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Documentários sobre a URSS são preciosidades do MUBI

Patrícia Kogut

Cena de 'State funeral' (Foto: Divulgação)Cena de 'State funeral' (Foto: Divulgação)

 

O leitor deve conhecer aquela sensação de puxar um livro da estante, se encantar com o autor e, depois disso, devorar tudo o mais dele que está naquela prateleira. É mais ou menos esse prazer que venho sentindo com o MUBI. A plataforma oferece clássicos e também filmes de festivais de prestígio com uma curadoria de bom gosto. O catálogo muda, mas, no momento, estão lá quase toda a produção de Agnès Varda e grandes criações de François Truffaut, Jacques Tati e outros gênios. Entre os biscoitos finos, vale conferir a obra do ucraniano Sergei Loznitsa, que sabe usar como poucos material de arquivo.

Recomendo começar por “State funeral”. No documentário de mais de duas horas e meia, Loznitsa lança mão de filmes produzidos na antiga URSS e guardados até 1988 (mas que não atraíram a atenção de mais ninguém até 2019). São imagens hipnotizantes dos eventos que se seguiram à morte de Josef Stalin, em 1953. O primeiro terço se detém na URSS, em diversas cidades em choque recebendo a notícia via uma transmissão de rádio que se alongou por dias. O locutor, com voz dramática, se refere à causa mortis com vocabulário técnico, detalhando o que teria acontecido com cada órgão do líder até que seu coração parasse. A palavra “coração” é repetida incansavelmente para denotar o que Stalin significava para os soviéticos. Como relata Loznitsa numa entrevista após o encerramento do filme (não deixe de assistir), ele trabalhou com material de 200 cinegrafistas. Há uma estranha combinação de sensibilidade artística com exatidão técnica. É, claramente, propagande d’état, mas que espelha também a cinematografia requintada do cinema russo. O filme abre com closes de pessoas de todas as regiões da URSS atentas ao locutor. De uma vila na Ucrânia à beira do Mar Cáspio no Azerbaijão, passando por Riga e por Moscou, vemos de perto os rostos dessas repúblicas. Nos planos abertos, o monumental se impõe. Ele se expressa na arquitetura e nas multidões em silêncio, encasacadas, em que só as mulheres choram. Certas sequências lembram “O Encouraçado Potemkin”. Outras fazem pensar em Leni Riefenstahl. “State funeral” acompanha o cortejo até o morto embalsamado.

Na sinopse está dito que “não se sabe o que é real e o que foi encenado”. Verdade, mas em termos. São muitos os símbolos cuidadosamente captados, mesmos nas imagens mais espontâneas. A própria montagem do cineasta é uma camada extra a ser decifrada pelo espectador. Loznitsa trabalha um material incrível, com direito a discursos de Beria e Molotov, sendo apresentados por Kruschev.

O leitor pode em seguida conferir “Blockade”, também com arquivo esquecido. Nele, Loznitsa mostra o Cerco a Leningrado. Há sequências impressionantes do cotidiano da cidade em condições dramáticas. Vemos os moradores sob a neve inclemente, arrastando seus pertences em trenós, em meio a cadáveres pelas ruas. Não há diálogos, só o som ambiente. O espectador consegue se aproximar dos horrores por que aquelas pessoas passaram. E também vale assistir a “The trial”, que mostra o julgamento de um grupo de cientistas, engenheiros e economistas acusados falsamente de traidores da pátria em 1930. Tem-se uma visão real do que foram os expurgos de Stalin. Finalmente, recomendo “A night at the Opera”. O média-metragem congrega registros de noites de gala na Ópera de Paris entre 1950 e 1960. De Brigitte Bardot à realeza europeia, grupos de celebridades chegam para assistir a uma apresentação de Maria Callas. Loznitsa, num trabalho bem diverso, consegue atingir o mesmo resultado: levar o público para dentro dos acontecimentos. O MUBI ainda tem outros muitos filmes dele. Estão todos na minha lista.

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