O Poder da Inovação

Por Luiz Serafim

Escritor e músico, com experiência de 30 anos como líder de marketing, inovação e diretor de Comunicação da 3M


Trabalhei por 30 anos na 3M e como insider, conheço detalhes dos bastidores que artigos de imprensa e livros de consultores não revelam — Foto: Getty Images
Trabalhei por 30 anos na 3M e como insider, conheço detalhes dos bastidores que artigos de imprensa e livros de consultores não revelam — Foto: Getty Images

É bem possível que você já tenha escutado a história sobre a invenção do Post-it. Curioso perceber como um pedacinho de papel colorido ganhou tanta admiração, como símbolo de inovação, num mundo repleto de coisas com mais impacto em nossas vidas como microprocessadores, robôs-cirurgiões ou streaming.

No storytelling clássico, o Post-it nasceu de um erro. A fábula é contada como falha que se tornou sucesso, fortalecendo bons conceitos da inovação como tolerância ao erro e serendipidade, mas vendida em embalagem ingênua pouco útil para inovar.

Trabalhei por 30 anos na 3M e como insider, conheço detalhes dos bastidores que artigos de imprensa e livros de consultores não revelam. Mais do que isso. Em 2012, organizei o evento Innovation Connections para o qual trouxe Art Fry, célebre inventor do Post-it, para sua única visita ao Brasil. Pude conviver com ele por dois dias e escutar algumas de suas histórias e perspectivas de mundo.

Há anos, esperneio para contar a verdadeira história. Já sei que “perdi” a batalha dessa narrativa, mas isso não diminui meu entusiasmo em bradar alto minhas crenças, pois vejo que o entendimento atual é reducionista e não ajuda ninguém a inovar. Ao contrário, fortalece mitos simplistas e acalenta ilusões ingênuas, criando expectativas de que o fato de se cometer um erro por si só pode levar a uma impactante inovação.

Inovação não é acidental. É resultado de um Sistema alicerçado sobre uma Cultura. Almoço grátis e Papai Noel não existem, nem o Post-it foi um acidente. Foi resultado de empreendedores, sólida cultura de inovação e suporte de um bom sistema.

Primeiro Ponto: Empresas inovadoras valorizam conhecimento e trabalham para aprender, desenvolver e aplicar tecnologias. No sistema de inovação da 3M, desde os anos 1930, havia o Laboratório Central de Pesquisas com batalhão de cientistas trabalhando em projetos de longo prazo, distantes da turma de negócios interessada em criar produtos para o próximo verão.

Muitas empresas possuem esse pilar de tecnologia e conhecimento em seu sistema para contribuir com a inovação. Nos últimos 20 anos, estes sistemas inicialmente fechados se abriram para colaboração externa e a tal inovação aberta.

Spencer Silver era um dos cientistas alocados a projetos de adesivos nos anos 1960. É verdade que ele pesquisava adesivos na intenção de obter adesão e coesão poderosas para aplicações industriais. Mas veja que Spencer não tinha como meta criar produtos finais para entrar no pipeline de negócios em X meses. O trabalho dele era explorar formulações, investigar propriedades e foi assim que chegou ao peculiar adesivo que, à época, não tinha nenhuma aplicação.

Então surge Arthur Fry, cientista da divisão de produtos de escritório, trabalhando em ambiente favorável de inovação, rodeado de projetos de desenvolvimento de fitas durex, etiquetas e corretores de texto. Tem também uma parte poética em que Art Fry, cantor de coral evangélico na sua Minnesota natal, teve seu insight a partir de suas próprias demandas, como acontece com muitos empreendedores. Ele sentiu a necessidade de um “marcador de páginas” para separar as partituras dos hinos de louvor que não machucasse o papel das músicas.

Vale destacar mais um capítulo importante para o sistema de inovação: a importância de ambientes de intercâmbio, conexões e colaborações. Como líder da empresa, pude participar, nutrir e liderar diversos artefatos culturais desenhados para estimular as trocas e aprendizados coletivos. Na 3M dos anos 1970, muitas trocas rolavam nos campos de golfe nos EUA e foi no papo entre tacadas que Art soube por um amigo que o tal Spencer havia desenvolvido um adesivo promissor para o invento de um “gentil marcador de páginas”. Claro que Art foi buscar o conhecimento de Spencer e, naquela cultura de colaboração incomparável, aterrissaram a ideia em produto viável.

Na 3M, havia outro elemento cultural interessante, a tal regra dos 15%, tremendo incentivo para o intraempreendedorismo e a criatividade das pessoas, que estimulava funcionários de P&D a dedicarem uma manhã por semana a seus próprios projetos, fora do mapa de priorização da companhia.

O Google é mais conhecido por essa regra de 20% de tempo para seus empreendedores, mas seus executivos confirmam que se inspiraram na prática da 3M. Meu amigo Art Fry esteva lá na reunião dos anos 1950 com o CEO histórico William McKnight propondo uma regra de 10%, mas topando aumentar para 15% diante do poderoso lobby da comunidade técnica da empresa.

O inventor começou a desenvolver seu protótipo de “marcador de página” que hoje se chama Post-it Flag. Sua visão não era criar notas adesivas para recados. No entanto, trocando mensagens em relatórios técnicos sobre o projeto, sua liderança começou a fazer anotações sobre os papeizinhos auto-colantes e, percebendo valor naquela nova forma de comunicação que se destacava sobre o papel, a dupla considerou pivotar a ideia original para a possibilidade de recados auto-adesivos.

Então, é preciso valorizar outro pilar essencial nos sistemas de inovação, que é o desenvolvimento de lideranças. Todos sabemos que existem líderes que atrapalham, bloqueiam e inviabilizam o processo de inovação, mas essa história teve final feliz.

É muito importante saber que, lá no final dos anos 1970, quase dez anos depois da invenção do “adesivo sem finalidade”, o projeto passou pelas etapas clássicas de implementação, com pesquisas, testes internos com usuários e um esforço em mercado-piloto de Boise, capital do Estado de Idaho.

Em resumo, se não fosse pelo sistema de inovação, com investimento em lideranças, desenvolvimento tecnológico, processos de desenvolvimento de produto, ambientes criativos e colaborativos, nada aconteceria. Se não fosse a cultura que estimulava o intraempreendedorismo e a colaboração, o Post-it jamais teria sido lançado em 1980 e eu não teria tido a chance de dirigir este negócio no Brasil por 5 anos fascinantes.

Por isso, acho negativo limitar tudo a um “erro que deu certo”. O fato de errar não faz que ninguém crie um “novo post-it”. Inovar requer mais coisas do que frases de efeito e ideias avulsas bem-intencionadas. E o melhor, nunca encontrei organização que tivesse sistema ou cultura perfeitos, simplesmente porque isso não existe.

Agora que você sabe da verdadeira história de uma das mais icônicas inovações, é acreditar e trabalhar por essa visão sistêmica e contribuir diretamente para transformar a cultura da organização na direção da inovação.

Com isso, as probabilidades de gerar valor em rotas consistentes se multiplicam e, nestes casos, um adesivo que ficou fraco demais pode, sim, se tornar um Post-it, um medicamento que não funcionou para combater as dores da angina pode se transformar num marco de tratamento para disfunção erétil, ou um laboratório descuidado pode levar à descoberta da penicilina.

Uma última mensagem para você escrever num Post-it e grudá-lo em seu notebook. Art Fry me contou que, mesmo na cultura da 3M, enfrentou desafios e desencorajamentos, vivenciando embates com a equipe de marketing, que não via o projeto com bons olhos.

Um dos momentos mais inspiradores da minha convivência com o inventor foi ver o brilho juvenil nos olhos do veterano de 81 anos, lembrando de como precisou ser subversivo, criando mecanismos às escondidas para produzir seus primeiros protótipos, contra a legião de anestesistas e dementadores da inovação.

Inovação não é acidente. É sistema, é cultura. E, junto, é você com seu inconformismo, sua subversão saudável, sua paixão e empreendedorismo para mudar seu mundo!

*Serafim é pai do Gabriel, escritor, músico e Diretor da “World Creativity Organization”, que realiza o “Dia Mundial da Criatividade”, com experiência de 30 anos como líder de marketing, inovação e diretor de Comunicação da 3M. Palestrante com mais de 1.000 apresentações sobre criatividade, inovação e liderança, é professor de Marketing e Inovação na FIA, FGV, Inova, ESALQ/USP e O Novo Mercado. Formado em administração (EAESP/FGV) e publicidade (ECA/USP), tem especialização em desenvolvimento do potencial humano e Psicologia Positiva (PUC/RS). No esporte, corre e faz dupla com seu filho, atleta paralímpico de bocha. Autor do livro “O Poder da Inovação” (Ed. Saraiva), é idealizador do Programa Inspira.mov, sobre Criatividade e Empreendedorismo (5 temporadas), veiculado pela TV Cultura, e apoiador da Mostra 3M de Arte (12 edições), do Prêmio Brasil Criativo (4 edições) e do Doc Ecossistemas de Inovação.

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