma “etologia humana” (etologia é o estudo do comportamento dos animais).

— Ao contrário dos modernos, Espinosa não coloca o homem no centro do universo. Ele mostra que só entendemos o homem em sua interação com os outros e com a natureza. Por isso, a “Ética” fala dos afetos e da servidão, do que nos torna infelizes em nossas relações, e desmonta a superstição. O livro ensina que para viver magoando-me o menos possível é preciso entender como as coisas influenciam a minha afetividade, tornando-me mais ou menos potente, mais ou menos alegre — explica.

Aurélio aponta que a filosofia espinosana, amaldiçoada por séculos, costuma ser recuperada em momentos em que “as grandes narrativas entram em crise”, como o século XIX, época em que os românticos alemães questionaram o Iluminismo, e os anos 1960, quando filósofos franceses convocaram o autor da “Ética” para reanimar as discussões do marxismo.

Hoje, está em crise aquele que Espinosa chamou de “o mais natural dos regimes”: a democracia. João Rodrigues dos Santos afirma que há um “ataque ao mundo de Espinosa”, isto é, ao regime político que ele concebeu como o único capaz de favorecer a felicidade individual e coletiva.

O tradutor da “Ética” concorda. Ele lembra que “a primeira reflexão sistemática sobre a democracia moderna” surge no “Tratado teológico-político”, aquele livro que os religiosos acusaram de ter sido forjado no inferno e escrito pelo próprio diabo, mas que, na realidade, saiu da pena do homem que dizia que Deus e a natureza eram a mesma coisa.

Serviço:

"Ética"

Autor: Baruch de Espinosa. Tradução: Diogo Pires Aurélio. Editora: 34. Páginas: 640. Páginas: R$ 128.

"O segredo de Espinosa"

Autor: José Rodrigues dos Santos. Editora: Planeta. Páginas: 488. Preço: R$ 89,90.

"O Deus de Spinoza"

Onde: Teatro UOL, Shopping Pátio Higienópolis, São Paulo (SP). Quando: Quartas e quintas-feiras, ás 20h, até 30/5. Quanto: R$ 80. Classificação: 12 anos.

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