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Por — São Paulo

Em 1907, na segunda edição de “A mão e a luva”, romance publicado originalmente em 1874, Machado de Assis incluiu uma “Advertência”. Admitiu que, se tivesse escrito o livro naquele início de século, e não três décadas antes, dar-lhe-ia certamente outra “feição”. Mas não renegou as escolhas feitas “outrora”. “Ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa”, escreveu. Machado tinha então 68 anos, já havia fundado a Academia Brasileira de Letras, em 1897, e publicado obras-primas como “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1880) e “Dom Casmurro” (1899). No ano seguinte, oferecia aos leitores seu derradeiro romance, “Memorial de Aires”, e se tornaria um autor defunto.

Machado ainda vivia quando críticos como José Verissimo (outro imortal) começaram a falar sobre as “duas maneiras” do autor, dividindo sua obra em duas fases: uma romântica, que inclui livros como “A mão e a luva” e Helena” (1876), e outra realista, inaugurada em 1880 por “Brás Cubas”. Essa divisão, que privilegia a segunda fase em detrimento da primeira, persiste até hoje em livros didáticos. O próprio Machado, no entanto, parece contestá-la na “Advertência” de 1907, ao afirmar que tudo, inclusive sua prosa romântica, servia para defini-lo como escritor.

Essa convicção inspirou a coleção “Todos os livros de Machado de Assis”, parceria da editora Todavia e do Itaú Cultural, que reúne os 26 títulos publicados por ele em vida (não se trata de sua obra completa) e ilumina a formação de um escritor que se destacou não apenas na prosa realista, mas também na romântica, na poesia e no teatro. Este percurso também é o fio condutor da “Ocupação Machado de Assis”, mostra que começa neste sábado (18) em São Paulo.

Romântico, mas não muito

Organizador de “Todos os livros” e professor da USP, Hélio Seixas Guimarães afirma que, ao apresentar o autor de cabo a rabo, a coleção questiona a história da literatura que insiste em diferenciar o “Machadinho” romântico e o “grande Machado”, que emendou uma joia literária atrás da outra depois de “Brás Cubas”.

Machado nunca aderiu completamente às modas literárias de sua época. Foi um romântico com “um pé atrás”, lembra Guimarães. Não à toa, estreou com uma peça teatral intitulada “Desencantos” (1861), protagonizada por uma viúva indecisa entre dois pretendes e que, após se casar novamente, entedia-se com o marido. Em 1875, publicou “Americanas”, livro de poemas que propõe um diálogo crítico com o indianismo romântico de Gonçalves Dias e José de Alencar. Seus versos problematizam a colonização das Américas e denunciam a violência europeia (“raça triste de Cains”) contra indígenas, africanos e judeus.

Com o tempo, Machado aperfeiçoou sua técnica e conferiu maior densidade às narrativas. Suas primeiras obras, porém, já acusavam as obsessões que o acompanhariam por toda a sua carreira, como o ciúme, a dúvida, a desilusão, a ambição e as assimetrias sociais e sua relação com o poder. Em 1864, ele publicou a peça “Quase ministro”, sátira política em que um deputado passa a ser assediado por um tropel de bajuladores quando se espalha o boato de que ele será titular de uma pasta. A crítica galhofeira à política retorna em romances como “Brás Cubas” (que também quase foi ministro) e “Esaú e Jacó” (1904), ambientado na passagem do Império para a República.

Desde o início, Machado privilegiou determinados personagens, como moças pobres que ascendem pelo casamento (de Helena a Capitu) e viúvas, que aparecem em obras tão diferentes como a peça “Desencantos” e romances como “Ressurreição” (1872) e “Memorial de Aires”.

— Na época de Machado, mulher se tornava autônoma financeiramente ao ficar viúva, embora continuasse submetida à violência patriarcal. As viúvas de Machado têm uma visão crítica da idealização do casamento. São figuras que lhe permitem sondar as possibilidades de movimento, ainda que restrito, na sociedade da época — explica Guimarães. — Machado sempre buscou esses espaços de autonomia possível, de afirmação do desejo.

Censor exigente

A “Ocupação Machado de Assis”, em cartaz até 4 de fevereiro de 2024 no Itaú Cultural (Avenida Paulista 149, São Paulo), também rejeita narrativas lineares (como a suposta evolução do romantismo para o realismo) para apresentar a trajetória do escritor. Tanto é que, ao entrar, o visitante topa com imagens gravadas pelo cineasta Humberto Mauro (1897-1983) do Morro do Livramento, onde Machado nasceu. Dois passos à frente, vê fotos do cortejo fúnebre do escritor. Ao todo, a mostra reúne mais se cem itens (a maior parte advinda dos acervos da Academia Brasileira de Letras, da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e do Banco Itaú): fotografias, manuscritos, uma cópia datilografada do conto “A cartomante”, as primeiras edições de obras como “Desencantos” e “Quincas Borba” e títulos da biblioteca do escritor.

A “Ocupação” também disponibiliza uma publicação gratuita com textos de autores como Ana Paula Maia e Micheliny Verunschk inspirados na obra machadiana e, em breve, divulgará um calendário de atividades como seminários, espetáculos teatrais e até oficinas de xadrez. Machado sabia tudo sobre o jogo, e sua faceta enxadrista tem destaque na mostra. Assim como sua atuação como funcionário público, tradutor e censor do Conservatório Dramático Brasileiro. O censor Machado de Assis era exigente. Em um parecer sobre a comédia “Os nossos íntimos”, de Victorien Sardou, acusou o tradutor de “infiel”: “suprimiu as dificuldades que não pode vencer”.

Machado revisava incansavelmente seus textos. Na “Ocupação”, um manuscrito mostra correções ao último capítulo de “Memorial de Aires”. Com o tempo, a dicção machadiana foi alterada de acordo com as novas regras ortográficas. A coleção “Todos os livros”, porém, recuperou o texto da última edição de cada livro revista pelo autor, revelando sua ortografia idiossincrática.

Ao leitor contemporâneo, causam estranhamento a disposição aparentemente esdrúxula de vírgulas e travessões e opções que hoje são consideradas erros crassos, como separar o verbo do sujeito (ou do objeto) e, pior!, usar “meia” como advérbio de modo. Em “A mão e a luva”, por exemplo, Mrs. Oswald, depois de “um riso grave e pausado”, volta com umas palavras “meias suspiradas”; e Guiomar se detém alguns momentos à janela, “meia voltada para fora e meia guardada pela sombra que fazia ali a cortina”. A coleção também manteve a dupla grafia de algumas palavras, como “cousa/coisa”, “doudo/doido” e “noute/noite”.

— A ortografia de Machado foi “corrigida” para referendar o lugar dele no cânone como escritor que tem uma dicção perfeita — afirma Luciana Schoeps, pesquisadora da obra machadiana. — No século XIX, as regras gramaticais ainda não estavam consolidadas. Por isso, a pontuação de Machado não segue a ordem lógico-sintática, como fazemos hoje, mas imita a musicalidade da fala, segue o ritmo da respiração, o que percebemos ao ler o texto em voz alta.

Luciana foi consultora de “Todos os livros” e da “Ocupação Machado de Assis” e acredita que ambos os projetos se complementem ao iluminar lados menos conhecidos do escritor. O 26º volume da coleção, por exemplo, é “Terras, compilação para estudo”, relatório redigido em 1886, quando Machado batia ponto na Secretaria de Estado do Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, pasta responsável pela execução da Lei de Terras e da Lei do Ventre Livre.

Organizador da coleção, Hélio Seixas Guimarães, afirma que a publicação do volume burocrático prova que, por décadas, o escritor “ocupou um posto privilegiado de observação de questões cruciais do Brasil, como divisão de terras e a escravidão”. Por muito tempo, Machado foi censurado por supostamente fechar os olhos para a escravidão. Mas esse juízo vem caindo por terra. Notas de Paulo Dutra, professor da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, incluídas na coleção, atestam o olhar atento do escritor Machado às questões raciais.

A negritude de Machado também é assunto na “Ocupação” do Itaú Cultural, que exibe vídeos de artistas negras como Elisa Lucinda, Juçara Marçal e Cleide Queiróz lendo trechos da obra do autor, como um capítulo de “Brás Cubas”, cenas da peça “Os deuses de casaca” e o poema “Carolina”, dedicado a sua mulher.

Gerente de curadorias e programação artística do Itaú Cultural, Galiana Brasil afirma que, ao revisitar a trajetória do autor, a exposição põe em evidência as “tecnologias de sobrevivência” usadas por Machado para vencer em uma sociedade hostil a sua cor:

— Ele era muito articulado. Sabia para quem devia dedicar os poemas para construir sua rede de contatos. Também notamos esse networking nas cartas — diz ela. — Machado era mulato, gago, tímido, não tinha nenhum protetor. Mas não só sobreviveu como também se destacou no meio intelectual. Se vivesse hoje, podia até ser um influencer.

Serviço:

'Todos os livros'

Autor: Machado de Assis. Editora: Todavia. Preço: R$ 1.599.

'Ocupação Machado de Assis'

Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149). Quando: De 18/11 a 4/2/2024. Grátis.

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