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Por — São Paulo

Em outubro de 1939, o Diário de Lisboa publicou uma entrevista com “a primeira vítima da guerra” que explodira um mês antes: Osvaldo de Andrade. O poeta paulista e a sexta mulher, a poeta Julieta Barbara, estavam em Paris quando Hitler invadiu a Polônia. Como se fossem personagens do filme “Casablanca”, escaparam para Lisboa na esperança de embarcar para o Novo Mundo. Não era a primeira vez de Oswald na Terrinha. Em 1923, visitara Lisboa com Tarsila do Amaral (sua terceira esposa) e, de lá, remetera uma carta a Mário de Andrade, pedindo ao amigo que providenciasse exemplares de “Pauliceia desvairada” para os rapazes da Contemporânea, a revista dos modernistas lusos. Mário nunca pisou na Europa. Ouvia sempre: “Você diz isso porque ainda não esteve em Paris.” “Me dava um ódio...”, confessou. Mário preferia explorar seu próprio país.

O modernismo brasileiro deve um bocado às viagens de “Marioswald”, como atestam três livros recentes: a “Correspondência” da dupla, organizada por Gênese Andrade (que não é parente de nenhum deles), “Os crepúsculos não cabem no mundo: as viagens de Mário de Andrade”, de Eduardo Vessoni; e “A guerra invisível de Oswald de Andrade”, de Mariano Marovatto, que explica por que o paulista foi “a primeira vítima” do conflito.

O crítico literário Antonio Candido escreveu que, para Oswald, viajar era tanto “purgar as lacunas de sua terra” como “um meio de conhecer e sentir o Brasil”, “transfigurado pela distância”. Numa carta ao historiador Câmara Cascudo, Mário reclamou que Oswald ia-se “embora pra Europa sem a gente saber”. “Duma das últimas vezes eu o tinha numa fazenda quando recebi uma carta dele de Paris!” Das 27 cartas enviadas por Oswald a Mário entre 1922 e 1928, reunidas na “Correspondência”, 26 foram escritas em viagens: Rio de Janeiro, África, Ilhas Canárias, Portugal, Paris, Londres, Suíça, Grécia e Jerusalém.

— A obra mais conhecida, inovadora e estudada de Oswald está vinculada às viagens — explica Gênese Andrade, professora da Fundação Armando Alvares Penteado. — A viagem à Europa em 1911 foi muito importante em termos de formação. Em 1923, ele conheceu pessoalmente as vanguardas e artistas europeus. Nessa viagem, ele já estava escrevendo “Memórias sentimentais de João Miramar” e, no ano seguinte, publica o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Na viagem ao Oriente Médio, em 1926, trabalhava em “Serafim Ponte Grande”, publicado em 1933.

Enquanto passeava, Oswald distribuía livros e revistas modernistas brasileiros a europeus e escrevia a Mário pedindo o envio de mais material, como a tradução para o francês de seu romance “Os condenados”, na qual Sérgio Milliet trabalhava. Gênese descreve o paulista como um “embaixador do modernismo”, que abriu caminho para divulgação da arte e da literatura brasileiras no exterior.

Se os périplos oswaldianos eram quase missões diplomáticas, o “tesão” do autor de “Macunaíma” era viajar como “pesquisador”, diz Eduardo Vessoni, autor de “Os crepúsculos não cabem no mundo”. O livro detalha os deslocamentos do paulistano: das escapadas para descansar em Araraquara (SP) às viagens de “descoberta do Brasil” a Minas, Amazônia e Nordeste. Vessoni permite que o próprio Mário conte o que viu. “Não fui feito pra viajar, bolas”, dizia o modernista, que também não dispunha dos recursos de Oswald, filho da elite paulistana. Numa carta a Pedro Nava, ele conta que precisaria atrasar a publicação do “Clã do Jabuti” até saldar as dívidas da excursão amazônica, em 1927.

Açaí, manga-rosa e caju

No Norte, Mário comprou roupas de linho para suportar o calor, visitou a Ilha de Marajó, esteve na fronteira com a Bolívia e, pela primeira e única vez, saiu do Brasil: foi até Iquitos, no Peru. Voltou a São Paulo sem saber se gostava ou não de açaí. “Não chega a ser ruim. Pousa macio na boca da gente, é um gosto de mato pisado”, descreveu. Ele gostou mesmo foi da manga-rosa e do caju nordestinos. Mário desbravou o Nordeste em 1928 e voltou com 666 melodias populares na bagagem. “É espantoso como em viagem de passeio eu trabalhe tanto”, desabafou o paulista. Mas ele também arrumava tempo para cair na farra.

— Mário tinha uma biblioteca com 17 mil títulos. Visitava todos os cantos do mundo sem sair da Barra Funda. Era um antiviajante. Mas quando resolvia viajar, alimentava o que ele chamava de “vida baixa”. Ele nunca foi tão porra-louca quanto nos carnavais do Rio e de Recife — diz Vessoni, que lembra que a viagem dos modernistas às cidades históricas mineiras, em 1924, inspirou iniciativas que resultariam na criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). — Mário dizia que ninguém precisou vir lhe dizer que o Brasil era interessante. Numa época em que só se olhava para a Europa, ele colocou o país diante do espelho.

Os relatos de viagem de Mário de Andrade foram publicados em 1976 no volume “O turista aprendiz”. Em 1938, já rompido com Oswald (que chegara a chamá-lo de “boneca de piche”, entre outros insultos), ele se mudou para o Rio. No ano seguinte, o ex-amigo o imitou. Na época, Oswald já tinha trocado a antropofagia pelo comunismo e trabalhava em “Marco zero”, “série de cinco volumes sobre os tipos e cenas da vida paulista” que pretendia convencer os leitores a aderir à revolução proletária.

No Rio, virou cronista do jornal Meio-Dia e descolou uma viagem para um congresso de escritores em Estocolmo. Junto com a mulher, Julieta Barbara, embarcou em 7 de agosto de 1939. Estava em Londres quando Alemanha e União Soviética assinaram o pacto de não agressão, no dia 23, anúncio de que a invasão da Polônia estava às portas. O governo britânico começou a distribuir máscaras de gás porque a guerra, como disse Oswald, “tanto podia vir do céu, como do buraco duma fechadura”.

Quando o congresso em Estocolmo foi cancelado, teve início a viagem mais cinematográfica da vida de Oswald e Julieta. Primeiro, eles fugiram para Paris. De lá, pegaram carona até Tours, onde Oswald pagou 1.600 francos para um motorista levá-los até Bordeaux. Atravessaram a fronteira espanhola e foram de trem para Lisboa, onde o brasileiro ganhou o título de “primeira vítima da guerra”. Esperaram um mês por um navio. Vinicius de Moraes, que na época estudava na Universidade de Oxford e ainda era um poeta soturno e católico, também estava na capital portuguesa tentando voltar para o Brasil e ficou amigo do poeta paulista.

— Vinicius tinha 25 anos e acabado de romper com Otávio de Faria, intelectual católico e reacionário. Ele virou outra pessoa depois disso, e essa mudança talvez tenha a ver com a conexão com Oswald, que aos 50 anos já era o ícone do modernismo e tinha “um coração violento” — diz Mariano Marovatto, autor de “A guerra invisível de Oswald de Andrade”. — Caetano, que criou o tropicalismo a partir da antropofagia oswaldiana, disse que Vinicius foi quem inventou que o brasileiro era feliz. Se Oswald irradiava tanta pulsão estética e de vida que, mesmo depois de morto, tocou Caetano, imagina como foi para o jovem Vinicius!

No caminho para o Brasil, o navio parou na Ilha da Madeira, onde Vinicius emprestou dinheiro para o casal Andrade comprar móveis para seu apartamento carioca. Quando aportou no Rio, Oswald era outro. “Não é o enfant terrible, o blaguer (piadista) inveterado”, notou o jornalista Joel Silveira. Em Portugal, ele percebera que os esforços de escritores socialistas de outrora, como Eça de Queiroz, não impediram o povo de se entregar ao fascismo. Melancólico, disse que escreveria um livro chamado “A guerra invisível”, cheio de “observações interessantíssimas” colhidas na Europa. Mas nunca o fez. Suas anotações se perderam, assim como as cartas enviadas por Mário na década anterior. Oswald nunca mais voltou à Europa. Quando Mário morreu, em 1945, Oswald só soube dois dias depois porque estava em viagem, numa estação de águas.

Serviço:

‘Correspondência’

Autores: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Organizadora: Gênese Andrade. Editora: Edusp. Páginas: 264. Preço: R$ 72.

‘Os crepúsculos não cabem no mundo: as viagens de Mário de Andrade’

Autor: Eduardo Vessoni. Editora: Patuá. Páginas: 148. Preço: R$ 50.

‘A guerra invisível de Oswald de Andrade’

Autor: Mariano Marovatto. Editora: Todavia. Páginas: 144. Preço: R$ 69,90.

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