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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

O pesadelo de todo torcedor em um estádio de futebol se tornou realidade durante uma partida válida pelas semifinais da Copa da Inglaterra. Disputando vaga na decisão do torneio, Liverpool e Nottingham Forrest entraram em campo no Estádio de Hillsborough, em Sheffield, no Reino Unido, mas o jogo foi interrompido cinco minutos após o apito inicial, depois que dezenas de pessoas começaram a saltar o alambrado atrás das traves do goleiro Bruce Grobbelaar, do Liverpool. No início, os policiais achavam que os torcedores queriam invadir o gramado por vandalismo. Só depois ficou claro que eles estavam tentando salvar as próprias vidas da maior tragédia já ocorrida no futebol inglês.

Naquele sábado, dia 15 de abril de 1989, há 35 anos, mais de 90 pessoas morreram esmagadas e cerca de 700 ficaram feridas, muitas com gravidade. As autoridades tentaram culpar a torcida pelo que aconteceu, alegando que o desastre foi causado por fãs "bêbados" do Liverpool. Um julgamento inicial, concluído em 1991, classificou as mortes como acidentais. Somente décadas depois, às custas de muita pressão da mídia e das famílias das vítimas, uma investigação definitiva chegou às causas da tragédia. De acordo com esse segundo veredito, divulgado em 2016, o desastre foi causado por uma sucessão de erros cometidos pela polícia do condado de South Yorkshire.

O problema começou na parte externa, quando uma multidão de torcedores do Liverpool se aglomerou numa área à margem do estádio. A partida deveria começar às 15h, mas, às 14h45, ainda havia cerca de 5 mil pessoas querendo entrar pelo mesmo lado da arena. Muita gente com ingressos tinha tentado acessar o estádio pelo portão errado e não conseguia sair do tumulto para ir ao local correto. Com o tempo, os torcedores se tornaram impacientes e, para evitar uma confusão, a polícia local determinou a abertura do Portão C, que era usado para facilitar o fluxo de saída do estádio. Aquela decisão, porém, tomada sem as devidas precauções, foi justamente o que causou o desastre.

Assim que o portão C foi aberto, a maioria dos fãs que aguardavam para entrar se apressaram na direção do túnel mais próximo de acesso às arquibancadas. O erro dos responsáveis pela segurança do jogo foi justamente não designar policiais para direcionar as pessoas a outros túneis de acesso. Sem essa distribuição, quase todo o público atrasado caminhou, em manada, para uma mesma seção do estádio, pressionando a plateia que já ocupava aquela parte do anel. Sem entender o que acontecia, as pessoas perto do gramado naquele trecho do Hillsborough foram empurradas de maneira violenta contra o alambrado pela torcida, que "inchou" rapidamente após a abertura do portão C.

Tragédia em Hillsborough: Torcedores do anel superior puxam pessoas presas na confusão — Foto: Reprodução/Youtube
Tragédia em Hillsborough: Torcedores do anel superior puxam pessoas presas na confusão — Foto: Reprodução/Youtube

Logo nos primeiros minutos de jogo, o goleiro Bruce Grobbelaar, do Liverpool, começou a ouvir gritos desesperados da torcida. Imagens mostram pessoas esmagadas contra o alambrado. Muitas foram mortas por asfixia. Estavam tão comprimidas que não conseguiam sequer expandir seus diafragmas para respirar. Desesperados, vários torcedores pulavam o alambrado para dentro do campo, mas, no início, eram reprimidos por policiais que, sem entender o que estava acontecendo, achavam que eram "hooligans" tentando dar início a uma onda de vandalismo. Um dos agentes chegou a disparar um tiro para conter esse movimento. Só, então, ficou claro o que estava ocorrendo.

Cinco minutos após o início da partida, o árbitro paralisou o confronto. Em pouco tempo, cententas de fãs estavam pisando no gramado. Ambulâncias foram trazidas para ajudar os feridos, mas não havia socorristas o bastante. A cena resultante de uma sucessão de erros era terrível. Torcedores realizando técnicas de reanimação cardiopulmonar em pessoas desmaiadas. Outros arrancavam as placas de publicidade do gramado para transformá-las em macas. Numa questão de minutos, corpos de mortos ou feridos estirados transformaram o local de uma partida de futebol em algo mais parecido com um campo de batalha. Essa imagem deixou uma marca indelével na memória do esporte.

Foram 94 pessoas mortas naquele sábado. Outras três faleceram posteriormente, devido a ferimentos causados pelo desastre. A imprensa mundial deu destaque para a tragédia, que gerou consternação, principalmente, no Reino Unido. No início, as autoridades locais tentaram se isentar de culpa, alegando que a confusão começara por causa de torcedores bêbados do Liverpool. Em 1991, a conclusão do primeiro julgamento, afirmando que as mortes foram "acidentais" e não atribuindo culpa aos policiais responsáveis pelo jogo, foi motivo de revolta entre sobreviventes e familiares das vítimas falecidas. Entre eles, estava claro que o desastre poderia ter sido evitado.

Apenas em 2012, o primeiro veredito foi descartado e teve início um novo processo, que levou a um novo julgamento. Em abril de 2016, portanto 27 anos depois da tragédia, o júri estabeleceu o veredito de "matança ilegal". No mesmo dia, o Grupo de Apoio às Famílias de Hillsborough celebrou a decisão, mas, depois, continuou pressionando para que os responsáveis pela partida fossem punidos. Contudo, ninguém foi punido criminalmente pelo desastre. Chefe de polícia responsável pela segurança no jogo, o britânico David Duckenfeld chegou a ser indiciado por negligência. Ele foi julgado, mas, em novembro de 2019, a Justiça declarou o agente inocente de todas as acusações.

A tragédia em 1989 levou a uma reformulação dos estádios na Inglaterra. As grades de separação do gramado foram abolidas, e o número de catracas para o público nos estádios foi ampliado para não haver mais concentração de fãs tentando passar por uma quantidade reduzida de acessos. Além disso, tornou-se obrigatório que os estádios tivessem assentos para todos os torcedores. Aquelas áreas chamadas de "gerais", onde ficava muita gente torcendo em pé, junto ao campo, foram extintas. Enfim, todo esse processo de modernização das arenas levou à formação da Premier League, hoje o campeonato mais rico do mundo e referência em termos de segurança para as torcidas.

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