Cultura
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Por — Rio de Janeiro

"Não atrapalha teu pai, que ele está escrevendo". Esta foi a frase que o cineasta José Henrique Fonseca mais escutou na adolescência dentro do apartamento da família, no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Filho do escritor Rubem Fonseca (1925-2020) e da tradutora Thea Maud, ele colava os ouvidos nas portas fechadas do escritório do pai e só o que conseguia ouvir eram as músicas de Jorge Bem e Rolling Stones, que embalavam o bater dos dedos do autor contra o teclado da máquina de escrever.

Essa lembrança enche o coração do diretor de saudade. Memória afetiva de um tempo que ele pretende revirar no documentário que roda sobre o pai. Em processo de produção, o filme vai celebrar o centenário do autor, em 2025. Responsável por filmes como "O homem do ano" e "Heleno", e por séries como "Mandrake", o cineasta também está à frente da produção de um longa de ficção baseado na "história de amor, sexo, drogas e assassinato" dos estilistas Frankie Mackey e Amaury Veras, criadores da lendária marca Frankie & Amaury.

Frankie Mackey e Amaury Veras da lendária grife Frankie & Amaury — Foto: Arquivo / Ana Branco
Frankie Mackey e Amaury Veras da lendária grife Frankie & Amaury — Foto: Arquivo / Ana Branco

Há ainda "Meu cérebro eletrônico" (título provisório), filme que escreve em parceria com a roteirista Camila Agustini. É sobre uma menina que sofre de epilepsia e implanta um chip no cérebro, que ajuda a prever convulsões (e pelo qual se apaixona!). Enquanto toca os próximos projetos, ele colhe os louros do sucesso de "Bom dia, Verônica", série escrita por Raphael Montes e Ilana, que dirigiu. A terceira temporada da atração chegou, recentemente, ao Top 3 Global da Netflix.

Tainá Müller e Rodrigo Santoro em "Bom dia, Verônica" — Foto: Divulgação / Alisson Louback
Tainá Müller e Rodrigo Santoro em "Bom dia, Verônica" — Foto: Divulgação / Alisson Louback

—Outro dia, um amigo me disse que passeava por Los Angeles quando uma americana comentou que estava assistindo. Uma outra amiga falou que a série era assunto no salão. Tem gente que odeia, tem gente que gosta. Se está sendo discutida, ótimo. Mas se me perguntar se prefiro quebrar a banca no Brasil ou dar certo lá fora, digo aqui, com certeza. O mercado falado em língua portuguesa ainda é pequeno lá fora. Os grandes números são do Brasil, que é uma potência de views —, diz o diretor.

Ele arrisca um palpite para explicar a boa aceitação da série.

— Tem tema relevante, o abuso feminino, mas não fica só na denúncia. Há ação, personagens populares e bizarros. A primeira temporada entrou forte e fidelizou o espectador. Isso facilitou as outras temporadas e resgatou as anteriores. Streaming tem isso: reação em cadeia.

Dentro de um escritório no Jardim Botânico, Zona Sul carioca, onde funciona a Zola, produtora que fundou em 2012 após deixar a Conspiração, Zé Henrique, como é chamado pelos amigos, fala com empolgação sobre seus planos. A desenvoltura faz pensar sobre o porquê de ele ser tão avesso a entrevistas. Low profile, Zé quase nunca fala a jornalistas. Homem dos bastidores, não fica à vontade no foco. Menos ainda quando o assunto é sua vida pessoal.

Herdou a característica que forjava a personalidade de seu pai: discrição. Pai de quatro filhos com a atriz Cláudia Abreu, de quem se separou há um ano e meio, ele só deixa escapar que a amizade e a parceria profissional continuam.

— Cacau é sócia da Zola, a gente tem trocentos projetos juntos. Fora o projeto principal que são nossos filhos.

Bem nascido e criado, ele sempre carregou a imagem de um dos diretores mais gatos do audiovisual brasileiro. Às vésperas de completar 60 anos, será que se vê como as pessoas o enxergam? Reflete sobre o quanto do sucesso pode ser fruto do privilégio?

— A gente nunca se vê de fora, né? Esse gato aí eu acho que já foi (risos)... Tenho herança cultural do meu pai, minha mãe, minha irmã (Bia Corrêa do Lago), que é livreira, e meu irmão, fotógrafo (Zeca Fonseca). O universo lá em casa sempre foi esse e sempre enchi a boca para dizer de onde vim. Me vejo como um privilegiado nesse sentido. Gosto da minha origem, de ter construído a minha família, filhos, os amigos. Penso que isso é fruto do meu interesse pelo ser humano.

Diz estar mais interessado em pensar sobre o que levamos da vida: "Essa coisa imaterial que é o amor".

— Porque beleza a gente perde rápido. Todo mundo vai ficar encarquilhado, caquético (risos). Dinheiro também vai embora... Vivo dizendo para os meus filhos: "Ganha teu dinheiro e separa para a sua velhice".

Zé Henrique tem mais aspectos em comum com o pai além da famosa discrição, como observa Tainá Muller, protagonista de "Bom dia, Verônica".

— Ele é um cara da palavra. Fica evidente que é filho de Rubem nas primeiras conversas. Literato que é, faz humor com aquele niilismo típico de quem leu demais.

Dirigida por ele no curta "Cachorro!", Drica Moraes o define como "um dos diretores mais cultos" com quem já trabalhou.

— Lê muito, conhece tudo de literatura e cinematografia. Questiona profundamente as curvas, intensidades e marcas dos personagens, trabalha com o corpo orgânico do ator vivo e com muita referência. O que o torna um diretor complexo, bom de trabalhar.

Também no elenco de "Bom dia, Verônica", Rodrigo Santoro destaca a busca eterna do diretor pelo "frescor".

— Está sempre atrás do que podemos encontrar juntos no set. Cria uma atmosfera em que nos sentimos livres e acolhidos. Rege com o coração aberto.

Já Du Moscovis, que fez a primeira temporada do programa da Netflix e também a série "Lúcia McCartney", ressalta o "caos criativo" do cineasta.

— É uma figura inquieta artisticamente, que escreve muito bem, tem compreensão artística dramatúrgica não óbvia. Depois do processo de preparação, ele propõe algo novo no set. Aparentemente, um processo caótico para quem gosta de tudo definido. Me sinto numa zona de desconforto interessante com ele.

Um desconforto que Fernanda Montenegro deve ter sentido quando teve que deitar sobre 30 litros de sangue falso no filme "Cachorro!".

— A gente ficou conversando sobre a cena, eu olhava para ela, olhava o sangue... Ela viu que eu estava sem graça. Então, disse: "É pra deitar, né?". E foi lá e, pá, deitou.

Em solidariedade, ele deitou junto. Dirigiu a cena lambuzado na poça. É por se ver como operário da profissão que não gosta de posar para fotos sorrindo.

—Não tem glamour. Diretor está sempre precisando de um dinheiro para filmar, passando o pires. E é um animador, precisa deixar os atores à vontade — diz. — O que eu mais gosto no set é o ator. É o que dá eletricidade. Não se faz um filme bom sem bons atores. Às vezes, gasta-se 40 minutos num plano com um objeto sendo que você tem um Rodrigo Santoro ali ao lado, sabe? Ninguém fala que o filme é bom porque tem contrastes legais. É o ator que faz o negócio acontecer.

Ele ainda não sabe quem vai interpretar os protagonistas de "Frankie & Amaury", longa de ficção inspirado na vida dos estilistas. Mas está bem animado para contar essa história, que inclui um dos crimes de maior repercussão na cidade no início dos anos 2000. Amaury Veras foi assassinado no Arpoador. Para a polícia, ele foi morto por Frankie.

— É uma história muito cabeluda. Fala de um Rio de Janeiro desbundado, no final dos anos 1980, em que houve a descoberta da Aids, que Amaury contrai. O filme vai desde um sexo desenfreado, até as pessoas acordando para aquilo — adianta. — Argentino, Frankie era casado, veio para o Rio. Eles se conhecem e é paixão total. A mulher, grávida, volta para a Argentina. Eles vão cheirando e conhecendo todo mundo. Vão para Côte d'Azur. Frank trabalha limpando barco de rico e, Amaury como boy. Voltam dizendo que um foi figurinista da Kenzo. A mentira foi colando, tudo vai dando certo e eles criam a marca. O pulo do gato é porque Amaury, quando foi boy da Kenzo, aprendeu a cortar couro com um mestre e virou o cara que melhor cortava couro no Brasil.

Na verdade, é um filme de amor, resume Zé Henrique.

— Mostra a ascensão e queda dos dois, mas é um filme sobre esse encontro deles, que se amavam mesmo.

Obra que passa de pai para filho

Se discrição é ponto de convergência entre pai e filho, é o respeito por ela que vai nortear “José”, documentário de José Henrique Fonseca sobre Rubem Fonseca.

— Não vou fazer um filme que vai revelar o escritor recluso, contar tudo que ele não contava — brinca Zé Henrique. — Papai dizia que a maior ferramenta do escritor é a observação e que perde isso quando é reconhecido ou vira celebridade. Virou um cara pop, citado em novela de Gilberto Braga, mas como não dava entrevista, ninguém sabia quem ele era.

José Henrique Fonseca com o pai, Rubem — Foto: Arquivo pessoal
José Henrique Fonseca com o pai, Rubem — Foto: Arquivo pessoal

O cineasta ainda tem fresca na memória a imagem do pai mal-humorado na mesa de almoço do apartamento da família, no Leblon, após perder as 60 páginas do livro “Bufo & Spallanzani” que havia escrito num computador Comodore. Mas o doc, previsto para novembro do ano que vem, vai bem além da intimidade de Rubem, abordando temas de várias ordens. Como o impacto de seu estilo na literatura brasileira.

— Ele surpreendeu com sua literatura ágil e cortante, que sacudiu o cenário na época, influenciando escritores, o que segue acontecendo. Muita gente bebeu ali, se não estaria todo mundo escrevendo com o rebuscamento do Machado de Assis. Ele mostrou o Brasil, até então maquiado, como ele é. Colocou na boca dos personagens coisas que Foucault falava — observa Zé Henrique, mergulhado em críticas literárias que dissecavam obras como “Os prisioneiros”, “A coleira do cão”, “Lúcia MCcartney”, “Feliz Ano Novo” e “O cobrador”.

Em depoimento para o doc, Chico Buarque, amigo de Rubem desde quando frequentavam atos políticos pró-abertura, contou sobre o susto que levou quando ele, então alto executivo de uma multinacional, começou a escrever. Chico destaca também a face humanista. Um lado do pai que Zé Henrique conhece bem.

— Cansei de vê-lo conversando com moradores de rua, se interessava mesmo pelas histórias das pessoas. Ajudava o lixeiro Vagner, da Comlurb. Antes de sair de casa, sempre falava: “Os 50 reais do Wagner” — conta.

Nos últimos anos de vida, pai e filho iam todos os dias caminhar pela Praça Antero de Quental, no Leblon. Rubem gostava de cantarolar músicas de Noel Rosa. Os dois sentavam num banco, falavam da vida e admiravam os famosos ipês plantados pelo escritor, que se definia como um “dendrólatra” (amante das árvores). Ele até salvou os ipês da chegada do metrô. Conseguiu que fossem plantados em outro canto da praça, onde a prefeitura instalou uma placa com seu nome.

Rubem e o filho, logo após o nascimento da neta, Maria Maud, filha mais velha de Zé Henrique e Cláudia Abreu — Foto: Arquivo pessoal
Rubem e o filho, logo após o nascimento da neta, Maria Maud, filha mais velha de Zé Henrique e Cláudia Abreu — Foto: Arquivo pessoal

Esse humanismo é, para Zé Henrique, prova que seu pai não era "direitista", pecha que tentaram colar no escritor e um dos assuntos espinhosos que o doc vai abordar.

— Não quero fazer um filme chapa branca. Meu pai era executivo de multinacional num momento pré-golpe e começaram a fazer uns programas no tom de "Brasil grande". Quando ele sentiu que negócio estava ficando estranho, saiu — explica o diretor. — Ele foi menos político e mais humanista. Mas deixou de combater? Não. Ia a todas as reuniões. Como um cara que tem livro censurado pelo governo ("Feliz ano velho"), processa a União durante a ditadura e conversa com morador de rua pode ser de direita? Quando foi a Cuba visitar Fidel, o chamaram de comunista.

A famosa entrevista concedida por um anônimo “José” ao repórter de uma TV brasileira que não o reconheceu, durante a queda do Muro de Berlim, também estará na tela. Assim como cartas do período em que ele, formado em direito penal, contava pegar carona na viatura da Academia de Polícia em Nova Iorque rumo ao MoMA. Lá assistia a filmes de René Clair e Eisenstein.

Os documentos foram garimpados por Bia Corrêa do Lago, irmã de Zé Henrique, que junto com o marido, o editor Pedro Corrêa do Lago, lançará uma fotobiografia do pai. O livro trará imagens assinadas por diferentes fotógrafos, entre eles, Zeca Fonseca, também filho de Rubem.

— O sonho do meu pai era ser cineasta. Tentou se inscrever no curso de cinema, mas não tinha vaga. Eu virei cineasta porque, talvez, tenha sido uma vaga ali que achei (risos). Minha formação é muito do meu pai e do meu irmão. Pensei: escrever não vai dar, fotógrafo também não posso ser, então vou ser os dois.

Zé Henrique quer construir, no filme, uma narrativa "thriller, noir, meio 'Ghost Dog', do (Jim) Jarmusch Jamurch", com músicas "subterrâneas, sedutoras". Os depoimentos ele está gravando em fundo preto, bem iluminado. Além de Chico, Caetano Veloso, o professor Dionísio da Silva, o escritor Marçal Aquino, entre muitos outro nomes, vão falar.

— Meu pai ajudou muita gente a começar a escrever. Jô Soares falava isso, Chico, Caetano. Tinha esse negócio de incentivar. Falava "tem que ler, tem que escrever". Quando Paulo Coelho explodiu, toda a inteligência criticou e ele defendeu: "Esse cara é bom, porque está fazendo as pessoas lerem", falava. Se gostava daquilo eu não sei, mas era um defensor porque Coelho divulgava a literatura. Meu pai sempre foi contra esse negócio de glamourização da função do escritor.

Família completa na ABL, que concedeu a Rubem Fonseca o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, em 2015 — Foto: Arquivo pessoal
Família completa na ABL, que concedeu a Rubem Fonseca o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, em 2015 — Foto: Arquivo pessoal

O olhar de testemunha ocular de dentro dessa história percorrerá todo o filme, dirigido por alguém que não teve medo de construir sua trajetória profissional dialogando com a obra do pai, adaptando personagens e livros do escritor para o audiovisual.

— Trabalhar com ele era um sonho desde pequeno. Muita gente me falava: "Cuidado para não ficar só filmando seu pai". Eu pensava: "Daqui a pouco, o cara vai morrer e eu vou sentir saudade disso". Ter trabalhado com ele foi um privilégio. Ele ia no set, dava pitaco, gostava daquele ambiente. Escrevemos juntos o roteiro de "O homem do ano". Me sinto igual a essas vinícolas em que o pai vai envelhecendo e o filho pega as uvas e começa a fazer o vinho. Me sinto herdando uma herdade.

Quatro anos após a morte dele, fica um vazio profissional além do emocional?

— Fica um vazio de interlocução de trabalho e também das questões existenciais que eu acho que não vou ter com ninguém nunca mais.

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