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Mariano Marovatto grava canções folclóricas de Brasil e Portugal

Em 'Selvagem', músico tem como base apenas a guitarra de Pedro Sá
O compositor Mariano Marovatto Foto: Divulgação/ Rodrigo Alcon Quintanilha
O compositor Mariano Marovatto Foto: Divulgação/ Rodrigo Alcon Quintanilha

RIO - O CD “Selvagem”, de Mariano Marovatto, traz canções folclóricas gravadas só com sua voz e a guitarra de Pedro Sá (a japonesa Ami Yamasaki participa). Como ele explica aqui, uma jornada pessoal e universal.

Por que gravar canções folclóricas brasileiras e portuguesas?

Quando eu estava gravado o “Praia” (álbum de 2013) , procurava uma canção de ninar - folclórica - desconhecida, esquecida, pra ser a última faixa do disco. Encontrei, vasculhando o enorme acervo da Smithsonian Folkways, uma canção de ninar do povo shipibo do Acre, mas no caminho topei com uma imensidão de discos folclóricos portugueses (feitos pelo musicólogo Michel Giacometti e pelo compositor Fernando Lopes-Graça, dois nomes imensos da história da música portuguesa). Nessa altura eu já tinha a caixa que o SESC lançou dez anos atrás com as gravações feitas pela Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de SP, em 1938, sob a batuta do Mário de Andrade. Depois do “Praia” juntei os dois materiais e fiquei escutando aquilo e pensando numa forma de aproveitar aquilo que não fosse com cara apenas de resgate.

Como você chegou nessas canções?

Passado um tempo, comecei a escutar as canções e entender quais eu conseguiria cantar mais a vontade. Curiosamente, as oito canções que ficaram para o disco são de Pernambuco e Paraíba (a família da minha avó paterna vem justamente da divisa dos dois estados) e do norte de Portugal, de onde vieram, exceção da parte pernambucana, todos os meus bisavôs. Então, da pesquisa folclórica, o filtro do repertório também passou pelo filtro pessoal “do artista”. Escolhas como "O Perdigão", que é meu sobrenome, ou "Embarquei pra Portugal", foram movidas por escolhas afetivas e, coincidentemente, genéticas.

Por que “Selvagem”?

São canções luso-brasileiras que passam ao largo do eixo Rio-São Paulo e Lisboa-Porto; é música tradicional dos dois países mas não é samba nem fado; é Selvagem porque não foi domesticado pela história evolutiva urbana dos dois países. A matéria chegou aos meus ouvidos praticamente bruta (só não foi totalmente bruta porque houve a intervenção dos etnomusicólogos que recolheram o material sonoro): as gravações "originais", com exceção de Lampião, foram todas gravadas à capela, acompanhadas apenas pelo som ambiente e pelos ruídos produzidos pelo equipamento de gravação rudimentar.

Por que a sonoridade crua?

Porque essas canções, mesmo desconhecidas da memória, são canções fáceis, feitas para serem cantadas, apenas. Como disse o Martin Scian, argentino, produtor do disco: "cara, isso aí eles fizeram junto com a língua portuguesa, né?" E para chamar atenção pra um material tão bom, não precisa fazer muito estardalhaço, né? Decidimos então pelo seguinte dogma: usar a mesma guitarra semi-acústica, captada pelos mesmo cinco microfones, com overdubs, mas sem efeitos e usar o mesmo microfone para a minha voz, também com overdubs e sem efeitos. A gente escutava a faixa original e no mesmo dia fazia o arranjo e gravava. Tudo em mono. Simples, reduzido e profundo, como o haicai japonês.

Como uma artista japonesa dialoga com esse universo?

O nome "Selvagem" surgiu quando eu estava fazendo minha viagem solitária pelo Japão por um mês. Estava numa fila, esperando um trem bala, e reparei que eu era o único homem com traços ocidentais na plataforma, com cabelo desgrenhado, uma barba enorme, corcunda de cansaço, vestido com roupas de frio que mal sabia usar, enquanto todos os japoneses à minha volta eram o exemplo de correção, elegância e civilização. O Japão é o ocidente do ocidente, né? Pensei que pela primeira vez me senti um completo selvagem, e me orgulhei muitíssimo da minha condição ali e entendi o lugar desse disco (lusófono, essa língua numerosa e marginal do ocidente), no mundo. Encontrei a Ami Yamasaki nessa mesma viagem, assistindo uma performance dela. Ela é uma espécie de japonesa selvagem, produz ruídos com a garganta que dão inveja a Yoko e Björk, ao mesmo tempo que respeita e entende o silêncio e ruído natural dos espaços. Perguntei se ela gostaria de participar do Selvagem fazendo o barulho de pássaros do sertão pernambucano que não existem mais e nunca existiram. Um dia ela me mandou do Japão, também sem efeito nenhum, uma biblioteca de sons inacreditáveis que ela havia gravado para o disco. Usamos no "Chamada de Aricuri". Depois fizemos esse dueto em "O Perdigão" onde eu faço a parte do homem da colheita e ela faz a parte do campo, com ventos, ruídos e pássaros.