Cultura

No irregular 'DONDA', Kanye West se perde entre rapper genial e bilionário obcecado por marketing pessoal

Entre reflexões sombrias e pregação religiosa e repleto de participações especiais, novo disco traz um punhado de boas faixas, com raps fumegantes do conturbado astro
O rapper Kanye West, em 2020, na festa pós-Oscar da revista "Vanity Fair", em Los Angeles Foto: JEAN-BAPTISTE LACROIX / AFP
O rapper Kanye West, em 2020, na festa pós-Oscar da revista "Vanity Fair", em Los Angeles Foto: JEAN-BAPTISTE LACROIX / AFP

RIO - Não é uma tarefa simples seguir Kanye West, Yeezy, ye, ou qualquer outro nome com o qual a superestrela americana do rap de 44 anos queira ser chamada. Mais de um mês depois de anunciar o lançamento (e depois de alguns eventos em estádios nos quais apresentou versões não finalizadas do disco ), “DONDA”, seu décimo álbum, chegou ao streaming no domingo . Mas não sem problemas: Kanye acusou a gravadora Universal Music de ter soltado o disco sem a sua aprovação e sem a controversa faixa “Jail 2 (logo depois reposta), com participações de DaBaby e Marilyn Manson.

Reconhecido por um punhado de álbuns que mudaram os rumos do rap – como “The college dropout” (a estreia, em 2004), “My beautiful twisted dark fantasy” (2010) e “Yeezus” (2013) –, o MC e produtor genial, capaz de incisivos comentários sobre como os Estados Unidos tratam mal sua população negra, aos poucos foi cedendo lugar a um outro personagem: a celebridade multimilionária (bilionária), focada num insano marketing pessoal do qual acabaram fazendo parte negócios no campo da moda, um casamento com a socialite Kim Kardashian, distúrbios mentais , fervor cristão, um flerte com Donald Trump e uma candidatura à presidência dos Estados Unidos .

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Com 1h44 de duração, “DONDA” surge, depois das suas idas e vindas (ao longo das quais a opinião do público acerca do que ouviu nos pré-lançamentos pesou bastante), como um disco desigual mas até fluido. Ele equilibra as reflexões soturnas de “ye” (2018) com a pregação religiosa de “Jesus is king” (2019) . Dedicado por Kanye a sua mãe, Donda (que faleceu em 2007, após passar por uma cirurgia para redução de seios – um dos eventos traumáticos da vida do rapper), o disco apresenta, mais uma vez, o seu Evangelho. São histórias de sofrimento e redenção, algum ego, teologia da prosperidade e, de cima a baixo, uma mesma mensagem: a de que não dá para escapar da verdade.

Com sua capa preta, sem informações (bem como Prince desejou fazer em 1987 com seu abortado “Black Album”), “DONDA” é um disco de insistências. Algumas vezes, de forma literal, como na faixa de abertura, “Donda chant”, que consiste na repetição sem fim do nome da mãe, por uma voz feminina, em diferentes entonações. Minimalista em grande parte, o disco economiza em batidas mas esbanja em participações especiais de nomes dos mais variados graus de celebridade do hip hop – mas em momento algum elas estão ali para fazer contraponto, todas seguem o livro.

Kanye se move num emaranhado de referências (boa parte, à sua própria obra e biografia) nas faixas de “DONDA”. E, apesar de parecer só mais um convidado no disco, quando é necessário ele está lá descarregando torrentes verbais cheias de flow e invenção. Entre as faixas que fazem valer a audição do disco, destacam-se “Hurricane” (o seu sermão com The Weeknd), o rock “Jail” (com toda a categoria do parceiro Jay Z), o trap “Off the grid” (com Playboi Carti e Fivio Foreign), “Heaven & Hell”, a otimista e gospel “24” (com órgão de Cory Henry) e a catártica “Lord I need you”.

Mais para o fim, a parte de louvor domina o disco com “Keep my spirit alive”, “Jesus Lord” (que critica o sistema carcerário americano, com falas de Larry Hoover Jr., cujo pai está preso desde 1973), “New again” (com vocais de Chris Brown, estrela do r&b que coleciona acusações de agressão, até mesmo à ex-namorada, Rihanna) e “No child left behind”.

Mas “DONDA” só termina de fato após as versões alternativas de quatro faixas do álbum – entre elas, “Jail”, que volta com participações de DaBaby ( rapper recentemente teve shows cancelados por causa de comentários homofóbicos ) e do shock rocker Marilyn Manson ( acusado por várias mulheres, este ano, de abuso sexual ). Quanto maior o pecador, maior o perdão? Kanye West nunca deixa de surpreender.

Cotação: Regular