• Abel Reis*
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fofoca (Foto: Getty Images )

Para evitar fofocas, estabelecer mecanismos que favoreçam um comportamento ético, amigável e autêntico dentro das empresas é imprescindível (Foto: Getty Images )

A fofoca é um desses fenômenos demasiadamente humanos que existe desde que o mundo é mundo, ou pelo menos, segundo Yuval Harari (na famosíssima obra Sapiens), desde que o homo sapiens, uns 70 mil anos atrás, passou a dominar amplamente o planeta, desbancando as demais espécies humanas. O desenvolvimento da habilidade cognitiva da linguagem, as exigências de precaução frente aos perigos e as ficções consensuais (mitos, lendas e crenças) que estimulam a imaginação e convencem os outros, nos trouxeram até aqui. Harari atribui à fofoca um papel-chave nessa evolução porque, na condição de animais hipersociais, vivendo em bandos, era importante saber quem odiava quem, quem estava dormindo com quem, e quem seria confiável ou não. Desde então a fofoca rola solta.

Muitos milênios depois, já na Grécia antiga, Aristóteles (século IV a.c.) considerava as fofocas triviais um passatempo agradável, mas alertava para o vício da intromissão na vida alheia, e os riscos das fofocas mentirosas. Naquele tempo, os tribunais de justiça não contavam com juízes profissionais ou procedimentos de averiguação dos fatos – ou seja, a reputação das partes contava muito em qualquer querela judicial. Assim sendo, desacreditar oponentes por meio de fofocas e intrigas era uma tática corriqueira.

Embora comum, fofocar é um comportamento que envolve vários aspectos negativos e tão somente um positivo. Entre os pontos criticáveis estão: 1) excluir da conversa seu principal objeto, retirando-lhe a oportunidade de se manifestar; 2) destilar moralismo e maledicência, pois frequentemente são apontados erros e defeitos de um terceiro e 3) circular uma história que é parcial, com risco de criar boatos e mentiras com consequências graves.

O lado positivo é que contar algo para os outros não deixa de ser um ato de comunicação que engaja pessoas por meio de um interesse comum – e isso acaba por contribuir para a coesão social. É o que dizem importantes pesquisas em Psicologia Social. Se a nossa curiosidade pelas outras pessoas fosse zero, teríamos uma sociedade seriamente fragmentada. Além disso, frequentemente o mexerico é sobre supostos desvios de conduta. Logo, o temor de ser mal falado acaba inibindo comportamentos inapropriados, reforçando entre os fofoqueiros a sensação de que estão do lado certo.

E por que fofocamos? A fofoca traz alguns benefícios, nenhum deles louvável, diga-se de passagem. Ela dá a sensação de poder, por termos acesso a uma informação privilegiada. Ela também ajuda os fofoqueiros a se sentirem superiores se comparados com a vítima da fofoca. E há, ainda, uma função terapêutica, que é aliviar a tensão de desejar transgredir falando da transgressão alheia em vez de praticá-la (correndo-se o risco de cair na boca do povo).

No universo corporativo tudo isso ganha contornos mais graves. Trata-se de grupos sob intensa convivência e pressão. Ao contrário da fofoca de bar ou entre vizinhos, em que depois as pessoas se afastam e o assunto esfria, na empresa o mexerico pode virar uma rede de intrigas. Em particular, autoestima baixa, ressentimentos pessoais e a concorrência interna, convertidos em vingança, cochichos e risadas, acabam por induzir a formação de crenças coletivas que podem ou não ter fundamento. O resultado – independente do veredito – é a emergência de um clima de desconfiança, de conflitos, de atitudes defensivas e individualistas, onde a hipocrisia cordial reina, e com ela outros problemas advém.

A cena em que todos concordam com uma ideia em uma reunião e depois falam mal dela pelos corredores é um clássico do alto grau de toxicidade que a fofoca pode alcançar. Impossível criar valor e sucesso dentro de um ambiente corporativo assim. A prosperidade de profissionais e de negócios está apoiada em relações de respeito, de confiança e de cooperação, três valores que a fofoca destrói rapidamente. Isso sem falar da energia, foco e tempo que os mexericos roubam da agenda. Estabelecer mecanismos que favoreçam um comportamento ético, amigável e autêntico dentro das empresas é imprescindível.

Atribui-se a Sócrates o emprego de uma técnica de 3 filtros a acionar mediante a tentação de falar mal dos outros pelas costas: O assunto é verdade? É bom para alguém? É útil de alguma forma? Pense sobre isso. A dica é boa e merece ser espalhada mesmo sabendo que Sócrates nunca disse isso. O fato é que, se a fofoca teve serventia à evolução do homo sapiens, nós já saímos das cavernas faz tempo, abandonando hábitos e preferências primitivos. Que tal então seguirmos evoluindo?

*Abel Reis é palestrante, professor, consultor e autor do livro “Sociedade.com – como as tecnologias digitais afetam quem somos e como vivemos”