![Feita de vasos de barro e aço inoxidável, a instalação Devaneios, da dupla libanesa Rana Haddad e Pascal Hachem, nasce da vontade dos autores de honrar as matérias-primas locais: “Da própria terra emergem nossos materiais e para ela também retornarão, completando o ciclo do ser”, explicam — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/pjARLp3x7BVXg6OIL4P7RC9tgLM=/0x0:1924x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/f/7/l9ehbnRl2wN744w3Ibhw/01-rana-haddad-and-pascal-hachem-reveries-desert-x-alula-2024-photo-by-lance-gerber-courtesy-of-the-royal-commission-for-alula-1-cred-lance-ger.jpg)
"Os desertos não param nunca de crescer”, já dizia o poeta Caio Fernando Abreu. Adentrar as areias de AlUla, no noroeste da Arábia Saudita, confirma que, por ali, tudo está em plena expansão, seja a paisagem, o campo histórico e, por que não, a cultura. Se demorou até 2017 para o país do Oriente Médio autorizar a abertura de suas primeiras salas de cinema, a corrida para compartilhar as conquistas da contemporaneidade ocidental parece ter sido traçada a partir dali a fim de tornar a região atenta e ativa aos movimentos globais. Isso inclui a Desert X AlUla, braço do evento nascido no Coachella Valley, na Califórnia, que há quatro anos ganha contornos árabes para mostrar a força das artes visuais saudita e internacional, em um instigante diálogo com a natureza.
Apelidada de Bienal do Deserto, a exposição se conectou aos princípios da land art, movimento artístico surgido nos anos 1960 conhecido por reforçar a ligação entre a arte e o ambiente ao redor, extrapolando espaços convencionais de galerias e museus. Em sua terceira edição, que esteve em cartaz até 23 de março, a mostra apresentou obras comissionadas de 16 artistas, entre eles a brasileira Karola Braga, primeira latino-americana a fazer parte do evento. O olhar nacional esteve também na curadoria, assinada por Marcello Dantas, ao lado da libanesa Maya El Khalil, sob o tema “Na Presença da Ausência”. Os trabalhos site-specific desenvolvidos pelo elenco orbitaram em torno da ideia do invisível e da vida que habita os espaços muitas vezes tidos como vazios, como os próprios desertos. Encorajados a envolver-se com o que não é imediatamente aparente, os artistas encenaram novos encontros com a paisagem, imaginando perspectivas alternativas e reflexões sobre as forças e atmosferas imperceptíveis do tempo, do vento, da luz, dos fluxos da história e dos mitos entrelaçados do lugar.
![A instalação olfativa Sfumato, da brasileira Karola Braga, primeira artista latino-americana a participar da Desert X — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/BNLJKcGA9gRYANDhE8hwS5LOvI4=/0x0:2207x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/y/g/0jroc6Sn2aBSL7orEDfQ/02-karola-braga-sfumato-desert-x-alula-2024-photo-by-lance-gerber-courtesy-of-the-royal-commission-for-alula-cred-lance-ger.jpg)
A experiência sensorial ganhou corpo em muitos dos projetos vistos por ali, como foi o caso de Sfumato, de Karola Braga. A obra buscou recriar a memória olfativa da Rota do Incenso, da qual a região de AlUla fez parte, por onde, há mais de 2 mil anos, diversas caravanas passavam transportando matérias-primas empregadas em rituais religiosos, na produção de ervas medicinais para a confecção de medicamentos e na fabricação de perfumes. Para tanto, Karola concebeu uma espécie de estrutura vulcânica que mimetizava a paisagem enquanto dava vazão aos aromas exalados pelos incensos criados por ela. No topo, um círculo dourado refletiu a luz intensa do deserto e fez referência ao uso da cor em diversas culturas, desde a arte bizantina até a islâmica. “A interação da obra com o ambiente natural foi fundamental para amplificar a experiência sensorial. O vento, como coadjuvante, carregou o aroma pelo espaço, envolvendo os visitantes em uma imersão completa, e ainda assim sutil. Essa relação dinâmica entre os elementos da instalação e o entorno contribuiu para uma vivência multissensorial”, explica a autora.
![Em Dung Bara, o artista ganês Ibrahim Mahama questiona como podemos restaurar memórias e usar a arqueologia e as cicatrizes da história para criar novos significados dentro da paisagem — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/Um_BJxJecat_CwV7kyGQ2wkjaxs=/0x0:1865x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/i/3/W3fmaZRziB9A3G6oaWxA/03-ibrahim-mahama-gabli-din-pali-a-full-gourd-does-not-rattle-it-is-only-a-partially-filled-gourd-which-rattles-cred-lance-ger.jpg)
A arte contemporânea tornou-se assim o veículo ideal para levar visitantes do mundo todo a uma nação que viveu por muitos anos em isolamento. “De certa forma, faço um paralelo com o Brasil do pós-ditadura”, reflete Marcello Dantas. “Época em que tivemos de nos reinventar e nos entendermos novamente como povo. A Arábia Saudita tem um passado enorme, mas também um período longo de silêncio. O ato de fazerem movimentos em torno da integração das diversas culturas, ocidentais e orientais, já é extremamente revolucionário. Dessa forma, o mundo ganha um novo player na criação de arte contemporânea.”
O país é mais um dentre os vizinhos do Golfo Pérsico a lançar mão do entretenimento como forma de integração, a exemplo do que fez o Catar por meio da arquitetura de nomes de peso, com a construção de museus assinados por Jean Nouvel e I.M. Pei em sua capital, Doha. O esporte também se configura como um forte elo do mundo islâmico, em especial o futebol, seja por meio da aquisição de grandes clubes europeus por países árabes (os ingleses Newcastle United e Manchester City, pertencentes às monarquias de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, respectivamente, e o francês Paris Saint-Germain, de propriedade catari), seja pela recente contratação de estrelas globais como Cristiano Ronaldo e Neymar Jr. por times da liga saudita.
![A obra Um Jardim de Pedras no Tamanho Real de um Campo de Futebol, do saudita-palestino Ayman Yossri Daydban — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/W9biO3ufJRamwtoa7-QTjAOYpdM=/0x0:2424x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/a/D/NmEwzURj6dMpYkC8Xbfw/04-ayman-yossri-daydban-a-rock-garden-in-the-shape-of-a-full-sized-soccer-field-desert-x-alula-2024-photo-by-lance-gerber-courtesy-of-the-royal-commission-for-alula-1-cred-lance-ger.jpg)
Tais conexões levaram o artista saudita-palestino Ayman Yossri Daydban a desenvolver na Desert X AlUla a obra Um Jardim de Pedras no Tamanho Real de um Campo de Futebol. Nela, uma área de jogo é armada em uma remota zona rochosa como provocação à memória coletiva, que tem no esporte um símbolo de otimismo e integração social. Sua produção instigou a pensar justamente na cultura do entretenimento como forma de concretizar a preservação do patrimônio humano comum. Esse discurso intangível, deslocado ao topo da formação vulcânica Harrat Uwayrid, sugere que a sociedade ainda tem regras, especialmente quando deslocadas para contextos novos e desafiadores.
![O Ponto, escultura feita de aço, espelho e fragmentos de rochas de vales da região, do artista local Faisal Samra — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/4u8jfsGTjFc9z2PplAR0Cpxvi50=/0x0:2667x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/H/x/5oGRRZRcaAIKWh7aamhA/05-faisal-samra-the-dot-desert-x-alula-2024-photo-by-lance-gerber-courtesy-of-the-royal-commission-for-alula-cred-lance-ger.jpg)
Mas elas estão em constante atualização, e as duas edições passadas do evento são prova disso. Suas áreas expositivas, antes afastadas e desocupadas em meio ao árido deserto, passaram nos últimos anos a ser cobiçadas por sofisticadas cadeias hoteleiras, como é o caso da Habitat, resort ecológico inaugurado em 2021 em AlUla, que englobou hoje o espaço da primeira edição da Desert X, realizada em 2020. Com cerca de 50% das obras mantidas no local, o visitante pôde hospedar-se em meio a criações de nomes como Manal AlDowayan, Sherin Guirguis e Mohammed Ahmed Ibrahim. “O cubo branco não faz mais sentido”, aponta Dantas. “A base para iniciarmos uma discussão estética é a relação da arte com o meio ambiente.” Em AlUla, essa experiência oferece mais que areia no deserto.
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![A paisagem luminosa Respirar-AlUla, da sul-coreana Kimsooja, convida o visitante a percorrer a espiral até o centro — Foto: Lance Gerber, cortesia da The Royal Commission for AlUla](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/c8LWdms8toMMuBqnMKmXYVVN9W0=/0x0:2670x2000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/2/x/9bj4JtSaSV13pVWXUWwg/06-kimsooja-to-breathe-alula-desert-x-alula-2024-photo-by-lance-gerber-courtesy-of-the-royal-commission-for-alula-1-cred-lance-ger.jpg)
*Matéria originalmente publicada no Yearbook de 2024 da Casa Vogue (CV459), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual , e para assinantes no app Globo Mais.