A ela, Portugal deve o fato de sua música ter chegado, nos anos 2000, aos palcos mais prestigiados da Europa e dos EUA. Aos 50 anos de idade, moçambicana de origem e estrela da world music (hoje, global music), Mariza segue sua jornada pelo mundo. E agora, após aparições pontuais pelo Brasil, faz enfim uma extensa turnê no país. A excursão começa dia 19 em São Paulo e passa por Ilhabela (dia 20), novamente pela capital paulista (21), por Porto Alegre (25), Rio de Janeiro (26) e Brasília (27), antes de chegar a Recife (28).
— A vida tem sido muito generosa e simpática comigo. Me deu a oportunidade de cantar nessas salas míticas, fantásticas em tudo que se possa imaginar, do público à acústica — conta a cantora, em entrevista por vídeo. — Mas no princípio foi muito doído. Era bater com a bunda no chão, levantar e “vamos lá procurar mais um caminho”!
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‘Achavam que eu era brasileira’
Filha de pai português e mãe moçambicana, Mariza chegou a Lisboa aos 3 anos de idade com a família, que fugia da guerra civil. No novo país, o pai recomeçou a vida abrindo um restaurante na Mouraria, bairro conhecido por suas casas de fado.
— Ninguém fala sobre isso, mas entre 1974 e 1976 Portugal recebeu o maior número de refugiados que algum país da Europa já recebeu. E eu, que fui uma refugiada, sei perfeitamente o quanto é doloroso chegar num país onde as pessoas não querem nos receber — diz. — Foi um choque, tivemos que recomeçar. Eu era muito pequena. Ah, mas recordo-me de tudo perfeitamente!
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Em casa, sua formação musical foi, como ela diz, a de “uma portuguesa com pés africanos”.
— Por causa da minha mãe, eu ouvia de música das Antilhas a Cesária Évora. Ouvia Tito Paris, Bonga, Teta Lando. Ouvia milongas, MPB. Elis Regina, Roberto Carlos e Alcione eram recorrentes. E depois ouvi até música anglo-saxônica. Ou seja: eu cresci na global music e não sabia! — brinca ela, que aos 22 anos passou uma temporada no Brasil. — Eu tinha uns amigos que trabalhavam num navio de cruzeiro. Um dia, a cantora deles adoeceu e precisaram de uma substituta. Cheguei em casa e disse: “olha, mãe, daqui a uma semana eu vou para o Brasil.” O navio fez a travessia, atracou em Santos e saiu para percorrer a costa do Nordeste. Passei pela Bahia, por Recife, Fortaleza, Maceió, Morro de São Paulo... e a maior parte das pessoas achava que eu era brasileira!
Visual nada tradicional
Desde o começo de sua vida profissional, nas casas de fado de Lisboa, Mariza não se via como uma cantora de fado, mas simplesmente como uma cantora. E daquelas que não abdicam de sua personalidade por nada.
— Aquela imagem do fado, da roupa negra, o cabelo puxadinho... isso não sou eu! — enfatiza. — Eu tinha um cabelo que passava por baixo do bumbum, todo encaracolado, e quando saí da casa de fado com uma trança gigante e voltei com o cabelo quase militar e louro platinado, acharam um horror. Aí eu disse: “eu canto com a voz, não com o cabelo!” E, sobre as minhas tatuagens, toda gente dizia também que eram um horror. Mas eu sei por que eu as fiz, sei o que elas representam. Não tenho vergonha de ser quem sou.
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Com essa postura, Mariza chegou ao sucesso internacional, cuidando de trazer novos sabores para a tradicional música portuguesa. Em 2005, ela convidou o violoncelista e arranjador brasileiro Jaques Morelenbaum para produzir o seu terceiro álbum, “Transparente”, gravado no Brasil. Morelenbaum a guiou novamente em “Mariza canta Amália” (2020), tributo à Rainha do Fado, a cantora Amália Rodrigues (1920-1999). Agora, ela apresenta pela primeira vez aos brasileiros o repertório desse disco.
— Sempre quis fazer um disco de tributo à maior cantora do fado de todos os tempos. Mas também sempre quis que fosse algo como um disco que eu amo de paixão, o “Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim”. Um disco atemporal, maravilhoso, de superbom gosto. E o Jaques tem isso. Sem perder a sua tropicalidade, aquele calorzinho nos arranjos, ele também faz música com respeito, beleza e classicismo — elogia Mariza. — O Jaquinho foi a única pessoa que conseguiu mostrar a mim o quão prazeroso pode ser trabalhar em estúdio.
![A cantora moçambicana Mariza — Foto: Divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/HlMBwLSFuSLsSzYDNFJi_HBidpc=/0x0:2160x1620/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/U/S/457vDAR5mdprwBAZ8lDg/upscaler-a3d197-e4dce3f78aed4e7cae2cc519b1878017-mv2-2x.jpg)
‘Amor’, o novo álbum
Além das músicas de “Mariza canta Amália” e de “temas mais antigos, que as pessoas conhecem”, como “Quem me dera”, “Melhor de mim” e “Chuva”, a cantora quer mostrar nos shows brasileiros algumas canções de seu álbum novo, a ser lançado em novembro, e que se chama simplesmente “Amor”. Um disco que tem desamor, ciúme, paixão, alegria e tristeza — afinal, “o amor é como o fado, tem todos esses lados para serem explorados”. E, para ela, mais do que um disco, é uma espécie de terapia:
— Há muito tempo que eu queria lançar um disco que se chamasse “Amor”. Durante a pandemia isso começou a fazer mais sentido porque tive uma ligeira depressão e foi muito duro. Quando a gente faz cem concertos por ano e, de repente, tem que parar, a cabeça dá um tilt. Obviamente eu tinha meu filho (Martim, de 12 anos), mas nada fazia sentido para mim sem poder estar com as pessoas.
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Mariza conta que passava dias em casa de pijama e tomava comprimidos para dormir, até o dia em que a mãe entrou no seu quarto e disse: “Acabou! E sabe por que acabou? Porque onde há amor não há tempo para essas doenças de ricos!”
Ela conta que o chacoalhão fez com que ela refletisse sobre amor-próprio:
— É difícil aprender a gostar de nós, aprender a reconhecer nossos defeitos. Há dias em que eu me amo e há dias em que não me aguento! Mas é um exercício maravilhoso, porque aprendi a dizer todos os dias às pessoas que eu amo que as amo. Sem medo, sem vergonha.
Nos novos tempos, Mariza tem tido boas surpresas. Como no ano passado, quando a dupla Supa Squad, sensação da música urbana de Portugal, deu nova cara a um de seus grandes sucessos, “Gente da minha terra”, tema de Amália Rodrigues que ela gravou em 2001. A canção ganhou raps e batidas de kuduro, ritmo angolano, mantendo a voz de Mariza.
— Sempre tinha receio quando ouvia alguém tocar este tema, um hino à alma lusitana. Então recebo no meu escritório uma mensagem que diz “Mariza, tu tens que ver isto!” — conta ela. — Era o “Gente da minha terra”! No princípio, foi tipo “eu não gosto disso!” Mas ficou na minha cabeça. Ouvi de novo, e o meu filho: “Ó, mamã, isso é muito giro (legal)!”. Acabei achando interessante como, mais de 20 anos depois, uma pessoa longe da minha música fadista revisita este tema trazendo tudo aquilo que eu sou, a minha africanidade. Foi o que me conquistou.