• MARIANA PROENÇA | FOTOS GUI GOMES
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De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

A Fazenda Santa Alina, em São Sebastião da Grama, SP, convida a mergulhar no passado centenário da região montanhosa – de maio a agosto, colhem-se os frutos que percorrem terreiros de secagem e, depois de prontos, ganham o mundo em forma de grãos de café

Se para muitas famílias o sonho de largar tudo e migrar para o campo não vai além do âmbito do desejo, há outras tantas para quem o anseio bucólico ultrapassou a imaginação e se concretizou numa realidade com sabor de café.


É o caso, por exemplo, de Valmor Santos e Adriane Freddi, típicos paulistanos enraizados na metrópole, na qual fizeram a vida e de onde não cogitavam sair.  Absorvidos pelos trabalhos formais de metalurgia e publicidade, gostavam de viajar nos fins de semana para acampar e pegar o carro em expedições mais longas. “Em um feriado, saímos com a missão de descobrir cachoeiras e paramos em Bueno Brandão [cidade mineira na divisa com São Paulo]. Amamos e resolvemos dormir para retomar a estrada no outro dia”, lembra ela.

Mas a programação acabou se estendendo. A cidade tem 38 quedas-d’água, fica a 185 km da capital paulista e conta com muitas atrações naturais, a despeito da falta de investimento  em turismo. “Achamos perfeito para descansar e passamos a vir sempre”, descreve ele.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Sala de torrefação da Cafezal em Flor, em Monte Alegre do Sul, SP, que oferece hospedagem em meio à plantação

Da paixão pela localidade à resolução de comprar um terreno transcorreram alguns anos. “Inicialmente, alugamos uma casa. Nos ofereceram a do padre que, de vez em quando, ficava hospedado ali”, ri Adriane. O canto religioso pode ter ajudado a abençoar a decisão, pois, meses depois, apareceu um lote. “Tudo aqui era pasto. Desenhamos o projeto no chão com um graveto”, explica Valmor. Logo, o almejado refúgio se converteu em negócio.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Na Fazenda Santa Alina, é possível, durante o passeio, observar antigas moradas de colonos

A venda de uma carta de consórcio de carro bancou o sítio e contribuiu para a construção da casa-sede. Aos poucos, o interesse pela cafeicultura se manifestou. “Viemos para Bueno Brandão há 21 anos, fomos os primeiros forasteiros. Nos receberam muito bem. Cada dia alguém trazia uma comida típica para experimentarmos”, rememora a ex-publicitária. Um desses visitantes encorajou-os a plantar café, atividade comum na região. Em 2003, chegaram os primeiros pés. Eles levam, no mínimo, três anos para gerar os grãos que darão origem à safra.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Na Café Campo Místico, em Bueno Brandão, MG, a experiência da visita guiada pela agrofloresta e da colheita termina com a degustação de delícias regionais na varanda da casa-sede, que expõe objetos e utensílios essenciais à culinária caipira

A espécie arábica, mais adequada para a topografia montanhosa do sul de Minas, se adaptou muito bem ao local. Apaixonada pelo assunto, a dupla se pôs a frequentar cursos, eventos e capacitação agrícola. Batizou seu produto Café Campo Místico, em referência a um dos nomes anteriores do município. E se envolveu cada vez mais com o processo. “Começamos a convidar as pessoas para conhecerem nosso forno à lenha, o café passado no fogão rústico e os quitutes da roça que a vizinhança prepara: queijos, doces de compota…”, explica Adriane.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Sala da Fazenda Santa Alina mescla objetos históricos a itens trazidos de viagens pela arquiteta Tuca Dias, responsável pelo negócio

De uma pastagem devastada e sem árvores, a propriedade virou referência no Brasil para a cafeicultura de agrofloresta, ou seja, em harmonia com a vegetação nativa (em oposição à monocultura), retornando para o ambiente os nutrientes retirados do solo. Valmor fala com orgulho da chácara tomada como exemplo Brasil afora. “Queremos compartilhar o que aprendemos aqui. Também trocamos muita informação com quem vem de fora ou em feiras de negócios”, enfatiza.

Hoje, ele e a mulher dividem o tempo entre o endereço em São Paulo, a torrefação, também na capital, e o cultivo em Bueno Brandão. Nos passeios guiados, é possível colher os frutos, aprender sobre agrofloresta e ainda ouvir as deliciosas histórias da família, contente com tudo que conquistou nesses anos, principalmente o retorno da nascente da propriedade depois da recuperação da vegetação.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Sala da Fazenda Santa Alina mescla objetos históricos a itens trazidos de viagens pela arquiteta Tuca Dias, responsável pelo negócio

FLOR QUE NASCEU DOCE

Não muito longe, o famoso “logo ali” dos vizinhos mineiros, outro casal, Marcia e Tuffi Bichara, iniciou uma trajetória semelhante em Monte Alegre do Sul, SP. Há 20 anos receberam um incentivo da cidade para ocupar as terras onde hoje está a Cafezal em Flor. Para a doação era necessário que fomentassem o turismo, e assim procederam.

Marcia, como historiadora, e Tuffi, como zootecnista, estudaram o entorno e, juntos, valorizaram as tradições regionais, marcadas pela imigração italiana e a presença de águas minerais e rochas vulcânicas. As pedras que surgiam ao abrirem as primeiras lavouras foram usadas na base da edificação principal e, logo em seguida, nos chalés que hoje servem de pousada. “Tudo é construído com material recuperado e em convívio com a produção”, explica Marcia.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

A iluminada cozinha da Santa Alina, onde Lucia Migotto prepara receitas da região

Ao som da cachoeira que desemboca no Rio Camanducaia, os hóspedes tomam o desjejum, comem pratos regionais e caminham em meio à natureza. Assim como na experiência de Valmor e Adriane, a Cafezal em Flor nasceu como foco na agrofloresta e na sustentabilidade ambiental, econômica e social, e semeou centenas de árvores. “O cafezal permite a convivência entre a fauna e a flora”, ressalta a proprietária. A estadia estimula vivências temáticas, tanto na época de plantio quanto na de colheita, nos meses de maio a agosto. Há ainda o aprendizado da torra e do preparo, feitos na cafeteria que ocupa um galpão erguido com materiais recuperados de casas antigas das proximidades.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Pausa para o café na visita guiada da Cafezal em Flor

Marcia, como educadora, destaca que o “turista ajuda na preservação, pois sai daqui enaltecendo a região e o que ele presenciou”. De alta qualidade, seu grão, premiado em concursos nacionais, deriva da produção de microlotes, como a variedade fermentada na levedura da cachaça local e torrada na fazenda. Leva o nome de Marvada, em homenagem à cantora e compositora Inezita Barroso, caipira e entusiasta dessa cultura. Os visitantes podem passar o dia ou se hospedar nos chalés, com vista imperdível para as montanhas.

De grão em grão: como os novos cafeicultores transformam o plantio da bebida (Foto: Gui Gomes)

Na mesma fazenda, área externa com espelho d’água adiciona frescor à paisagem do cafezal ao fundo

DIVERSIDADE E ATITUDE

O Brasil que dá certo, segundo a produtora Tuca Dias, é o que ela gosta de apresentar na Fazenda Santa Alina, em São Sebastião da Grama, SP, sob sua administração há 12 anos. A gleba está na família faz mais de um século, mas passa, em suas mãos, por constantes mudanças. Diferentemente das histórias anteriores, Tuca contabiliza mais de 9 mil sacas por ano e exporta café cru para vários países, como Estados Unidos, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Japão. Para isso, ela se viu desafiada a revolucionar a forma de se relacionar com os colaboradores. Dentre dezenas de adaptações ao longo do tempo, as mais recentes são o trabalho educativo com as crianças da fazenda, por meio de aulas extracurriculares, e o ensino sobre café e culinária. “Pequenos movimentos mudam as gerações”, acredita.

Na sede, aberta para eventos pré-agendados, entra-se em contato com fotos, livros e quadros a respeito do fruto, e a própria Tuca compartilha memórias e fala sobre como a bebida permeia nossa vida. Atenta às tendências do mercado gourmet, ela também vende para lojas de São Paulo e gosta de percorrer o Brasil e visitar produtores internacionais para entender como trabalham o visual das embalagens e a comunicação. Os quartos da casa aliam o passado a um quê moderno. Como arquiteta, Tuca exerce a influência da sua formação em cada detalhe do espaço. A sala de degustação, a cozinha que recebe a luz natural e os quitutes irretocáveis oferecidos pela cozinheira Lucia Migotto complementam todo o carinho contido em uma única xícara. Como nas outras duas propriedades desta reportagem (e dezenas delas Brasil adentro), conhecer de onde vem e quem faz o café torna o ritual de saboreá-lo ainda mais prazeroso.