• TEXTO E ESTILO SIMONE RAITZIK | FOTOS NICOLAS BOURIETTE
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Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

No living, próximo a um dos janelões voltados para a rua, o aparador (à esq.) traz jarro de porcelana de Dora Wainer e blocos
de mármore assinados por Laura Vinci – ao fundo, a cortina de linho, desenhada pela moradora, possui gatos bordados por Clara Zúñiga

A artista plástica Gabriela Machado começou a pintar na Fazenda Resgate, propriedade de sua família localizada em Bananal, SP, vilarejo na fronteira com o Rio de Janeiro, na Serra da Bocaina. Dos 10 aos 18 anos ela morou naquele local histórico, construído quando a lavoura do café era uma das principais atividades econômicas da região.

A vocação inevitável pela arte nasceu ao acompanhar avidamente a restauração dos afrescos originais da sede, orquestrada pelo pai. “Ele passou quase uma década recuperando cada detalhe do lugar. O passo a passo cuidadoso, a mistura de tons, o estudo dos materiais – tudo me fascinava. Comecei a desenhar de forma intuitiva, solta, como um exercício diário. E nunca mais parei”, conta.

Nessa época, durante as férias, Gabriela também costumava descer a serra, passando longas temporadas em Paraty, RJ, cidade à beira-mar famosa por sua bem conservada arquitetura colonial. Para a artista, essa vivência durante a juventude reverberou em seu ideal de lar.

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

As janelas voltadas para o pátio interno tornaram-se três portas que seguem o padrão original do imóvel, trabalho executado pela Marcenaria Simão, de Ubatuba, SP

Não à toa, tempos depois, nos anos 1980, ela se encantou por um sobrado no Horto carioca, situado na Chácara do Algodão – um conjunto arquitetônico do final do século 19 preservado pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), composto por antigas moradias destinadas aos trabalhadores da indústria têxtil América Fabril.

Na época aluna da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Gabriela vislumbrou montar seu ateliê ali. Comprou e reformou uma das casinhas como suporte da arquiteta Lia Siqueira, do escritório Siqueira + Azul Arquitetura. Com pé-direito alto, mezanino e um terraço, os 150 m² transformaram-se em um ambiente inspirador para criar suas telas, repletas de um traço abstrato, carregado de cores. “Eu adorava o espaço e a proximidade coma rua. Mas buscava mais luz natural, porque a construção era geminada, como numa vila”, relata.

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

O sofá e as poltronas Zanzibar, da Flexform, foram comprados no Arnaldo Danemberg Antiquário, e formam o conjunto de estar coma poltrona LC1, de Charlotte Perriand, Le Corbusier e Pierre Jeanneret, da Cassina, ao lado da qual o baú antigo vindo da fazenda da família da proprietária faz par com o cesto de crochê da Trama Casa – na parede, tela vermelha de Elizabeth Jobim seguida por monotipia de Mira Schendel, autora dos quadros no alto

Há cerca de dez anos, surgiu a oportunidade de resolver esse problema e Gabriela não hesitou. Arrematou a casa ao lado e chamou Lia novamente, com a proposta de integrá-la à primeira, ampliando sua luminosidade, mantendo os aspectos originais e convertendo-a em sua residência.

Durante a reforma, os dois quartos amplos permaneceram reservados no andar superior, enquanto no térreo o living abriu-se para o pátio, que dá acesso à cozinha, posicionada na edícula, e, claro, ao ateliê, agora integrado a essa área externa que passou a ligar as duas unidades.

Ali, a parede de pedra de cantaria, remanescente do século 19, revela o apelo rústico do antigo complexo. “Decidimos explorar os pequenos jardins como novos elementos arquitetônicos. Com isso, ganhamos claridade e ventilação cruzada”, afirma Lia, que conseguiu, através de amplos painéis de vidro no lugar das janelas de madeira, nos fundos, filtrar uma luz surpreendente. “Renovamos praticamente tudo. Quebramos paredes sem mexer na volumetria nem na fachada. E trabalhamos sempre com o aval do Patrimônio Histórico”, acrescenta a arquiteta.

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

O mosaico de pedra de cantaria do século 19 revela o aspecto histórico do pátio

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

A pia-tanque no pátio ganhou arremate de azulejos portugueses antigos, bem ao estilo da construção

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

No ateliê, Gabriela pinta perto da porta, à frente de uma série de sua autoria, Dos Mares e das Luas, exposta na parede

No décor, Gabriela também considera fundamental o aceno ao passado afetivo. Os cômodos propõem uma interessante mistura de móveis antigos, muitos herdados de família, e objetos trazidos de viagens e estadias no exterior. “Tenho peças frutos de trocas. O sofá e as poltronas, por exemplo, vieram do Arnaldo Danemberg Antiquário [Gabriela doou itens de família e levou outros encontrados ali]. Nas paredes, penduro quadros meus e de amigos. A verdade é que estou sempre mudando tudo de posição. O morar é, ao mesmo tempo, um exercício dinâmico e artístico”, discorre.

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

Na edícula, as portas de correr da cozinha possuem brises reguláveis de madeira maciça, executados pela Marcenaria Simão, que também produziu a mesa de jantar, rodeada por cadeiras adquiridas no Arnaldo Danemberg Antiquário – o lustre de Murano veio do antiquário Onze Dinheiros

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

Gabriela posa ao lado de um grafite de sua autoria realizado sobre a porta deslizante do quarto – a escada metálica dá acesso ao escritório, alocado no piso superior do ateliê

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

A passagem do quarto para o banheiro, no andar superior, é protegida por um pergolado

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

No quarto, um banco do século 18, do acervo da família, faz as vezes de mesa de cabeceira ao lado da cama box, coberta por mantas compradas em viagens, assim como a pele de carneiro disposta na poltrona, garimpada no Arnaldo Danemberg Antiquário –  ao fundo, na parede, a composição com criações de amigos contém obras de nomes como Fabio Miguez, Tatiana Blass, Elvis Almeida, Gisele Camargo, Maria-Carmen Perlingeiro, Tiago Baptista, Paulo Monteiro, Alvaro Seixas, Luiza Baldan e Eduardo Sued

Reforma preserva fachada e revestimentos de casa do século 19c (Foto: Nicolas Bouriette)

Grandes painéis pivotantes de vidro trazem farta luz natural para o escritório, com bancadas e gaveteiros feitos sob medida e cadeiras vindas da fazenda da família, acomodadas ao redor de um tapete comprado em viagem, tudo sob os pendentes de papel adquiridos no MoMA, que ressaltam a vocação criativa do espaço – ao fundo, sobre a prateleira superior, da esq. para a dir., paisagem de Giovanni Battista Castagneto e desenho de Jorge Eduardo Guinle Filho, e, embaixo dela, na parede, grafite de Carolyn Lavender

A vila histórica, para a artista, possui um estilo descomplicado, que reflete seu modo de viver e fomenta a criatividade. “Parece uma cidade do interior dentro do Rio de Janeiro, todo mundo se conhece e se ajuda. Temos um ar meio praia, meio fazenda. Estar aqui é um privilégio”, conclui.