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A presença de cocares com diversas cores e tamanhos no Petit Trianon deixava claro que seria uma noite diferente na sede da Academia Brasileira de Letras (ABL). Pouco antes das 20h, os acadêmicos Edmar Bacha, Joaquim Falcão e Ruy Castro saíram do Salão Nobre com seus fardões bordados a ouro e cruzaram o corredor formado por seguranças de terno e gravata, no saguão apinhado de gente, para buscar o protagonista da cerimônia. Quando Ailton Krenak saiu do clausuro protocolar de 15 minutos no Salão Francês, indígenas dos povos Guajajara, Pataxó, Xavante, Tupinambá, entre outros, agitaram seus maracás e começaram a cantar e dançar no chão de mármore, sob o lustre de cristais.

Líder espiritual da etnia Krenak, do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, autor de livros como "Ideias para adiar o fim do mundo" e "A vida não é útil", Aílton estava para se tornar o primeiro indígena aceito na academia fundada por Machado de Assis em 1897. O pensador e ambientalista vestia o fardão dos imortais da Avenida Presidente Wilson, mas tinha na cabeça a inseparável bandana com grafismos do povo Huni Kuin, do Acre. Enquanto se dirigia ao Salão Nobre para a cerimônia de posse, na última sexta-feira, o ativista era escoltado por uivos de celebração e um alegre, sonoro, cântico guajajara de boas-vindas, entoado pelo grupo multiétnico da Aldeia Maracanã, na Zona Norte do Rio.

- Aílton não está sozinho lá na frente. São 305 povos no Brasil dando apoio a ele. Só no Rio existem mais de 10 mil indígenas, mas se a gente não usa penas na cabeça, ninguém nos enxerga. Nunca tínhamos pisado na ABL, mas hoje estamos aqui, aldeando esta casa. - disse Julia Xavante, promotora de eventos da Aldeia Maracanã, após o discurso de posse do novo acadêmico. - Ailton conquistou um espaço muito importante para os povos originários. Ele fala as coisas com um jeito "morde e assopra", fazendo as críticas necessárias sem que o colonizador se sinta agredido. Não dá para falar só de belezas quando seus parentes estão sendo mortos em todo o Brasil.

Ailton Krenak mostra diploma da ABL durante cerimônia de posse — Foto: Alexandre Cassiano
Ailton Krenak mostra diploma da ABL durante cerimônia de posse — Foto: Alexandre Cassiano

Jornalista de formação, Aílton é sobrevivente do massacre sofrido pelos krenaks desde o contato com o homem branco, no século XVI. Expulsos de suas terras e quase dizimados, eles ocupam hoje uma área restrita no Vale do Rio Doce. Em 2015, sua população de cerca de 700 indivíduos foi duramente impactada pelo rompimento da barragem com rejeitos da mineradora Samarco. O tsunami de detritos envenenou o rio que os krenaks chamam de Watu ("avô"), matando a sua fonte de sustento. A chegada de Ailton à ABL é causa de euforia para outros povos, que, como os "parentes" do Rio Doce, resistem ao fim de seu mundo desde que as caravelas portuguesas surgiram na Bahia, há mais de 500 anos.

- Darcy Ribeiro perguntava por que os indígenas (da época) não viraram as canoas daqueles caras com escorbuto, fracos e doentes, e não os afogaram logo na praia. Eu imagino a sucessão de canoas que viriam depois, com gente querendo saber quem afogou seus primos. Essas abordagens trouxeram a língua portuguesa, que se instalou aqui e se espalhou como uma planta, como esses bordados da nossa roupa. - refletiu Ailton, durante o longo discurso de posse, antes de homenagear os "parentes" presentes no Petit Trianon . - Não vou mencionar cada um, mas temos aqui uma significativa presença de povos, o que promove uma importante fricção linguística com o português da academia.

Aílton tinha consigo um texto escrito com ajuda do poeta Antônio Carlos Sechin para lembrá-lo de falar sobre os membros da ABL que ocuparam sua cadeira, a de número 5, antes dele. Mas fez um discurso quase todo de improviso, algo raro, se não inédito, nas tradicionalmente formais cerimônias de posse da academia. Não se poderia esperar menos do homem que, em 1987, aos 34 anos, besuntou o rosto com tinta de jenipapo em plena tribuna da Assembleia Constituinte, enquanto defendia no Parlamento o direito à existência dos povos da floresta. A cena, que entrou para a história da redemocratização, foi exibida no telão quando a escritora Heloísa Teixeira apresentou o novo acadêmico no Salão Nobre.

Ao romper com o protocolo dos discursos lidos, o mineiro de Itabirinha foi coerente com a tradição da oralidade na transmissão do conhecimento entre gente da floresta. Ailton não escreveu nenhum livro publicado com seu nome na capa. Todos foram redigidos com base em palestras, ou em entrevistas, realizadas da mesma forma que se viu na ABL. Ativista desde os anos 1980, o jornalista visita aldeias e cidades do país todo para falar em conferências, debates, cerimônias e afins. Ele se apoia no saber indígena para fazer críticas ferozes ao consumismo e à destruição do planeta. Nunca leva um texto pronto. Durante a pandemia, as lives com a sua participação se tornaram um bálsamo.

- Faz parte da nossa cultura da oralidade, a gente sente a reação das pessoas e compõe o discurso no momento - explicou o advogado Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas. - Ailton não estava falando sozinho naquela tribuna, tinha a força de todos os ancestrais.

Fernanda Montenegro saúda Krenak após entregar a ele colar de imortal — Foto: Alexandre Cassiano
Fernanda Montenegro saúda Krenak após entregar a ele colar de imortal — Foto: Alexandre Cassiano

Nascido em 1988, Terena se diz filho da Constituição Federal promulgada naquele ano. Segundo ele, foi graças a ativistas como Ailton Krenak que a chamada Carta Cidadã inaugurou um novo capítulo da relação entre os povos originários e a República. Na sua fala, o novo acadêmico lembrou que, antes da Constituinte, os indígenas eram "tutelados" pelo Estado, como se fossem crianças, e que, na ditadura, o governo dizia que a população originária deveria evoluir para ser "civilizada". A Constituição rompeu com isso, reconhecendo o direito dos povos da floresta a suas culturas e terras de origem. Desde então, não apenas reservas foram demarcadas, mas os próprios indígenas ganharam força política.

Na cerimônia na ABL, Eloy Terena se sentou na mesa do Salão Nobre, assim como a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana. O advogado esteve na ABL com o mesmo cocar que usou no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2022, quando fez uma sustentação oral contra a tese do marco temporal das terras indígenas, então em julgamento na Corte.

- A minha participação no Supremo, os discursos da Celia Xakriaba (deputada federal) no Congresso e o trabalho da Sônia Guajajara (ministra dos Povos Indígenas) são coisas conectadas com a chegada do Ailton na ABL. É a consolidação do protagonismo indígena nos vários espaços - analisou ele.

Ao longo de seu discurso, o líder krenak pôs os dedo em feridas abertas pela crueldade dispensada ao povo da floresta no decorrer dos séculos, criticou o passado escravocrata brasileiro e suas heranças no país que temos hoje e alfinetou, com elegância, a própria ABL, por apenas recentemente se abrir para a diversidade em seus quadros. Também condenou o bombardeio israelense na Faixa de Gaza. De acordo com o cantor e compositor Gilberto Gil, que tomou posse naquela mesma casa em 2022, o novo colega, quando terminou sua fala, comentou com ele que deixara de tocar em alguns assuntos que considerava importantes. Mas o tropicalista baiano tratou de aquietar o coração do mineiro.

- Falei que ele vai ter tempo para fazer isso aqui, nas palestras e nos encontros que a academia promove internamente e para fora. Ele já é um viajante, anda muito por aí. E pela academia vai ter oportunidade de viajar muito mais - disse o músico, que elogiou a eleição do indígena. - A casa mostra que se dispõe, finalmente, a receber a pluralidade brasileira. Ailton representa isso de forma cintilante. Ele tem um gosto verdadeiro pela palavra. É um lavrador de palavras. Um palavrador.

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