Casa em Roma experimenta com arte e mobiliário em cenários peculiares
Obra e cotidiano coabitam a casa-museu de Luigi Serafini, em Roma, onde cada ângulo é preenchido por manufaturas do ilustre habitante – dos móveis aos objetos artísticos dispostos entre as paredes pintadas por ele mesmo
Por Claudia Marques de Abreu*
audima
Durante Renascimento italiano, aspirantes a artistas frequentavam as célebres botteghe, estúdios de mestres renascentistas que fervilhavam com a presença de artesãos, carpinteiros, arquitetos, ourives, pintores e escultores. Não existiam escolas de arte, e passar por esses estúdios era um rito obrigatório – a formação era imersiva e plural. Percorrer a casa-museu do artista italiano Luigi Serafini no centro de Roma é como adentrar em um desses estúdios, onde ele se encaixa perfeitamente na descrição, se tal existisse, de um artista renascentista contemporâneo. Arquiteto, designer, artesão e intelectual visionário, Luigi e sua morada personificam a fusão de disciplinas e temporalidades, uma alquimia criativa que transcende as fronteiras do convencional.
2 de 12
Luigi Serafini posa em frente a um de seus esboços para um projeto expositivo não realizado — Foto: Filippo Bamberghi Luigi Serafini posa em frente a um de seus esboços para um projeto expositivo não realizado — Foto: Filippo Bamberghi
3 de 12
No estúdio, a instalação site-specific Cervinia, realizada por Luigi Serafini, é composta por uma cabeça de cervo de resina, pequenas esculturas antropomórficas e figuras de cervo garimpadas na Itália e na França – as duas cadeiras antigas pertenciam à família de Luigi e foram renovadas pelo artista, com cores vivas, almofadas e rodízios — Foto: Filippo Bamberghi No estúdio, a instalação site-specific Cervinia, realizada por Luigi Serafini, é composta por uma cabeça de cervo de resina, pequenas esculturas antropomórficas e figuras de cervo garimpadas na Itália e na França – as duas cadeiras antigas pertenciam à família de Luigi e foram renovadas pelo artista, com cores vivas, almofadas e rodízios — Foto: Filippo Bamberghi
No último andar do edifício situado a 100 m do Panteão, a casa fica numa ruela de paralelepípedos que, no passado, viveu períodos de serenidade. Hoje, turistas apressados e rumorosos se acotovelam para passar entre motos e carros estacionados sem nenhuma ordem. Como muitas construções do centro histórico da capital italiana, marcado pela estratificação, o prédio foi erguido sobre as ruínas do que, na época romana, era o teto das termas do imperador Nero. Das grandes janelas de madeira se avistam colunas escavadas das termas, igrejas do séc. 8 e o edifício do Senado, do séc. 15.
4 de 12
No living, a instalação Sirena é uma réplica em dimensão reduzida do trabalho realizado por Luigi para a estação de metrô Materdei, em Nápoles, ao lado da estante personalizada com branco e vermelho, cores da sinalização das estradas, uma lembrança das viagens de carro — Foto: Filippo Bamberghi No living, a instalação Sirena é uma réplica em dimensão reduzida do trabalho realizado por Luigi para a estação de metrô Materdei, em Nápoles, ao lado da estante personalizada com branco e vermelho, cores da sinalização das estradas, uma lembrança das viagens de carro — Foto: Filippo Bamberghi
5 de 12
Na cozinha, os protótipos das cadeiras Suspiral e a mesa com a escultura de bronze Minotango são criações de Luigi – na parede rosa repleta de rosas, da esq. para a dir., estão a obra Miracolo di San Francesco di Paola (no alto), o desenho Reinterpretazione della Piazza Santa Maria Sopraminerva (abaixo) e, ao lado, uma instalação com ninhos de passarinho de cerâmica, parte da coleção do Museo d’Arte Contemporanea all’Aperto di Maglione (MACAM), na Itália, além de uma composição com pratos de cerâmica, esboços de obras e a primeira pintura a óleo concebida pelo artista, aos 11 anos – sobre a geladeira, a cadeira da avó — Foto: Filippo Bamberghi Na cozinha, os protótipos das cadeiras Suspiral e a mesa com a escultura de bronze Minotango são criações de Luigi – na parede rosa repleta de rosas, da esq. para a dir., estão a obra Miracolo di San Francesco di Paola (no alto), o desenho Reinterpretazione della Piazza Santa Maria Sopraminerva (abaixo) e, ao lado, uma instalação com ninhos de passarinho de cerâmica, parte da coleção do Museo d’Arte Contemporanea all’Aperto di Maglione (MACAM), na Itália, além de uma composição com pratos de cerâmica, esboços de obras e a primeira pintura a óleo concebida pelo artista, aos 11 anos – sobre a geladeira, a cadeira da avó — Foto: Filippo Bamberghi
As camadas de cidade visíveis a olho nu parecem ter inspirado a composição do interior da morada. Logo na entrada, uma explosão de cores se manifesta nas obras de arte de diferentes períodos. As peças escolhidas são representativas da carreira de Luigi: os quadros, esculturas e instalações dialogam com o vermelho da parede de fundo. Compõem uma narrativa não cronológica, uma espécie de aperitivo do mundo mágico e fantasioso que ele criou ao longo dos quase 40 anos naquela casa. Elementos brancos pintados nas paredes, ora lembrando pilares com modernos capitéis, ora molduras, completam o cenário.
6 de 12
No hall de entrada, a vitrine (ao fundo) reúne vários protótipos de Luigi, como xícaras, vasos, copos e cerâmicas, e, no centro do espaço, sobre a base verde, o objeto artístico do menino esportista, Ragazzo Gomitaly, faz companhia para a obra Persefone K, sobre a mesa garimpada em antiquário, enquanto a réplica da obra Croc-egg-dile, originalmente exposta no metrô de Nápoles, repousa sobre o tapete, e a instalação luminosa Ora Oceanica faz referência ao filme Alphaville, de Jean-Luc Godard — Foto: Filippo Bamberghi No hall de entrada, a vitrine (ao fundo) reúne vários protótipos de Luigi, como xícaras, vasos, copos e cerâmicas, e, no centro do espaço, sobre a base verde, o objeto artístico do menino esportista, Ragazzo Gomitaly, faz companhia para a obra Persefone K, sobre a mesa garimpada em antiquário, enquanto a réplica da obra Croc-egg-dile, originalmente exposta no metrô de Nápoles, repousa sobre o tapete, e a instalação luminosa Ora Oceanica faz referência ao filme Alphaville, de Jean-Luc Godard — Foto: Filippo Bamberghi
7 de 12
As intervenções na parede incluem a reprodução da frase em grego que significa “nada em excesso”, atribuída ao deus Apolo e esculpida em seu templo em Delfi, na Grécia, o numeral conhecido como o número de ouro ou a proporção áurea, presente em vários aspectos da arte, da arquitetura e da natureza, e, abaixo, o ideograma chinês do nome de Luigi — Foto: Filippo Bamberghi As intervenções na parede incluem a reprodução da frase em grego que significa “nada em excesso”, atribuída ao deus Apolo e esculpida em seu templo em Delfi, na Grécia, o numeral conhecido como o número de ouro ou a proporção áurea, presente em vários aspectos da arte, da arquitetura e da natureza, e, abaixo, o ideograma chinês do nome de Luigi — Foto: Filippo Bamberghi
Luigi se mudou para o local alguns anos após a publicação do livro Codex Seraphinianus (Franco Maria Ricci, 1981, 416 págs.). A enciclopédia inventada, escrita e ilustrada o tornou conhecido nacional e internacionalmente. A ideia para a obra surgiu após seu retorno de uma viagem aos Estados Unidos. “Foi um choque cultural. Conheci Keith Haring, frequentei o Studio 54, em Nova York, e viajei muito”, relembra. Cheio de novos estímulos, começou a trabalhar no best-seller.
8 de 12
Em primeiro plano, a obra Personaggio Immaginario de terracota pintada, ao lado da composição King Botton, em fundo azul — Foto: Filippo Bamberghi Em primeiro plano, a obra Personaggio Immaginario de terracota pintada, ao lado da composição King Botton, em fundo azul — Foto: Filippo Bamberghi
9 de 12
Ao fundo, no corredor, encontram-se a pintura a óleo San Giorgio, em homenagem ao pintor Andrea Mantegna, e, sobre a porta, a reprodução de um desenho do livro Codex Seraphinianus — Foto: Filippo Bamberghi Ao fundo, no corredor, encontram-se a pintura a óleo San Giorgio, em homenagem ao pintor Andrea Mantegna, e, sobre a porta, a reprodução de um desenho do livro Codex Seraphinianus — Foto: Filippo Bamberghi
A casa veio em seguida, com o mesmo espírito. Luigi passou a tecer o que ele chama de sua mandala, uma morada-obra de arte, uma mistura de referências cinematográficas entre O Castelo Andante, de Hayao Miyazaki, e a casa do personagem Godwin Baxter, do atualíssimo Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos. Decoradas e nutridas com muita energia criativa, as estantes monótonas receberam listras vermelhas, acomodando uma infinidade de livros e, entre um vão e outro, criaturas imaginárias, animais antropomórficos concebidos por Luigi. Nas portas internas foram pintados grandes coleópteros, revelando sua paixão também pela entomologia. Desenhos originais do Codex Seraphinianus compartilham espaço com o valente São Jorge em tamanho natural, que Luigi pintou aos 16 anos. “Era um exercício, eu copiei de um livro de Mantegna (obra homônima de Andrea Mantegna), mas errei o tamanho. A original é muito menor”, conta, sorridente.
10 de 12
Na parede do estúdio, encontram-se uma letra do livro Codex Seraphinianus em neon e, sobre o móvel, a obra Galcetto, de terracota, ambos trabalhos de Luigi — Foto: Filippo Bamberghi Na parede do estúdio, encontram-se uma letra do livro Codex Seraphinianus em neon e, sobre o móvel, a obra Galcetto, de terracota, ambos trabalhos de Luigi — Foto: Filippo Bamberghi
Na cozinha, as primeiras peças foram as cadeiras Suspiral, de 1982. São os protótipos de um projeto encomendado, na época, por um jovem empreendedor italiano. Foram realizadas artesanalmente e renderam publicações em revistas de design. “Philippe Starck viu e elogiou muito”, diz. Os armários e a mesa também foram desenhados por Luigi, assim como todos os móveis da casa. No centro da mesa, uma curiosa escultura de bronze dourado. “É Teseu, que imaginei apunhalando o Minotauro durante uma dança de tango.”
11 de 12
Figuram, da esq. para a dir., a escultura Fauno Ubriaco senza Testa, a instalação Piccolo Arco del Triunfo Commedia/Tragedia no pórtico, esboços e desenhos do livro Codex Seraphinianus e um óleo em homenagem ao pintor e escritor francês Roland Topor, todas obras de Luigi – ao fundo, também com autoria do morador, a porta tem pintura de besouro — Foto: Filippo Bamberghi Figuram, da esq. para a dir., a escultura Fauno Ubriaco senza Testa, a instalação Piccolo Arco del Triunfo Commedia/Tragedia no pórtico, esboços e desenhos do livro Codex Seraphinianus e um óleo em homenagem ao pintor e escritor francês Roland Topor, todas obras de Luigi – ao fundo, também com autoria do morador, a porta tem pintura de besouro — Foto: Filippo Bamberghi
O altar dedicado ao cervo é o ponto místico do lar. O simbólico animal representa uma espécie de amuleto da sorte – está presente em desenhos, esculturas e objetos. A inspiração pode ter surgido de um feliz acaso: de uma das janelas se avista a imponente cabeça de cervo do topo da Igreja de Santo Eustáquio. O fato incomum remete à história do santo, que se converteu vendo a cruz de Cristo entre os chifres de um cervo.
12 de 12
Sobre a mesa de trabalho de Luigi, uma pintura a óleo ainda sem nome e em processo de criação — Foto: Filippo Bamberghi Sobre a mesa de trabalho de Luigi, uma pintura a óleo ainda sem nome e em processo de criação — Foto: Filippo Bamberghi
Recentemente, durante uma viagem à China, Luigi descobriu que seu nome é composto de ideogramas: LU (cervo), I (um) e GI (grande). Uma coincidência na vida desse artista que mora envolto em magia.