Se o poeta é um escultor, como costumava dizer o escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, o que poderia ser, afinal, o quadrinista?
Gaúcho de Pelotas, o desenhista Odyr Bernardi faz HQs há pelo menos 20 anos e, depois de adaptar para o gênero “A revolução dos bichos”, de George Orwell, e “O leão e a pátria”, de Horacio Quiroga, ele mergulha agora, de forma profunda, na poesia de Cabral.
O resultado de sua versão em quadrinhos para “Morte e vida Severina” é visualmente tão impactante quanto era de se esperar. Suas pinceladas em tinta acrílica parecem rimar com os versos do escritor que, assim como o ilustrador, experimentou ser retirante um dia. Ambos, coincidentemente, se retiraram profissionalmente para o Rio de Janeiro. Enquanto Cabral anos depois seguiu a carreira diplomática e emigrou para a Europa, Odyr fez o caminho de volta para sua cidade natal e abraçou a pintura. Retirantes e emigrantes, portanto, têm muito em comum. E o desenhista faz uso desta relação em sua adaptação da obra original. Há referências a emigrantes africanos e mexicanos no quadrinho, além de imagens que lembram as inúmeras mortes provocadas pela pandemia. Genial, pois faz com que a obra de Cabral ganhe frescor e converse com o presente.
Outro trunfo do álbum é a ausência de quadros e, consequentemente, de sarjetas, proporcionando cenas mais orgânicas e permitindo que a arte respire livremente pelas 150 páginas da HQ.
Poesia ao poema
Também é bom ressaltar que a solução gráfica de esconder os olhos dos personagens na sombra de suas sobrancelhas trouxe uma dramaticidade à história que a poesia sequer imaginou precisar. Quiçá Cabral.
Por fim, a decisão editorial de anexar ao fim da HQ a versão integral do texto só contribui para a mais completa tradução da obra original. Perfeito e ideal para atrair leitores que não conheciam o poema ou querem descobrir uma bela versão em quadrinhos de um clássico da literatura brasileira. A leitura da adaptação não subsitui a leitura do livro de Cabral, mas acrescenta poesia ao poema. E, assim, o quadrinista se torna um poeta visual, fechando o ciclo.
Cotação: ótimo.