Durante Renascimento italiano, aspirantes a artistas frequentavam as célebres botteghe, estúdios de mestres renascentistas que fervilhavam com a presença de artesãos, carpinteiros, arquitetos, ourives, pintores e escultores. Não existiam escolas de arte, e passar por esses estúdios era um rito obrigatório – a formação era imersiva e plural. Percorrer a casa-museu do artista italiano Luigi Serafini no centro de Roma é como adentrar em um desses estúdios, onde ele se encaixa perfeitamente na descrição, se tal existisse, de um artista renascentista contemporâneo. Arquiteto, designer, artesão e intelectual visionário, Luigi e sua morada personificam a fusão de disciplinas e temporalidades, uma alquimia criativa que transcende as fronteiras do convencional.
No último andar do edifício situado a 100 m do Panteão, a casa fica numa ruela de paralelepípedos que, no passado, viveu períodos de serenidade. Hoje, turistas apressados e rumorosos se acotovelam para passar entre motos e carros estacionados sem nenhuma ordem. Como muitas construções do centro histórico da capital italiana, marcado pela estratificação, o prédio foi erguido sobre as ruínas do que, na época romana, era o teto das termas do imperador Nero. Das grandes janelas de madeira se avistam colunas escavadas das termas, igrejas do séc. 8 e o edifício do Senado, do séc. 15.
As camadas de cidade visíveis a olho nu parecem ter inspirado a composição do interior da morada. Logo na entrada, uma explosão de cores se manifesta nas obras de arte de diferentes períodos. As peças escolhidas são representativas da carreira de Luigi: os quadros, esculturas e instalações dialogam com o vermelho da parede de fundo. Compõem uma narrativa não cronológica, uma espécie de aperitivo do mundo mágico e fantasioso que ele criou ao longo dos quase 40 anos naquela casa. Elementos brancos pintados nas paredes, ora lembrando pilares com modernos capitéis, ora molduras, completam o cenário.
Luigi se mudou para o local alguns anos após a publicação do livro Codex Seraphinianus (Franco Maria Ricci, 1981, 416 págs.). A enciclopédia inventada, escrita e ilustrada o tornou conhecido nacional e internacionalmente. A ideia para a obra surgiu após seu retorno de uma viagem aos Estados Unidos. “Foi um choque cultural. Conheci Keith Haring, frequentei o Studio 54, em Nova York, e viajei muito”, relembra. Cheio de novos estímulos, começou a trabalhar no best-seller.
A casa veio em seguida, com o mesmo espírito. Luigi passou a tecer o que ele chama de sua mandala, uma morada-obra de arte, uma mistura de referências cinematográficas entre O Castelo Andante, de Hayao Miyazaki, e a casa do personagem Godwin Baxter, do atualíssimo Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos. Decoradas e nutridas com muita energia criativa, as estantes monótonas receberam listras vermelhas, acomodando uma infinidade de livros e, entre um vão e outro, criaturas imaginárias, animais antropomórficos concebidos por Luigi. Nas portas internas foram pintados grandes coleópteros, revelando sua paixão também pela entomologia. Desenhos originais do Codex Seraphinianus compartilham espaço com o valente São Jorge em tamanho natural, que Luigi pintou aos 16 anos. “Era um exercício, eu copiei de um livro de Mantegna (obra homônima de Andrea Mantegna), mas errei o tamanho. A original é muito menor”, conta, sorridente.
Na cozinha, as primeiras peças foram as cadeiras Suspiral, de 1982. São os protótipos de um projeto encomendado, na época, por um jovem empreendedor italiano. Foram realizadas artesanalmente e renderam publicações em revistas de design. “Philippe Starck viu e elogiou muito”, diz. Os armários e a mesa também foram desenhados por Luigi, assim como todos os móveis da casa. No centro da mesa, uma curiosa escultura de bronze dourado. “É Teseu, que imaginei apunhalando o Minotauro durante uma dança de tango.”
O altar dedicado ao cervo é o ponto místico do lar. O simbólico animal representa uma espécie de amuleto da sorte – está presente em desenhos, esculturas e objetos. A inspiração pode ter surgido de um feliz acaso: de uma das janelas se avista a imponente cabeça de cervo do topo da Igreja de Santo Eustáquio. O fato incomum remete à história do santo, que se converteu vendo a cruz de Cristo entre os chifres de um cervo.
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*Matéria originalmente publicada na edição de abril/2024 da Casa Vogue (CV 460), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual, e para assinantes no app Globo Mais.