� professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de An�lise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.
Deslize de William Waack mostra lado do escravismo que persiste at� hoje
O dia amanh� � de Zumbi, mas n�o � preciso evocar o rebelde para lembrar os males do escravismo.
Sua mem�ria est� viva e em toda parte. "A escravid�o permanecer� por muito tempo como a caracter�stica nacional do Brasil", escreveu Joaquim Nabuco em "Minha Forma��o", pouco mais de uma d�cada depois da Lei �urea. Era 1900 e ele deve ter aventado que para "muito tempo" um s�culo servia.
N�o serviu. S�o 129 anos desde a aboli��o e o escravismo continua irradiando seus efeitos.
A escravid�o estruturou o modo de vida brasileiro para muito al�m da economia. As rela��es entre senhor e escravo moldaram, Nabuco diz em seu outro cl�ssico ("O Abolicionismo", 1883), vida privada e p�blica, fam�lia e trabalho, cultura e pol�tica. Um molde que perdura.
A longa dura��o do escravismo se evidenciou no debate p�blico nas �ltimas semanas em duas falas. Uma, de cora��o aberto, chamou a si o lugar de escravo. A outra, de microfone falho, recuperou o ponto de vista do senhor.
A ministra Luislinda Valois o declarou em carta. Ao reivindicar aumento salarial da casa dos 30 mil para a dos 60 mil reais, argumentou que o exerc�cio de seu cargo, desfalcado de remunera��o adicional, "sem sombra de d�vidas, se assemelha ao trabalho escravo, o que tamb�m � rejeitado, peremptoriamente, pela legisla��o brasileira desde os idos de 1888 com a Lei da Aboli��o da Escravatura".
A frase chocou. Decerto n�o por vir de membro de um governo que corta direitos. Tampouco pela demanda em si. Afinal, Executivo, Legislativo e Judici�rio abrigam legi�o de acumuladores de benef�cios indiretos sem causar a mesma grita.
O que estarreceu foi ver a ministra dos Direitos Humanos, coletivos por excel�ncia, invoc�-los n�o em favor de coletividades que deles carecem, mas em benef�cio pr�prio.
Foi � escravid�o que Luislinda Valois, neta de escrava, recorreu para se defender do esc�ndalo, uma semana depois. Deslocou-se da posi��o de elite social, � qual a profiss�o a al�ou, para a situa��o de v�tima, � qual sua cor a confinaria. Chamando para si a condi��o de "preta, pobre e da periferia", manejou a escravid�o em autodefesa.
O outro lado do escravismo deu no "New York Times". � o da moral do senhor. O deslize de William Waack tem ao menos tr�s de seus elementos.
Um deles � a associa��o da inferioridade a uma cor de pele —"coisa de preto". Outro, no momento em que xinga quem buzina, � a exibi��o ostensiva da viol�ncia t�pica do escravismo, que desqualifica o outro, que o rebaixa e estigmatiza. Um sadismo bem captado no filme "Django Livre", de Quentin Tarantino.
O terceiro � o tom senhorial de desd�m e cumplicidade com que Waack fala ao interlocutor, uma arrog�ncia t�pica de um grupo social que se sente naturalmente superior e no direito inconteste ao mando.
O experimentado jornalista n�o falou para as c�meras, segredou no bastidor ou, como se dizia nos tempos da escravid�o, � sorrelfa. E essa diferen�a tem todo o sentido.
Na cena aberta, a maioria da elite social brasileira brada pela moderniza��o, mas a portas fechadas exala, cada vez mais e com mais vigor, �dio surdo aos "excessos" do politicamente correto —que a impede de explicitar o que de fato pensa sobre aqueles "pretos", que j� n�o moram nas senzalas.
Poucos se solidarizaram com o jornalista, mas muitos concordaram com uma linha de defesa, a da "frase infeliz" —como se ela n�o delatasse um sentimento profundo. Inferem que � algo a se p�r de lado em nome de problemas mais "s�rios", os da economia. Este foi o argumento t�pico do escravismo brasileiro: raz�es econ�micas obrigavam a prosseguir com a escravid�o.
A pr�pria economia mostra o qu�o vivo segue o escravismo. Recente pesquisa Seade/Dieese atesta que s�o raros os negros como Luislinda Valois e Joaquim Barbosa, exitosos na ascens�o social pela via da carreira de Estado.
Mesmo quando s�o portadores de diploma superior, os negros ocupam mais tarefas de execu��o e apoio, enquanto a maior parte das posi��es de dire��o, ger�ncia e planejamento segue privil�gio de brancos. E, exercendo os mesmos cargos, eles ganham sistematicamente menos.
A usual panaceia nacional (que vem desde os tempos do Imp�rio), de que o acesso � educa��o por si s� corrigiria a hierarquia racial, desconsidera essa longa dura��o do escravismo tanto nas cren�as como nas pr�ticas.
A igualdade humana —a atitude de Waack o ilustra— n�o � convic��o moral que oriente muitos dos que ocupam postos de comando no Brasil. Dessa forma sutil, mas efetiva, a escravid�o segue viva entre n�s.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade