Haddad hostiliza imprensa por n�o admitir cr�tica, escreve S�rgio D�vila
RESUMO Editor-executivo da Folha rebate ataque � imprensa feito pelo ex-prefeito Fernando Haddad em texto na "piau�", revista que recusou publicar esta resposta em sua vers�o impressa. Autor afirma que petista foi paparicado pelos jornalistas, mas reclama dos ve�culos de comunica��o por n�o admitir cr�tica, pr�pria ou dos outros.
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Na piada comunista dos anos 1970, um companheiro encontra o outro na rua e diz: "Que coincid�ncia! Ontem mesmo eu fiz a sua autocr�tica...".
Na edi��o de junho da revista "piau�", o ex-prefeito Fernando Haddad publicou texto em que se arriscava, pela primeira vez, a fazer um balan�o mais amplo de sua gest�o � frente de S�o Paulo (2013-16).
No ano passado, o petista concorreu � reelei��o e perdeu para o tucano Jo�o Doria. Foi a �nica ocasi�o na hist�ria paulistana, desde a introdu��o dos dois turnos no processo eleitoral, em que o pleito se decidiu j� na primeira rodada.
Num texto intitulado "Vivi na pele o que aprendi nos livros", em 76.377 caracteres com espa�os, o equivalente a um pequeno livro, Haddad parece atribuir sua derrota a um cesto de culpados no qual ele junta a ex-presidente e companheira de partido Dilma Rousseff, a direita (a neoliberal e a protofascista), a imprensa, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Minist�rio P�blico do Estado de S�o Paulo, o Movimento Passe Livre (MPL), o PMDB e o patrimonialismo.
Na �ltima coluna do artigo, na verdade um condensado de uma s�rie de depoimentos que concedeu ao rep�rter Ivan Marsiglia, o petista diz: "Quando jornalistas me perguntam a que atribuo minha derrota em 2 de outubro de 2016, contenho o riso e asseguro: 'Faltou comunica��o'".
� o m�ximo de autocr�tica que se disp�e a fazer, ainda assim embrulhada em ironia.
A interpreta��o que o ex-prefeito faz da realidade econ�mica do per�odo levou Marcos Lisboa a escrever uma r�plica, "Outra hist�ria", que a "piau�" publicou duas edi��es depois. Nela, o economista, presidente do Insper e colunista da Folha argumentava que era pouco dizer que o PT subestimou o patrimonialismo, como escreveu Haddad.
"A pol�tica econ�mica heterodoxa adotada no segundo mandato de Lula refor�ou (�nfase no refor�ou) o patrimonialismo", afirmou Lisboa.
O texto ensejou uma resposta de Haddad na edi��o seguinte (mais 26.383 caracteres com espa�os) e nova r�plica de Lisboa, no volume do m�s passado. Eles n�o comentam, ou comentam apenas lateralmente, a avalia��o que o pol�tico fez da imprensa em seu artigo original, o que nos traz a este texto. Uma vers�o dele foi submetida � dire��o da "piau�", que recusou sua publica��o na edi��o impressa da revista de novembro.
RECLAMA��ES
Fernando Haddad reclama do jornalismo. Diz que falta regula��o de mercado, que os meios de comunica��o funcionam como oligop�lio do ponto de vista econ�mico e como monop�lio do ponto de vista pol�tico. Que s�o geridos por fam�lias que pensam da mesma forma e t�m a mesma agenda para o pa�s, "com varia��es m�nimas".
Diz que a abordagem dos grupos Abril, Folha e Globo em rela��o � administra��o dele oscilou da indiferen�a � tentativa de desconstru��o de suas pol�ticas p�blicas. E reclama do que chama de "segunda divis�o dos meios de comunica��o", em que p�e, entre outros, os programas popularescos televisivos vespertinos e os talk shows de r�dio, no que pode ter certa raz�o.
Tudo isso poderia n�o passar de desopila��o do f�gado de algu�m que acabara de ser atropelado na corrida eleitoral. Mas a rela��o de Haddad com cr�tica, autocr�tica, imprensa e os fatos ganha relev�ncia porque ele � levado em conta como plano B do PT para 2018 caso Lula esteja juridicamente impedido de concorrer � Presid�ncia —ou preso.
Fernando Haddad reclama do jornalismo porque n�o admite cr�tica (pr�pria ou dos outros). Ele deve ter sido o prefeito mais paparicado por jornalistas em toda a hist�ria de S�o Paulo.
Luciano Salles | ||
Ilustra��o de Luciano Salles |
Isso tem explica��o num motivo simples: em seus quatro anos no comando da cidade, o petista governou para uma jovem elite intelectual progressista de esquerda. As Reda��es s�o formadas em sua maioria por uma elite intelectual de jovens progressistas de esquerda.
Posso falar com mais embasamento desta Folha. Em 2014, no segundo ano de governo Haddad, censo interno realizado pelo Datafolha atestou que 55% dos jornalistas da casa se consideravam de esquerda, e 23%, de centro. Indagados sobre como situavam o pr�prio jornal, 50% o colocavam no centro, e 30%, na esquerda.
A maioria adotava posi��o liberal em rela��o a aborto, direitos homossexuais e drogas, em n�meros eloquentemente superiores aos da popula��o brasileira como um todo: 82% a favor da descriminaliza��o da maconha e 96% a favor da uni�o civil entre homossexuais, ante 77% e 39% dos brasileiros, respectivamente. Naquela ocasi�o, outubro de 2014, foram ouvidos 321 profissionais, numa pesquisa com margem de erro de dois pontos percentuais.
Por causa dessas caracter�sticas, encontrou terreno f�rtil nas Reda��es a agenda "S�o Paulo, Nova Amsterd�" de Fernando Haddad. Esta teve no biciclecentrismo das ciclofaixas e ciclovias, na valoriza��o do centro pela via da cultura alternativa, na diminui��o da velocidade m�xima das ruas e avenidas, no pagamento de sal�rio a usu�rios de crack como tentativa de recupera��o e na abertura da Paulista para os pedestres aos domingos suas bandeiras mais vis�veis.
REPORTAGENS
O resultado era palp�vel nas p�ginas do jornal, por mais que os profissionais se empenhassem em fazer valer o princ�pio de apartidarismo que � pilar do Projeto Editorial da Folha. Levantamento feito pelo Banco de Dados em agosto de 2017 d� conta da distor��o.
Comparou-se a cobertura da Folha dos seis primeiros meses da gest�o de Fernando Haddad com a cobertura de igual per�odo da administra��o Jo�o Doria. Em seu semestre inicial, o petista teve 619 men��es no jornal. Delas, 443 podem ser consideradas de efeito neutro (72%), 83 de efeito positivo (13%) e 93 (15%) de efeito negativo. O tucano, por sua vez, teve 1.027 men��es em seus 180 dias inaugurais, das quais 683 (67%) neutras, 54 (5%) positivas e 290 (28%) negativas.
Primeiro, percebe-se como Jo�o Doria � de fato um prefeito mais midi�tico —tem quase o dobro das cita��es. Isso se explica principalmente, mas n�o s�, pelo fator eleitoral. O tucano � presidenci�vel desde o primeiro dia no cargo e cumpre agenda de candidato; o petista restringia sua atua��o ao gabinete e n�o explicitava pretens�es futuras, al�m da reelei��o.
Depois, � parte a domin�ncia bem-vinda dos �ndices de neutralidade em um caso e outro (72% para Haddad e 67% para Doria), impressiona como os percentuais de men��es negativas e positivas se invertem: a propor��o de textos de leitura negativa em rela��o ao tucano (28%) � quase o dobro da do petista (15%), enquanto a propor��o de textos de leitura positiva em rela��o ao petista (13%) � quase o triplo da do tucano (5%).
A ironia � que a agenda que conquistou para o prefeito a simpatia do reportariado acabou custando a ele os votos da periferia e da franja do centro expandido de S�o Paulo, sem os quais n�o se vencem elei��es nem se chega ao segundo turno.
Luciano Salles | ||
Ilustra��o de Luciano Salles |
No dia 2 de outubro de 2016, Jo�o Doria teve 53,3% dos votos, ou 3,1 milh�es de eleitores, contra 16,7% de Haddad, ou 967 mil eleitores. Com um discurso ao mesmo tempo de "gestor" e de "n�o pol�tico", o tucano conquistou todas as zonas eleitorais da cidade, � exce��o de duas —Marta Suplicy, ex-companheira de partido do petista e agora no PMDB do presidente Michel Temer, foi a preferida do eleitorado de Parelheiros e Graja�, no extremo sul. Haddad n�o venceu em nenhuma, de um total de 58.
Para "adicionar insulto � inj�ria", como na express�o em ingl�s, Haddad era o incumbente, tinha a m�quina � sua disposi��o. Quatro anos antes, derrotara o tucano Jos� Serra em segundo turno com 3,4 milh�es de votos. Estava no Partido dos Trabalhadores e perdeu para um membro da ultraelite paulistana que se vendeu na campanha como o "Jo�o trabalhador", algu�m que passou dificuldades. E onde Doria n�o venceu ganhou Marta, com quem Haddad disputa a autoria intelectual dos CEUs (centros educacionais unificados).
Foi o 7 a 1 petista.
OLHOS NA ELITE
Quem prestasse aten��o �s oscila��es de popularidade da gest�o Haddad n�o se surpreenderia.
Segundo acompanhamento do Datafolha, ao longo dos quatro anos, enquanto a linha de aprova��o despenca da alta inicial, a de reprova��o dispara. Em pesquisa feita no in�cio de junho de 2013, o petista tinha 34% de �timo/bom (o melhor desempenho de um prefeito de S�o Paulo nesse per�odo) e 21% de ruim/p�ssimo. Em 21 de setembro de 2016, nas v�speras do pleito, houve uma invers�o: o �ndice positivo tinha ido a 18%, e o negativo, a 40%.
Em conversa com um dirigente estadual petista que prefere n�o ser identificado, fiz a pergunta da qual o ex-prefeito ca�oa em seu artigo na "piau�" —por que, afinal, Haddad perdeu? Ouvi uma resposta que ecoava argumentos utilizados por outros petistas: porque governou para a elite progressista e n�o deu a aten��o devida � periferia. Segundo esse dirigente, o programa hist�rico do PT s�o as pol�ticas sociais de inclus�o; quando Haddad finalmente saiu do gabinete, a periferia n�o o conhecia.
De acordo com outro dirigente paulista, o ex-prefeito esperava que movimentos sociais como o do passe livre (MPL), um dos motores dos protestos de junho de 2013, ca�ssem no colo dele por gravidade. N�o s� n�o ca�ram como foram bastante cr�ticos ao ent�o prefeito quando da decis�o de aumentar a tarifa do transporte p�blico.
ATAQUES � IMPRENSA
Em seu primeiro texto na "piau�", ao fazer uma avalia��o da direita mundial e brasileira, Haddad escreve que temas regressivos foram insuflados no debate nacional e que um movimento semelhante ocorreu com a imprensa. "Curiosamente, o ve�culo que mais respaldou essa pauta foi aquele de quem menos se esperava uma aproxima��o com o obscurantismo: o jornal Folha de S.Paulo".
Sua evid�ncia principal para afirma��o t�o perempt�ria teria sido a ado��o pelo jornal da express�o "kit gay", que ele atribui � bancada evang�lica do Congresso. "Kit gay" � o nome pejorativo que se deu tanto a uma iniciativa do Minist�rio da Educa��o em 2011, quando Haddad era o titular da pasta, como a um material do Minist�rio de Sa�de destinado a caminhoneiros e prostitutas em estradas na mesma �poca.
N�o � verdade que o jornal tenha adotado a express�o; os arquivos mostram que a reproduzia quando constava da fala de algu�m ou para efeitos did�ticos, com qualificativos como "o chamado 'kit gay'", "apelidado erroneamente de 'kit gay'" etc.
Em outro trecho, Haddad relaciona a cobertura do jornal aos percal�os da iniciativa que implantou na cracol�ndia. "N�o exagero em afirmar que o fim do programa De Bra�os Abertos �, em grande parte, resultado do tipo de cobertura da Folha". Segundo o petista, a publica��o de uma avalia��o externa positiva do programa, feita pela funda��o Open Society, do milion�rio George Soros, s� saiu ap�s semanas de negocia��o.
De fato, sua assessoria encaminhou o trabalho ao jornal em 25 de agosto de 2016. Uma semana antes, no entanto, o estudo j� tinha sido tema de uma cobertura especial sobre aquela regi�o da cidade. Ainda assim, novo texto sobre o tema foi publicado poucos dias depois.
No per�odo em que foi prefeito, Haddad concedeu pelo menos 11 longas entrevistas e escreveu cinco artigos para a Folha, que na pe�a da "piau�" ele define estar "sob o manto moderno do pluralismo, uma pretensa marca". Seus assessores e secret�rios escreveram outros tantos.
Pouco antes de deixar o cargo, ele foi convidado a assinar uma coluna semanal na p�gina 2 do primeiro caderno da Folha, espa�o um dia ocupado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz In�cio Lula da Silva e que hoje tem em Nabil Bonduki, ex-secret�rio de Cultura do pr�prio Haddad, um dos titulares. O ent�o prefeito aceitou, ficando acertado que come�aria depois de uma quarentena p�s-governo.
OBSCURANTISMO
No meio daquela negocia��o, em dezembro passado, tive um exemplo da pele surpreendentemente fina de Haddad, sendo ele um pol�tico. No dia 3 de janeiro, ele me ligou para dizer que n�o seria mais poss�vel ter uma coluna no jornal.
O motivo alegado —segundo ele, "a gota de �gua"— era f�til: n�o gostou da edi��o de uma entrevista que deu � Folha e que foi publicada no dia 25 de dezembro. Nela, o editor do caderno "Cotidiano" e dois rep�rteres fazem perguntas pertinentes e simplesmente as reproduzem, para que o leitor tire suas pr�prias conclus�es. As quest�es e respostas iniciais:
—No �ltimo Datafolha, segundo a opini�o do paulistano, o senhor teve nota 3,9.
—N�o falarei de Datafolha, desculpa.
—Onde o senhor errou, o que poderia ter feito de diferente?
—N�o falo disso, desculpe.
—Mas � a nota da popula��o.
—T� bom, n�o vou comentar isso, � um direito que tenho.
—Mas o sr. pode dizer onde errou? O sr. perdeu a elei��o no primeiro turno [para Doria].
—O que estou disposto a falar � sobre as realiza��es do governo, o legado. Se for isso, bem, continuamos.
—Mas podemos fazer perguntas.
—Sim, mas posso declinar.
Haddad reclama dos monop�lios econ�micos de m�dia e diz faltar regula��o no Brasil. A Folha denuncia o fato em seus editoriais h� d�cadas. Para ficar em dois dos mais recentes: "Um modelo distorcido de distribui��o de concess�es, usadas como moeda de troca fisiol�gica, tem conferido a pol�ticos e grupos privados o controle de meios de comunica��o n�o raro usados como canais de propaganda e autopromo��o" (2011); "A ado��o de regras para evitar que se formem monop�lios nos meios de comunica��o � mecanismo reconhecido em pa�ses democr�ticos" (2012).
Mas o ex-prefeito n�o atualiza seu alvo. Sim, os meios de comunica��o est�o nas m�os de poucas fam�lias: s�o seis, as fam�lias Zuckerberg (Facebook), Brin e Page (Google), Bezos (Amazon), Gates (Microsoft) e Jobs (Apple). Seu alcance � global, e sua influ�ncia, irresist�vel.
Para ficar apenas no duop�lio Google/Facebook, que tamb�m possui, entre outras, as subsidi�rias WhatsApp, YouTube, Instagram e Waze: ele det�m 20% da publicidade mundial e 60% da publicidade digital norte-americana.
No Brasil, estima-se que a dupla de gigantes, apesar de n�o revelar n�meros, j� seja o segundo maior grupo de m�dia, com cerca de R$ 11 bilh�es de faturamento, atr�s apenas da Globo, com R$ 16 bilh�es. N�o h� campanha pol�tica bem-sucedida ou governo eleito sem passar pelo filtro desses atores.
Filtro viciado, manipul�vel e incubador de posi��es intolerantes, como se viu com a prolifera��o das fake news e seus efeitos nas elei��es presidenciais norte-americanas, que levaram � vit�ria de Donald Trump, e na decis�o do Reino Unido de sair da Uni�o Europeia, o "brexit".
Desqualificar o jornalismo profissional, praticado por ve�culos como a Folha, � —isso sim— aproximar-se do obscurantismo.
S�RGIO D�VILA, 52, � editor-executivo da Folha e autor dos livros "Nova York - Antes e Depois do Atentado" (Gera��o) e "Di�rio de Bagd� - A Guerra do Iraque Segundo os Bombardeados" (DBA).
LUCIANO SALLES, 42, � quadrinista e ilustrador.
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