Decoração

Por Lúcia Gurovitz*


O sofá Bocca, design Studio65 para a Gufram, foi projetado em 1970, época na qual o kitsch começou a ser redimido pelo pós-modernismo: a peça faz referência ao modelo criado pelo surrealista Salvador Dalí em 1938, com base numa pintura em que ele retrata a atriz Mae West — Foto: Alberto Peroli/Divulgacao
O sofá Bocca, design Studio65 para a Gufram, foi projetado em 1970, época na qual o kitsch começou a ser redimido pelo pós-modernismo: a peça faz referência ao modelo criado pelo surrealista Salvador Dalí em 1938, com base numa pintura em que ele retrata a atriz Mae West — Foto: Alberto Peroli/Divulgacao

Se hoje, no cenário pop, kitsch virou sinônimo de bom humor, irreverência e ousadia é porque os conceitos evoluem e as interpretações mudam com o passar do tempo. Quando o crítico italiano Gillo Dorfles publicou o ensaio Kitsch e Cultura, em 1965, o termo provocava reações negativas no meio acadêmico, pois estava associado a manifestações da cultura de massa consideradas medíocres, em especial os excessos trazidos pela industrialização, como as reproduções de obras de arte famosas e os suvenires. Dorfles definiu o kitsch como “aquele elemento que é o contrário da arte”. O significado da palavra, originária do alemão, transita entre “pseudoarte” e “lixo artístico”, e nenhum deles ajuda a despertar simpatia.

Até que aconteceu um momento de virada. “Nos anos 1970, o kitsch foi reabilitado pelo pós-modernismo. Houve um resgate do humor como forma de afrontar a escola moderna, que tinha adquirido uma imagem conservadora”, diz Ethel Leon, pesquisadora e professora de história do design. De acordo com ela, a mudança de percepção em relação ao modernismo começa já na Segunda Guerra, quando os ideais democráticos do movimento e a premissa de que o design contribuiria para a transformação social passam a ser absorvidos e diluídos pelas grandes empresas multinacionais. Também causava incômodo a proposta de gosto homogêneo preconizada pelos modernos. Curiosamente, serão os hippies a combater essa ideia em particular. “Achamos que os movimentos de contracultura eram ingênuos, porém seus integrantes levantavam questões fundamentais. Eles decidem retornar ao art nouveau e recuperar o ornamento, que havia se tornado crime nas palavras do arquiteto modernista Adolf Loos”, lembra Ethel.

O vaso de cerâmica Duck Elephant, design Jaime Hayon para a Bosa, integra a coleção Baile, de 2020, em que o espanhol brinca com a ideia de máscaras festivas e elementos fantasiosos – o autor concilia sua produção bem-humorada a outra mais racional — Foto: Divulgação
O vaso de cerâmica Duck Elephant, design Jaime Hayon para a Bosa, integra a coleção Baile, de 2020, em que o espanhol brinca com a ideia de máscaras festivas e elementos fantasiosos – o autor concilia sua produção bem-humorada a outra mais racional — Foto: Divulgação
Pinguim de geladeira, clássico da estética kitsch no Brasil — Foto: George Melin/Shutterstock
Pinguim de geladeira, clássico da estética kitsch no Brasil — Foto: George Melin/Shutterstock

Mais liberdade

Num tempo em que a diversidade cultural é tão valorizada e museus de todo o mundo buscam corrigir distorções históricas na representatividade de seus acervos, a ideia de que exista um gosto dominante soa, de fato, anacrônica. “Quem determina o que é bom e ruim, brega e chique, feio e bonito?”, pergunta o arquiteto Maurício Arruda. O questionamento se estende a diversas esferas da vida, que incluem a casa e os objetos escolhidos para habitá-la. “Vivemos em uma época de grande liberdade de expressão. Os indivíduos são plurais e não querem ficar presos a um estilo só. Percebo em meus clientes o desejo de se afastar de modismos e tendências para criar uma decoração autêntica, que não imita ninguém”, continua Maurício. Embora acredite que o rótulo kitsch ainda carregue nos dias de hoje uma conotação pejorativa, ele diz apreciar a coragem de quem adota esse caminho. “Avaliações estéticas são sempre subjetivas. Prefiro usar o termo ‘maximalista’ para descrever um projeto que misture cores, estampas, materiais e tenha humor. Porém também acho que podemos escapar dos adjetivos e viver com menos julgamento”, afirma.

Numa linha semelhante de raciocínio, o arquiteto Sig Bergamin conta que o segredo para criar um ambiente divertido e fora do convencional é não se preocupar com a opinião alheia. “Essa conversa de que existem peças que não combinam entre si é mentira. Junte as coisas de que você gosta sem medo de brincar”, declara. Segundo ele, o conceito se aplica a canecas, jarras em formato de fruta, bichos de pelúcia, bibelôs, cogumelos, gnomos, letreiros de neon e todos os itens que os outros chamam de cafona, mas você ama mesmo assim. “Adoro o kitsch! Ele representa uma maneira leve de ser. É livre, engraçado, genuíno, naïve”, descreve.

Loft decorado por Karim Rashid só com produtos de sua autoria, como o sofá vermelho Omni (ao fundo), a poltrona dupla Loveseat (à esq.) e o sofá Wavelenght, com assento verde (no centro) – o designer se destaca pela irreverência  — Foto: Evan Joseph/Divulgacao
Loft decorado por Karim Rashid só com produtos de sua autoria, como o sofá vermelho Omni (ao fundo), a poltrona dupla Loveseat (à esq.) e o sofá Wavelenght, com assento verde (no centro) – o designer se destaca pela irreverência — Foto: Evan Joseph/Divulgacao
A luminária de mesa Tahiti, feita de laminado plástico e metal laqueado, foi criada por Ettore Sottsass em 1981, ano em que fundou o Memphis: atualmente, as peças do grupo fazem parte do acervo de design de museus de todo o mundo — Foto: RI/Divulgação
A luminária de mesa Tahiti, feita de laminado plástico e metal laqueado, foi criada por Ettore Sottsass em 1981, ano em que fundou o Memphis: atualmente, as peças do grupo fazem parte do acervo de design de museus de todo o mundo — Foto: RI/Divulgação

Por sinal, os sentimentos que os indivíduos nutrem por seus objetos (pieguice, diriam os adversários do kitsch na década de 1960) se tornaram um dos principais critérios utilizados na hora de delimitar o que entra ou não num projeto, especialmente entre profissionais atentos ao significado da casa como suporte emocional e relato biográfico dos moradores. “Posso até achar uma peça brega num contato inicial, mas assim que entendo que ela tem relação com a trajetória e a personalidade do cliente, essa percepção desaparece”, explica o arquiteto Jean de Just, francês radicado no Rio de Janeiro há dez anos. Para Maurício Arruda, as memórias afetivas são um fator de decisão incontestável. “Não há argumento contra a frase ‘tenho uma ligação sentimental com este móvel porque ele pertenceu à minha avó e quero muito usá-lo na decoração’. O papel do arquiteto ou designer de interiores é contar essa história de um jeito bonito”, afirma.

Se o item em questão for divertido, exagerado ou extravagante, talvez seja necessária alguma maestria para fazê-lo se integrar à composição do espaço. “Trato de colocá-lo em evidência. Não adianta esconder o kitsch”, diz Sig Bergamin. “Desenharia logo um pedestal, uma caixa de vidro para expô-lo. No caso de uma coleção, agruparia numa estante. Quando você multiplica esse tipo de objeto, o efeito é ainda mais engraçado”, prossegue. Respeitar as proporções do ambiente, segundo Jean de Just, é a única regra irrevogável. De resto, está permitido brincar. “Não gosto de decoração certinha. Procuro sempre ter uma peça que quebre o padrão, faça o twist, e tento encontrar alguma relação entre ela e as demais, seja por meio da cor ou da estampa”, diz.

Pratos e jarras de faiança da coleção Peixes, da Bordallo Pinheiro – utensílios de mesa em formato de animais e frutas estão entre os ícones do kitsch — Foto: Divulgação
Pratos e jarras de faiança da coleção Peixes, da Bordallo Pinheiro – utensílios de mesa em formato de animais e frutas estão entre os ícones do kitsch — Foto: Divulgação
O ambiente em tons de rosa e verde, projeto de Jean de Just, está afinado com a tendência de cozinhas supercoloridas prevista pelo Pinterest para este ano — Foto: Renato Navarro
O ambiente em tons de rosa e verde, projeto de Jean de Just, está afinado com a tendência de cozinhas supercoloridas prevista pelo Pinterest para este ano — Foto: Renato Navarro

Cor e humor

No final do ano passado, a plataforma Pinterest incluiu entre as tendências de décor identificadas no relatório Pinterest Predicts 2024 as “kitschens”, cozinhas supercoloridas e recheadas de artigos com humor. A versão brasileira do texto menciona o pinguim de geladeira, um clássico da estética kitsch no país. Como o levantamento se baseia em buscas feitas por usuários, estaríamos no início de uma onda de mais cor e alegria no décor? “O mercado ainda prefere o básico e neutro, é o que mais vende”, constata o designer Humberto da Mata. Seu trabalho, no entanto, prospera na direção contrária. “Faço minhas criações com um desejo de provocação e o humor é um dos componentes envolvidos. Quero despertar a sensação de algo nunca visto, de surpresa. Por isso, uso as formas orgânicas e a cor como instrumentos para ativar os sentidos”, explica.

Arquiteto de formação, Humberto decidiu se tornar designer após um curso com os irmãos Campana, no qual aprendeu um processo de construção de objetos que prioriza a manualidade, a experimentação de materiais e a prototipagem. Na série Orgus, o designer cria peças únicas, moldadas à mão, de cerâmica e papel machê. “Ressalto mais a forma do que a função e me aproximo da arte”, declara. Entre suas influências, ele cita, além dos irmãos Campana, o designer Gaetano Pesce, o movimento Design Radical e o lendário grupo Memphis.

Poltrona Banquete (2002), de Fernando e Humberto Campana, feita de bichos de pelúcia costurados – o bom humor e as peças questionadoras da dupla influenciam a nova geração de criadores no Brasil e no exterior — Foto: Fernando Laszlo/Divulgação
Poltrona Banquete (2002), de Fernando e Humberto Campana, feita de bichos de pelúcia costurados – o bom humor e as peças questionadoras da dupla influenciam a nova geração de criadores no Brasil e no exterior — Foto: Fernando Laszlo/Divulgação

Em 2021, uma exposição no Vitra Design Museum, na Alemanha, recebeu o nome de Memphis: 40 Anos de Kitsch e Elegância. A retrospectiva reuniu a produção do ateliê colaborativo fundado em 1981, em Milão, sob a liderança de Ettore Sottsass, e diversos textos publicados à época da mostra destacaram como o movimento contribuiu para a revisão dos preconceitos ligados ao kitsch com suas peças de cores vibrantes, desenho inusitado e nada funcional, feitas de materiais emprestados da fabricação em massa, como o laminado de vinil. “O Memphis também questionava a rigidez modernista, porém não foi o único a fazer isso. Outros estúdios, como Archizoom, Totem e Stiletto, adotaram a mesma proposta”, comenta Ethel Leon.

Hoje disputadas por colecionadores em leilões, as criações do Memphis passaram a representar a contestação máxima ao preceito de que a forma segue a função, enunciado pelo arquiteto americano Louis Sullivan e incorporado pela Bauhaus. Mas o design funcionalista já estava superado antes do surgimento do grupo. “Diversos críticos combateram o conceito ao longo das décadas e, no início dos anos 1970, o designer alemão Gui Bonsiepe estabeleceu uma nova teoria ao propor que design é interface, ou seja, o espaço de interação entre o humano e o não humano”, diz Ethel. Além da racionalidade, essa zona intermediária admite as relações simbólicas.

Adoro o kitsch! Ele representa uma maneira leve de ser. É livre, engraçado, genuíno, naïve
— Sig Bergamin
A luminária de vidro soprado Cherry (2010), de Nika Zupanc, faz parte da linha de produção própria da designer — Foto: Dragan Arrigler/Divulgacao
A luminária de vidro soprado Cherry (2010), de Nika Zupanc, faz parte da linha de produção própria da designer — Foto: Dragan Arrigler/Divulgacao

E aí cabe o humor. A linhagem de autores à qual pertencem o grupo Memphis e Humberto da Mata remonta ao nascimento do design industrial, na segunda metade do séc. 19. “Na época, o escocês Christopher Dresser projetou uma série de utensílios de metal em que havia uma brincadeira entre linguagem verbal e visual. A perna do açucareiro era uma perna. Peças desse tipo criam novas narrativas”, conta Ethel. Depois vieram vários movimentos em que o design incorpora o humor, como o futurismo italiano e o surrealismo, até que, com a chegada do pós-modernismo, a ideia se disseminou. Hoje em dia, é fácil listar estrelas do design que, paralelamente a uma produção mais objetiva e racional, encontram prazer na criação de artigos questionadores e divertidos, como Inga Sempé, Jaime Hayon, Marcel Wanders, Nika Zupanc, Philippe Starck, Stefano Giovannoni e Tom Dixon. Outros, como Karim Rashid, Marcantonio, Matteo Cibic e Studio Job, têm na irreverência seu motor principal. Esse cenário reflete o desejo por um décor mais leve, alto-astral e recheado de histórias.

“Meus móveis e objetos costumam entrar nas casas como o ponto fora da curva, especialmente se estamos falando de um ambiente minimalista”, diz Humberto da Mata. Em pequenas doses ou grandes quantidades, o importante é trazer o humor para o dia a dia. “Com a maturidade, o ser humano aprende a rir de si mesmo”, afirma Maurício Arruda. Melhor ainda quando a evolução pessoal também liberta do medo de cair no ridículo. “Brega é morar numa casa que não tem nada a ver com sua personalidade”, finaliza Jean de Just.

*Matéria originalmente publicada na edição de maio de 2024 da Casa Vogue (CV461), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual, e para assinantes no app Globo Mais.

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