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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Houve um tempo em que chamar flamenguista de urubu era ofensa. Para boa parte dos rubro-negros, o apelido era um insulto racista. Mas isso mudou no dia 1º de junho de 1969, quando quatro amigos, moradores do Leme, na Zona Sul do Rio, decidiram calar os torcedores rivais soltando, veja só, um urubu no gramado do Maracanã, em tarde de clássico contra o Botafogo. A ave de rapina foi festejada pelas arquibancadas, levou "sorte" ao clube da Gávea, que quebrou jejum de quatro anos sem vitórias sobre o adversário e, no dia seguinte, foi citada na coluna de Nelson Rodrigues, no GLOBO.

"A imensa, ululante, indescritível torcida rubro-negra teve uma ideia genial. Minutos antes do clássico dos clássicos, vem, das gerais, um urubu com as cores flamengas. Foi um delírio", escreveu o célebre autor em seu espaço diário no jornal carioca. "Durante toda a semana, o Salim Simão, botafoguense monumental, fez uma troça crudelíssima com o adversário. Que era o bom flamengo para o bom Salim? O urubu. E as gerais rubro-negras, num lance admirável, transformaram a piada contra em piada a favor. E os alvinegros não puderam fazer o coro: 'Urubu! Urubu! Urubu!'".

O histórico voo do urubu, que completa 55 anos neste sábado, começou a ser planejado bem antes daquela partida. Hoje, a atitude seria considerada um crime ambiental, já que essas aves são animais silvestres e não podem ser retiradas de seu habitat, nem muito menos, é claro, sofrer maus tratos. Mas, na época, com idades entre 18 e 20 anos, os amigos Victor Ellery, Romilson Meirelles, Luiz Octávio Vaz e Erick Soledade não pensaram em nada disso. Eles estavam decididos a capturar um urubu em algum lugar do Rio e mantê-lo em "cativeiro" até o dia de soltar o bicho no Maracanã lotado.

Segundo urubu jogado no Maracanã, em jogo do Fla contra o Vasco, no dia 8 de junho de 1969 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Segundo urubu jogado no Maracanã, em jogo do Fla contra o Vasco, no dia 8 de junho de 1969 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Os quatro foram até a Lagoa Rodrigo de Freitas, numa sexta-feira, mas não encontraram nenhum exemplar da espécie perto dos clubes Piraquê e Caiçaras, onde não é rara a presença da ave. Então, o grupo foi ao antigo lixão ao ar livre do Caju, na Zona Norte, mas chegou tarde e não conseguiu nem entrar. Insistente, o quarteto voltou lá na manhã seguinte e encontrou vários urubus. Eles não foram capazes de apanhar um animal, mas convenceram um gari a ajudá-los, pagando cerca de R$ 50 em valores atuais. O servidor público fez um lanço numa corda e, sem demora, capturou um urubu.

Com o bicho enrolado numa manta dentro do carro, os quatro flamenguistas voltavam pra casa com a sensação de dever cumprido e já falavam sobre a farra que seria soltá-lo no estádio, no dia seguinte. Mas, então, o quarteto foi surpreendido, no meio do caminho, por uma tentativa de fuga do animal. Com o carro parado em um sinal da Avenida Brasil, na época em que ainda havia semáforos na famosa via expressa, o urubu se soltou da manta e começou a bater as asas freneticamente dentro do veículo, indo de um lado para outro e golpeando seus algozes. Foi um verdadeiro caos:

"Foi um desespero total. Eu estava dirigindo abaixado", contou o torcedor Romilson Meirelles numa entrevista ao Blog do Acervo em 2019, quando o episódio estava completando 50 anos. "Depois de muito custo, conseguimos imobilizar o bicho. Levei algumas bicadas, e os outros três foram buscar uma sacola para colocar o urubu. Deve ter sido tudo bastante rápido, mas, como fiquei sozinho com ele dentro do carro, esse tempo me pareceu uma eternidade".

Luiz Octávio, Victor e Romilson em 2019, 50 anos após o voo do urubu no Maracanã — Foto: Acervo pessoal
Luiz Octávio, Victor e Romilson em 2019, 50 anos após o voo do urubu no Maracanã — Foto: Acervo pessoal

O urubu passou a noite em um prédio no Leme, com a cabeça imobilizada para não bicar ninguém. Bastante debilitado, o animal recusou as opções do cardápio nada adequado oferecido pelo quarteto: macarrão e feijão com arroz. Mas a falta de alimentação seria apenas uma das provações a que a nobre ave seria submetida pelos quatro flamenguistas. No dia do jogo, os rapazes amarraram uma bandeira do Flamengo com suporte de bambu nas patas do pássaro e entraram no estádio com ele dentro de uma sacola enrolada numa faixa. Qualquer defensor de animais ficaria horrorizado.

Retirado da sacola, o urubu, uma fêmea, ainda estava atônito quando o quarteto decidiu soltá-lo em pleno estádio numa tarde de domingo. Voou sobre a torcida do Botafogo, que, pega de surpresa, não reagiu. Já do lado do Flamengo, as arquibancadas vibravam gritando “É urubu, é urubu!”. Enfraquecido, e com o peso da bandeira, o animal não ficou no ar muito tempo. Pousou no gramado e se tornou a grande notícia do clássico, ofuscando até mesmo a estreia do atacante argentino Doval, o Diabo Loiro, contratado junto ao San Lorenzo, da Argentina, para ser a estrela rubro-negra da temporada.

Até aquele momento, o mascote do Flamengo era o marinheiro Popeye, uma herança do remo, esporte que deu origem ao clube. Mas a mudança estava em curso. No dia seguinte ao jogo, o GLOBO trazia a notícia: "Urubu pousa na sorte do Botafogo". Nelson Rodrigues contou o episódio em sua coluna e, no Jornal dos Sports, o grande cartunista Henfil "humanizou" o bicho com uma charge. Em pouco tempo, o personagem do marujo americano havia sido substituído pelo pássaro de voo elegante.

Reportagem sobre a morte do Urubu lançado no Maracanã — Foto: Arquivo
Reportagem sobre a morte do Urubu lançado no Maracanã — Foto: Arquivo

Entretanto, enquanto a massa flamenguista abraçava o novo símbolo, o urubu capturado no lixão do Caju e solto no Maracanã, abandonado à própria sorte, agonizava. Ele foi encontrado sem vida no dia seguinte ao jogo. Dois dias depois de sua aclamada aparição, O GLOBO noticiava: “Urubu que a torcida elegeu não teve sorte: morreu de fome”. O corpo do animal foi achado pela equipe do jornal no fosso do Maracanã, depois de ter sido removido do banheiro por funcionários da Administração dos Estádios do Estado da Guanabara (ADEG). Uma veterinária relatou que o animal morrera de inanição.

“Quem realmente ficou triste foram os serventes do Maracanã, que ontem faziam a limpeza do estádio. Quase todos são torcedores do Flamengo, e gostariam que o novo símbolo da torcida ficasse vivo, para ser solto em triunfo diante da sede da Gávea, se o clube for campeão”, dizia o texto do jornal, na edição de 3 de junho de 1969. No domingo seguinte, outro grupo de torcedores levou um urubu para o estádio, durante uma partida contra o Vasco. Houve uma nova festa da torcida ao avistar o animal no gramado do Maracanã, o que consolidou a espécie como mascote do rubro-negro.

O jogador Guilherme corre para pegar o segundo urubu jogado pela torcida — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
O jogador Guilherme corre para pegar o segundo urubu jogado pela torcida — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
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