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Época cultura 1156

Borges e eu

Em obra recém-lançada, acadêmico americano romanceia os dias em que passeou com Jorge Luis Borges, um dos maiores nomes da literatura do século XX
Nas memórias de Jay Parini, o escritor Jorge Luis Borges aparece apaixonado. Foto: Bettmann Archive
Nas memórias de Jay Parini, o escritor Jorge Luis Borges aparece apaixonado. Foto: Bettmann Archive

Em 1970, o americano Jay Parini tinha 22 anos e estava um pouco perdido. Recém-saído da faculdade, ele não se animava em voltar a viver com a família em Scranton, na Pensilvânia, onde sua mãe o pressionava a cogitar uma carreira no Direito e, preocupada, insistia que ele fosse ao médico e arrumasse algum remédio para sua melancolia. Parini sonhava em viver de literatura e temia ser convocado para lutar na Guerra do Vietnã. Para fugir do assédio da mãe e do Exército americano, ele resolveu se inscrever num programa de pós-graduação em St. Andrews, na Escócia, onde fizera um intercâmbio alguns anos antes. Pretendia estudar a obra de George Mackay Brown (1921-1996), poeta escocês que ele conhecia muito pouco. Para o desespero da mãe, foi aceito e se mandou para a cidadezinha escocesa banhada pelo Mar do Norte. O Exército americano chegou a enviar para a Escócia algumas cartas, que Parini, temendo descobrir que o convocavam para o Vietnã, se recusava a abrir.

Em St. Andrews, aconselhado por uma professora que sabia de suas ambições literárias, Parini, passou a visitar Alastair Reid (1926-2014), poeta, colaborador da revista The New Yorker e estudioso da literatura latino-americana que vivia ali com seu filho. Reid aguardava a chegada de um tal “Borges”, escritor argentino cujos poemas e contos ele traduzia, mas de quem o jovem americano nunca ouvira falar. Parini estava lá quando Borges chegou: era um senhor de 71 anos, cego e excêntrico, que caminhava com o auxílio de uma bengala, metido num terno puído e ostentando uma gravata das mais extravagantes (azul, com peixes voadores, cachoeiras cor de laranja e restos de comida). Parini não sabia ainda que aquele era Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos maiores escritores do século XX, autor de Ficções , O aleph e outras celebradas antologias de contos.

Quando uma emergência familiar o obrigou a ir para Londres, Reid pediu a Parini que cuidasse do escritor cego hospedado em sua casa. Borges, no entanto, não planejava ficar trancado à espera do retorno de seu anfitrião. Ao saber que Parini tinha um carro, propôs que fizessem uma viagem até Inverness, nas Terras Altas escocesas. Borges apelidou Parini de Giuseppe e seu carro de Rocinante, uma homenagem ao cavalo de Dom Quixote de la Mancha, e ainda pediu ao americano que lhe descrevesse as paisagens. A viagem com Borges durou poucos dias, mas rendeu anedotas que Parini passou décadas contando. “Na primeira vez que saí com minha mulher, em 1978, eu falei: ‘Deixe eu te contar uma história engraçada sobre uma viagem que fiz com um escritor argentino na Escócia’”, disse Parini numa conversa por Skype com ÉPOCA de seu sítio no estado de Vermont, no Nordeste dos Estados Unidos.

Borges com a mãe, em Londres. A Parini ele confidenciou que ela era ansiosa e tentava dominá-lo. Foto: Harry Dempster / Daily Express / Hulton Archive / Getty Images
Borges com a mãe, em Londres. A Parini ele confidenciou que ela era ansiosa e tentava dominá-lo. Foto: Harry Dempster / Daily Express / Hulton Archive / Getty Images

Professor do Middlebury College, Parini é autor de mais de 30 livros de poesia, ficção, crítica literária e também de biografias romanceadas de figuras ilustres como o filósofo judeu alemão Walter Benjamin, o escritor americano Herman Melville e Jesus. Um de seus romances, A última estação , publicado no Brasil pela Record, narra os últimos dias do escritor russo Liev Tolstói e inspirou o filme homônimo que rendeu indicações ao Oscar aos atores Helen Mirren e Christopher Plummer. Em seu livro mais recente, Borges and me: an encounter ( Borges e eu: um encontro , na tradução do inglês), que saiu nos Estados Unidos em agosto, ele recorda sua inusitada viagem com o escritor argentino.

Parini resolveu escrever Borges and me há três anos, quando acompanhava, na Itália, as gravações de um filme sobre o escritor americano Gore Vidal, outro biografado seu. Ao ver o cineasta inglês Ross Clarke carregando um livro de Borges, Parini lhe narrou sobre quando atravessou a Escócia com o argentino. “Clarke disse que poderíamos fazer um filme com essa história”, contou Parini. “Mas eu sei como as coisas são e disse para ele que preferia escrever essa história antes. Voltei para os Estados Unidos e os meses se passaram. Quando finalmente me sentei para escrever, em pouco tempo eu já tinha mais de 300 páginas”, disse. Parini confirmou a ÉPOCA que o livro também será adaptado para o cinema pelo americano Andy Patterson.

“Em entrevista a ÉPOCA, Jay Parini, o autor de ‘Borges and me’, disse que suas memórias romanceadas do encontro com o autor argentino vão virar roteiro de um filme”

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A primeira versão de Borges and me foi escrita na terceira pessoa. O protagonista não era Parini, mas um rapaz chamado Luke. “Como não levei nenhum gravador comigo na viagem, tive de inventar os diálogos e me apoiar em minha memória e também em minha imaginação”, explicou. “Minha mulher me perguntou o que é verdade e o que é ficção no livro e eu respondi que, depois de 50 anos, tenho dificuldade em separar o que Borges me disse do que eu inventei.” No diário que mantinha na época, ele anotou apenas um de seus diálogos com o escritor. Parini perguntou por que o argentino preferia as narrativas curtas e nunca escrevera um romance. Borges teria respondido que, por anos e anos, planejara um romance monumental, povoado por gaúchos valentes, prostitutas, criminosos, amantes e até parricidas. Um dia, sentou-se, escreveu uma resenha de uma página desse livro tão sonhado e se deu por satisfeito. De fato é famoso o conselho borgeano: escrever como se o texto fosse o resumo de uma obra já escrita.

Parini se assumiu como protagonista do livro por insistência de seu editor, mas prefere descrever Borges and me como “autoficção” ou “memórias romanceadas”. “Tentei deixar o livro o mais próximo possível do que realmente aconteceu. Memória também é invenção”, disse. O próprio Borges não acreditava que houvesse uma divisão clara entre fato e ficção e costumava embaralhar as duas coisas em sua obra. No livro, como se abençoasse eventuais licenças poéticas de Parini, o argentino lembra que a palavra “ficção” vem do latim fictio , que quer dizer moldar, dar forma.

Na viagem ao norte da Escócia, Parini ia descrevendo o relevo e os lagos, como o Ness, ao argentino já cego. Foto: Keystone / Getty Images
Na viagem ao norte da Escócia, Parini ia descrevendo o relevo e os lagos, como o Ness, ao argentino já cego. Foto: Keystone / Getty Images

O Borges que emerge das memórias romanceadas de Parini poderia ter sido inventado por um leitor atento que buscasse, nos textos do argentino, pistas de sua personalidade. É um Borges irônico, obcecado por bibliotecas, escritores ingleses, tigres, espelhos, labirintos, línguas mortas, valentia, coincidências e duplos. O jovem Parani, aliás, parece ele próprio um duplo do velho escritor. Em suas conversas, os dois descobrem algumas semelhanças: ambos tinham mães ansiosas que lutavam para dominar seus filhos adultos. Ambos estavam apaixonados.

Quando visitou a Escócia, Borges se separava de sua primeira mulher, Elsa Astete, e estava encantado pela jovem que viria a ser sua segunda esposa, María Kodama. Já Parini estava apaixonado por Bella, uma moça de cabelos acobreados que ele conhecera num protesto contra a Guerra do Vietnã. O problema era que Bella tinha um namorado, um rapaz chamado Angus. Para tentar consolar Parini, o argentino contou que, quando moço, fora rejeitado pela poeta Norah Lange, seduzida pelo charme do também poeta Oliverio Girondo. “Borges ficava me interrogando sobre minha vida e se surpreendia pelo tanto que tínhamos em comum, como mães agressivas e difíceis”, afirmou Parini. “Ele era obcecado por antepassados que haviam lutado no Exército argentino, e eu tenho três tios que lutaram na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.”

“María Kodama, viúva de Borges, se disse horrorizada com as descrições de Parini e ameaçou ‘agir de alguma maneira’ se o livro for lançado na Argentina”

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Borges and me também serve de introdução à obra do argentino. Parini só se debruçou sobre os contos, ensaios e versos do argentino depois de conhecê-lo na Escócia e incluiu, em suas memórias romanceadas, referências e discussões sobre alguns dos de seus textos mais famosos, como “Funes, o memorioso”, “O sul”, “A Biblioteca de Babel” e “As ruínas circulares”. O que mais impressiona o leitor em Borges and me , no entanto, são as cenas em que Borges aparece lambendo a lombada de couro de um livro, entornando canecas e mais canecas de cerveja, dividindo uma cama com seu jovem companheiro de viagem, escorregando na lama e urinando à beira da estrada. “Quis mostrar o lado humano de Borges. Espero não ter exagerado”, disse Parini.

Jay Parini na época em que estudava na Escócia. Foto: Arquivo pessoal
Jay Parini na época em que estudava na Escócia. Foto: Arquivo pessoal

Na opinião de Kodama, a viúva de Borges, ele exagerou — e muito. Em entrevista ao jornal argentino La Nación, ela afirmou que o livro de Parini é “uma coisa escatológica” e que “nenhuma das coisas que diz é verdade”. A viúva disse ter acompanhado Borges nessa viagem à Escócia e que “este homem (Parini) jamais se aproximou”. Parini negou que ela estivesse por perto quando ele conheceu Borges. Kodama não gostou nada dos trechos em que seu falecido marido aparece bebendo litros e litros de cerveja escocesa. “Ele nunca bebeu cerveja”, disse ao La Nación. “Uma vez me disse que, quando era jovem, bebia vinho, mas parou depois de um coquetel em que ouviu alguns amigos do pai comentando: ‘Que pena, se o filho do Borges continuar assim, vai ser um beberrão’. Foi aí que ele parou de beber vinho.” No livro de Parini, Borges elogia o vinho argentino, mas diz que seus conterrâneos gelavam demais a cerveja, o que tornava a degustação da bebida menos prazerosa.

“Esse homem não bate bem da cabeça, ou é igual a tanta gente, que a mim me dá pena, de verdade, porque tentam se escorar no nome de Borges para ter um momento de glória”, disse a viúva, que ainda ameaçou “agir de alguma maneira” se Borges and me for lançado na Argentina. “Não posso permitir isso”. O selo emecé, do Grupo Editorial Planeta, anunciou que pretende publicar o livro em 2021. ÉPOCA tentou contatar Kodama por meio da Fundação Internacional Jorge Luis Borges, mas não houve retorno até o fechamento desta edição.

A capa do livro recentemente lançado nos Estados Unidos. Foto: Divulgação
A capa do livro recentemente lançado nos Estados Unidos. Foto: Divulgação

Parini não conteve o riso quando ÉPOCA mencionou as críticas de Kodama a seu livro. “Ela ficou chateada porque no livro Borges vai muito ao banheiro”, debochou. “Todo mundo sabe que Kodama é muito possessiva e que se apresenta como uma guardiã da memória de Borges, que para ela é sagrada. Mas eu também tenho direito a minhas memórias.” Kodama não costuma pensar duas vezes antes de tomar medidas judiciais contra aqueles que, em sua opinião, desonram a memória de seu marido. Em uma de suas brigas judiciais mais famosas, ela conseguiu que as traduções assinadas pelo americano Norman Thomas di Giovanni fossem retiradas de circulação. Di Giovanni havia acordado com o próprio Borges o que receberia por suas traduções, mas a viúva entrou na Justiça para renegociar a divisão de royalties. Em 2006, processou Jean-Pierre Bernès, funcionário da editora francesa Gallimard, e exigiu as cópias de centenas de fitas de diálogos entre ele e Borges gravadas pouco antes da morte do escritor. Em 2011, acusou de plágio o escritor argentino Pablo Katchadjian, autor de El aleph engordado , um experimento literário que consistia no acréscimo de 5.600 palavras a um dos mais celebrados contos de Borges.

Borges com María Kodama, que ficou furiosa com a publicação do livro de Parini. Foto: Marcello Mencarini / Bridgeman Images
Borges com María Kodama, que ficou furiosa com a publicação do livro de Parini. Foto: Marcello Mencarini / Bridgeman Images

As ameaças da viúva, acredita Parini, podem ajudar a vender Borges and me . “Sugiro que os editores argentinos coloquem na capa uma declaração de Kodama: ‘Este livro é um horror!’”, brincou. Se for processado, Parini já tem um argumento para usar em sua defesa: o próprio Borges o transformou em um personagem de ficção. Em 1972, quando lançou seu primeiro livro de poemas, Parini enviou uma cópia ao argentino. Em 1976, quando saiu, nos Estados Unidos, uma nova edição de Crônicas de Bustos Domecq , livro de Borges e Adolfo Bioy Casares, Parini tomou um susto. No conto “Gradus ad parnasum”, aparece a referência a um ensaio sobre a obra do escritor Santiago Ginsburg publicado na revista literária The New York Review of Books e assinado por Jay Lee Parini “eminente professor” do Dartmouth College. Parini, que enviou a ÉPOCA fotos de páginas do livro para comprovar o que disse, de fato lecionou em Dartmouth, mas nunca publicou ensaio nenhum sobre Santiago Ginsburg, escritor que tampouco existiu.

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