Crítica
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Por Patrícia Kogut


Salman Rushdie e Larry David em 'Curb your enthusiasm' (Foto: Divulgação) — Foto:
Salman Rushdie e Larry David em 'Curb your enthusiasm' (Foto: Divulgação) — Foto:

Certos roteiros abordam sentimentos e pensamentos que estão no ar, mas dos quais ninguém fala. Esse cruzamento entre a ficção e a realidade só acontece em ocasiões muito especiais. É quando os criadores de uma peça, de um filme ou de uma série mostram uma antena especial para entender o inconsciente coletivo. Desde a última sexta-feira, quando o escritor Salman Rushdie foi atacado por um fanático numa palestra que faria em Nova York, “Curb your enthusiasm” (da HBO Max) é um dos mais impressionantes exemplos disso.

O espectador fiel da comédia mais iconoclasta da televisão lembra que a série tratou da fatwa emitida pelos aiatolás para Rushdie depois da publicação de seu “Os versos satânicos”, em 1988. Foi o tema do arco dramático que atravessava toda a nona temporada, de 2017. O episódio final se intitulava “Fatwa”. E o próprio escritor fez uma participação divertidíssima no terceiro episódio.

Tudo começou quando Larry resolveu criar um espetáculo para a Broadway. Em “Fatwa! The musical” (assim mesmo, com ponto de exclamação), ele pretendia relembrar o drama do escritor jurado de morte. Para divulgar o projeto, foi ao talk show de Jimmy Kimmel. Na entrevista, ao vivo, deu aquele seu clássico show de falta de traquejo. Se empolgou e debochou muito dos líderes do Irã. Com isso, irritou um aiatolá, que emitiu uma fatwa contra ele. As consequências da brincadeira foram arrasadoras para o projeto. Todos os potenciais patrocinadores sumiram. E Larry caiu no degredo social absoluto. Apavorado, passou a circular disfarçado, usando uma peruca e um bigode ridículos.

Até que, desesperado, decidiu que só uma pessoa poderia ajudá-lo: o próprio Rushdie. O escritor o recebeu em sua casa. E Larry fez uma súplica. “Penso que você é capaz de entender bem o que estou passando. Sendo sincero, estou no meu limite”, apelou, implorando por alguma saída.

O escritor riu do disfarce. E discorreu: “Demorei muito tempo, talvez vários anos para chegar ao ponto de dizer o que vou lhe dizer agora. Pode ser assustador e desconcertante. Mas há ganhos. Muitas mulheres se sentirão atraídas por você. Você agora é um homem perigoso. Há belas mulheres que gostam disso. Não gostam exatamente de você. Gostam da fatwa que o envolve. Ela é como um pó mágico e sexy. Mas precisa parar de agir como um covarde. Você parece uma pessoa que tenta se esconder. Está sendo patético. Isso não é sexy! Seja homem, pare com isso, e surgirá o sexo-fatwa, o melhor sexo que existe”.

O escritor embarcou na brincadeira com gosto. Os roteiristas, em entrevistas da época, disseram que ficaram nervosos diante da perspectiva de “criar um texto para alguém que escreve muito melhor que nós”. Mas “Curb your enthusiasm” esteve especialmente inspirada naquela temporada. Na ficção, a fatwa contra Larry acaba sendo suspensa. Porém, em algum momento, é mencionada a possibilidade de que alguém que não saiba disso cumpra o decreto religioso. A fatwa contra Rushdie nunca foi revogada, mas o mundo acreditava que ela pudesse ter caído no esquecimento. Como anteviu “Curb”, não foi.

O bom é que a série oferece ao público uma faceta desconhecida de Rushdie: ele é capaz de embarcar na comédia subversiva com finíssimo talento. Faz pensar nas declarações de ontem dadas à imprensa por seu filho, Zafar Rushdie: “O estado de saúde dele segue delicado, mas seu senso de humor rebelde continua intacto”.

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