Exclusivo para Assinantes
Cultura Música

Crítica: Kanye West volta com assustadora franqueza em 'ye'

Em oitavo álbum, rapper passa a limpo seus tormentos mais recentes, mantendo suas qualidades de produtor e versador
Kanye West, em 2015, durante show em Yerevan, na Armênia Foto: Karen Minasyan / AFP
Kanye West, em 2015, durante show em Yerevan, na Armênia Foto: Karen Minasyan / AFP

RIO - Odeio ser bipolar, é maravilhoso — a declaração está escrita na capa de “ye”, o oitavo álbum do rapper Kanye West, lançado nesta sexta-feira e antecipado pelo artista na quinta, em uma audição para famosos, à beira da fogueira, em pleno campo, em Jackson Hole, no Wyoming.

O primeiro disco do cantor desde “The life of Pablo” (2016) — cuja turnê ele interrompeu ao fim daquele mesmo ano para tratar-se de problemas psiquiátricos — é, como se esperava, o equivalente musical a uma sessão de terapia. Ao longo de sete faixas, Kanye usa os seus talentos de versador e produtor (que não são poucos) para passar a limpo, com franqueza sem limites, os últimos meses de sua vida — que foram tudo, menos tranquilos.

A capa de “ye” — uma plácida foto das Montanhas Rochosas, que o rapper tirou na quinta de manhã, a caminho da festa de audição — parece tentar transmitir um pouco de paz para quem entra no relato de seus tormentos.

Sob um coral de vozes digitalmente tratadas, Kanye abre a sessão com “I thought about killing you”, sem se escorar em meias palavras: “Os pensamentos mais belos são sempre os mais sombrios / hoje eu pensei seriamente em matar você / contemplei, assassinato premeditado / e pensei em me matar, e eu me amo muito mais do que amo você, então...”

Esses versos foram o bastante para acender o fogo na internet — afinal, dadas as particularidades da língua inglesa, o “you” pode ser tanto “você” quanto “vocês”. Só que tem muito mais. Em “Yikes”, Kanye dá uma pista sobre o que significa “ye” (“é a minha terceira pessoa”), fala de sua batalha com os opioides no último ano (“Acho que Prince e Mike — referência a Michael Jackson, que assim como Prince morreu de overdose de drogas para combater a dor — tentaram me avisar”) e mostra a velha preferência do rapper por rimas absurdas (“Os niggas andaram tentando testar o meu Gandhi / só porque eu me visto como Abercrombie”).

LEIA TAMBÉM: Kanye West revela vício em opiáceos e explica colapso em 2016

Sexo e infidelidade são os temas de “All mine”, na qual Kanye faz referência à atriz pornô Stormy Daniels, que recentemente disse ter tido um caso com o presidente Donald Trump (o qual, por sinal, o rapper andou elogiando no Twitter — “somos ambos energia de dragão, somos irmãos” —para revolta e incompreensão do meio artístico).

Já na balada soul “Wouldn’t leave”, ele reflete sobre outro de seus últimos tuítes polêmicos: “Eu disse, “a escravidão ( dos negros ) é escolha” / Eles dizem: “Como assim, Ye?” / Pense só se eles me pegam num dia selvagem / Agora estou em 50 blogs, recebendo 50 ligações / Minha mulher ligando e gritando: “Estamos prestes a perder tudo!”. Marido de Kim Kardashian, Kanye põe em pauta o circo da mídia que se forma por ele ser quem é (uma celebridade) casado com quem é (outra celebridade).

A tendência francamente soul do disco rende bem ainda com “No mistakes” (cantada Charlie Wilson, vetarano da Gap Band), mas especialmente com a ótima “Ghost town”, que tem participação do cantor John Legend e guitarras pesadas, criando um clima emocional, de catarse: “Sim, agora nada me machuca mais, me sinto meio que livre”.

“ye” termina em alta, com “Violent crimes”, bela balada de Kanye para a filha North, com participação da rapper Nicky Minaj. “ Niggas são selvagens, niggas são monstros, niggas são cafetões, niggas são jogadores, mas só até os niggas terem filhas, aí eles ficam cautelosos”, admite o rapper.

LEIA AINDA: Rapper Kanye West sugere que escravidão nos EUA foi 'uma escolha'

Mea-culpa pelo machismo, busca de ajuda para seus problemas mentais, financeiros e químicos, egomania... tudo isso pode ser encontrado em “ye”, um álbum sincero e assustador, que se completa na próxima sexta com o lançamento de “Kids See Ghost”, disco epônimo da dupla que Kanye tem com Kid Cudi (rapper que está em “ye” em “No mistakes” e “Ghost town”). Mas até lá, a internet terá muito com o que se ocupar.

Cotação: Bom