Com imagens de revolta e resist�ncia, exposi��o aborda est�tica da pol�tica
RESUMO Com curadoria do franc�s Georges Didi-Huberman, a exposi��o "Levantes", em cartaz em SP, faz iconografia dos gestos de revolta, demonstrando a pot�ncia visual de corpos que resistem � opress�o. Levantam-se discuss�es sobre estetiza��o e descontextualiza��o de movimentos pol�ticos e objetos de arte.
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A exposi��o "Levantes", em cartaz at� janeiro no Sesc Pinheiros (SP), prolonga um gesto curatorial iniciado h� sete anos pelo fil�sofo franc�s Georges Didi-Huberman. Em 2010, motivado por seus estudos sobre o historiador da arte alem�o Aby Warburg (1866-1929), ele levou ao museu Reina Sof�a, em Madri, uma mostra singular, a que chamou simplesmente de "Atlas".
Warburg tornou-se c�lebre por uma hist�ria da arte n�o can�nica, realizada por montagem de imagens. As pranchas de seu "Atlas Mnemosyne" relacionam obras de distintas �pocas e geografias, por meio de analogias visuais entre reprodu��es de materiais heterog�neos, como pinturas, fotografias, recortes de jornal etc.
Na exposi��o proposta por Didi-Huberman em 2010, o conceito de sobreviv�ncia das formas, retomado de Warburg, materializava-se em paredes que exibiam, lado a lado, gravuras bot�nicas do s�culo 19, v�deos de artistas contempor�neos e fotografias conceituais.
A figura de Atlas, um tit� que ergue os bra�os para sustentar o peso do globo terrestre, continua sendo investigada em "Levantes", um misto de exposi��o, publica��o e pesquisa ainda em curso, que re�ne uma cole��o de imagens de subleva��es.
No conjunto de obras selecionadas, objetos, palavras e corpos vencem a in�rcia e adquirem movimento, da fita vermelha esvoa�ante de Roman Signer (2005) aos bra�os erguidos dos "Black Panthers" de Hiroji Kubota (1969), em gestos que se manifestam contra as mais diversas formas de opress�o e organizam-se em favor de projetos variados, alguns ut�picos.
A exposi��o come�a com os movimentos protagonizados por elementos, como a s�rie fotogr�fica de Dennis Adams, de 2002, em que um saco pl�stico desafia a lei da gravidade e flutua, tingindo o azul do c�u com seu vermelho transl�cido.
Continua com aqueles que envolvem gestos corporais, como a insurg�ncia da sindicalista francesa Rose Zehner, em registro feito por Willy Ronis na greve da Javel-Citro�n, em 1938. Passa por palavras rebeldes, como o cartaz de H�lio Oiticica, estampado com os dizeres "Seja marginal, seja her�i".
Atravessa conflitos, como se v� pelo filme do artista taiwan�s Chen Chieh-Jen inspirado num amplo movimento contra a privatiza��o dos portos ("The Route", o caminho, 2006).
E termina com desejos, se��o que talvez seja a mais contundente e tocante da exposi��o, com fotografias de silhuetas de desaparecidos pol�ticos na Argentina (Eduardo Gil, 1982), imagens de inscri��es e grafites na parede de uma pris�o alem� em Atenas (Voula Papaioannou, 1944) e de imigrantes atravessando, em plano fixo, a fronteira grego-maced�nia em Idomeni (no v�deo de Maria Kourkouta, 2016).
EQUIVAL�NCIA?
� impactante a acumula��o de bra�os que se levantam, em movimentos e contor��es surpreendentemente an�logos. Tais gestos s�o tamb�m grande inspira��o para tempos sombrios como os nossos, marcados pela ascens�o da extrema direita, por uma tend�ncia generalizada ao autoritarismo e pelo tratamento desumano dado a refugiados que tentam atravessar fronteiras.
A partir de rimas visuais e repeti��es formais, dividem o espa�o registros de manifesta��es diversas, como as ocorridas em Berlim em 1919 (os espartaquistas dos movimentos revolucion�rios na Alemanha, nas imagens de Willy R�mer), em Barcelona em 1936 (os republicanos na Guerra Civil Espanhola, nas fotos de Agust� Centelles) e em Atenas em 1944 (as barricadas durante a Guerra Civil, por Voula Papaioannou).
Noutra montagem imprevista, fi�is na prociss�o de Bom Jesus de Matosinhos (Marcel Gautherot, 1950) est�o ao lado de habitantes de Guernica em frente a uma reprodu��o da tela de Picasso (Leonard Freed, 1977).
Haveria uma rela��o de equival�ncia visual entre situa��es t�o d�spares historicamente? Algo nas pr�prias imagens ou na din�mica da montagem seria capaz de distinguir a natureza dos levantes e seu car�ter muitas vezes amb�guo?
Como distinguir as manifesta��es laicas das religiosas, as populares das elitistas, as conservadoras das progressistas? E como identificar revoltas reativas, contra a opress�o, das propositivas, em favor de projetos de futuro?
Caro ao l�xico de Didi-Huberman, o termo "disparate", tomado do pintor espanhol Francisco de Goya, ajuda a entender sua proposta: n�o se trata de assimilar elementos heterog�neos em uma totalidade, mas de formar uma constela��o de singularidades.
POL�TICA
O m�todo extra�do do atlas warburguiano, diferentemente de uma enciclop�dia, prop�e uma cole��o sempre inacabada e imperfeita, formada por imagens ambivalentes. Desse modo, no lugar de uma "estetiza��o da pol�tica", o curador, por meio de uma montagem l�dica, assumidamente anacr�nica e n�o raro inusitada, tenta restituir a dimens�o sens�vel —e, portanto, est�tica— inerente � pr�pria pol�tica.
Em sua estreia em 2016, no museu do Jeu de Paume, em Paris, a mostra recebeu cr�ticas com respeito � monumentaliza��o e � estetiza��o de movimentos pol�ticos, que, descontextualizados, perdiam a for�a.
Que pot�ncia restaria, por exemplo, aos epis�dios da s�rie "Cin�-tracts", realizados anonimamente em 1968 e exibidos em reuni�es militantes como ato revolucion�rio?
Apesar de n�o terem sido assinados, os curtas silenciosos s�o sabidamente de autoria de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Chris Marker e Alain Resnais, entre outros. Por que n�o informar isso ao p�blico? Ou teria essa escolha o prop�sito de explicitar a dimens�o coletiva da a��o pol�tica?
Produzida mais recentemente, a revista "Tiqqun", do coletivo franc�s Comit� Invisible (comit� invis�vel), teve sua presen�a na mostra questionada como uma apropria��o nost�lgica. Exposta sob uma vitrine de vidro, indicaria a museifica��o e o congelamento de uma a��o pol�tica ainda em curso.
Diante das cr�ticas, Didi-Huberman defende-se afirmando que a mem�ria se constr�i no presente, sendo permanentemente reconfigurada. E a esse trabalho de remontagem hist�rica dos gestos d� o nome de "desejo".
Ap�s escala em Buenos Aires, a mostra chega a S�o Paulo com diferen�as em rela��o � montagem original. Os registros dos parangol�s de Oiticica pertencentes ao Reina Sof�a foram substitu�dos por outras imagens de parangol�s, feitas por Eduardo Viveiros de Castro a partir do filme "H.O.", de Ivan Cardoso.
Novas obras brasileiras foram acrescentadas, trazendo � tona problem�ticas ausentes no recorte original.
Surgem o racismo � brasileira (na s�rie "Dito Escuro", 2014, de Rafael RG) e a viol�ncia de Estado (no v�deo de Clara Ianni e D�bora Maria da Silva, de 2006, sobre o enterro de indigentes no cemit�rio de Perus), al�m da mem�ria do esp�rito de enfrentamento do movimento antropof�gico e de obras liter�rias como "Os Sert�es", de Euclides da Cunha.
PARCIALIDADE
Uma car�ncia n�o suprida da montagem original s�o as imagens das revolu��es por independ�ncia na �frica –haveria diversas, feitas por nomes como Santiago �lvarez, Jean-Luc Godard, Jos� Celso Martinez Corr�a, Celso Luccas e Murilo Salles etc. A �nica men��o ao assunto est� na obra fotogr�fica "Sobre os Tra�os de Frantz Fanon", do artista de origem argelina Bruno Boudjelal (2012).
A presen�a feminina, por sua vez, � not�vel. H� tanto artistas mulheres quanto personagens mostradas nas imagens: al�m da sindicalista Rose Zehner, a paciente psiqui�trica de D�sir�-Maloire Bourneville (1875), as combatentes mexicanas de Jer�nimo Hern�ndez (1912) e a mulher com bandeira de Tina Modotti (1928), al�m de grevistas e outras resistentes.
A despeito da pretens�o globalizante tradicionalmente presente nas empreitadas cartogr�ficas e da problem�tica falta de contextualiza��o hist�rica de algumas obras, � importante compreender e afirmar a subjetividade do olhar.
Escolhas, por sua parcialidade intr�nseca, sempre implicam perdas. Mas como chegar, se n�o assim, � produ��o de uma experi�ncia sens�vel a ser partilhada? Caberia perguntar: quais efeitos sobre o espectador se podem extrair dessas montagens propostas?
Tamb�m fundamentais para a mostra s�o quatro pequeninas fotografias tomadas clandestinamente no campo de exterm�nio de Auschwitz-Birkenau, em agosto de 1944, por um membro do Sonderkommando (grupo de prisioneiros judeus encarregados de conduzir outros prisioneiros �s c�maras de g�s e, depois, aos fornos cremat�rios).
A partir da porta de uma c�mara de g�s, o fot�grafo clandestino, certo da morte pr�xima, captura imagens de fossas de incinera��o e de mulheres nuas correndo. Presentes na �ltima parte da exposi��o, intitulada "Desejos", essas imagens, fr�geis e parciais, lacunares e terr�veis, s�o os �nicos testemunhos visuais do genoc�dio a atravessar a fronteira do campo de concentra��o e chegar at� n�s.
APESAR DE TUDO
Didi-Huberman as analisa em "Cascas", ensaio rec�m-lan�ado no Brasil pela Editora 34, misto de narrativa fotogr�fica e relato de uma viagem do fil�sofo a Auschwitz-Birkenau em 2011.
Ali escreve que, no momento da tomada, o fot�grafo clandestino transformou, por alguns segundos roubados, seu trabalho de escravo do inferno num verdadeiro trabalho de resist�ncia. Sendo assim, o autor pergunta: o ato de testemunho do "fot�grafo" n�o deveria ser compreendido como um deslocamento do trabalho de morte para o trabalho de olhar?
Figurando em sua obra desde o livro "Images Malgr� Tout" (imagens apesar de tudo), de 2003, as quatro imagens que se sublevam, clandestinas e sobreviventes, est�o na g�nese do projeto "Levantes", como afirma Didi-Huberman na entrevista "Alguns peda�os de pel�cula, alguns gestos pol�ticos", que acompanha a edi��o de "Cascas".
Mas essas imagens n�o comparecem na exposi��o pelos conte�dos que representam, como iconografia do terror, e sim pelo gesto daquele que, ao se posicionar no interior de uma c�mera de g�s, toma uma posi��o. Como fica claro, neste e em outros casos, o desejo do levante, indestrut�vel, rasga a fronteira do tempo e do espa�o, sobrevivendo �quele que se subleva.
ILANA FELDMAN, 38, � doutora em cinema pela USP e p�s-doutora em teoria liter�ria pela Unicamp.
L�CIA MONTEIRO, 39, � doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela USP, onde realiza atualmente pesquisa de p�s-doutorado.
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