Cr�tica passa 13 horas em instala��o sobre o tempo e o cinema; leia relato
RESUMO Com dura��o de 24 horas, a instala��o "The Clock", de Christian Marclay, re�ne fragmentos de filmes que trazem imagens de rel�gios ou men��es �s horas do dia, condensando um s�culo de hist�ria do cinema. Obra sugere que s� nos resta assistir ao fluxo inexor�vel do tempo, em vez de ter a ilus�o de control�-lo.
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Diferentemente do que ocorre com outras videoinstala��es baseadas no uso da imagem em movimento, "The Clock" (2010), do su��o-americano Christian Marclay, n�o � uma obra pela qual se passa rapidamente em meio a uma caminhada.
Ela est� exposta em uma sala escura do IMS (Instituto Moreira Salles), em S�o Paulo, na qual os visitantes permanecem por longos minutos, �s vezes horas. Na tela, um filme que dura um dia inteiro condensa um s�culo de hist�ria do cinema numa sele��o de cenas sincronizadas com o tempo real —quando o Big Ben na tela marca 20h10, s�o de fato 20h10.
Cin�filos talvez cogitem assistir a "The Clock" por inteiro. A obra pode ser vista completa uma vez por semana —o IMS fica aberto sem interrup��es das 10h de s�bado �s 20h do domingo. Marclay exige isso de todos os espa�os pelos quais a instala��o passa e p�e no contrato que a visita��o deve ser gr�tis.
Quando expliquei minha inten��o a Marclay, o artista me contou que ele pr�prio nunca havia assistido a tudo de uma s� vez. Lembrou que um jornalista canadense havia conseguido a proeza h� alguns anos. "Por favor, n�o fique l� 24 horas. Volte quantas vezes quiser. N�o se trata de uma maratona, n�o sou Marina Abramovic", disse. "� seu tempo, use-o como achar melhor."
Dividida entre minha experi�ncia pregressa com o cinema expandido e a tenta��o de ver o tempo passar por um dia inteiro, fui lembrada do conselho do artista por volta das 20h de s�bado (23). Na instala��o, vi Robert Redford dizer uma frase ao estilo de Her�clito: "Voc� nunca mais voltar� a ser quem � neste exato momento".
Passados 25 minutos, a ideia foi refor�ada pelo di�logo entre um senhor e um aniversariante que celebra o primeiro quarto de s�culo: "A considera��o pelo tempo dos outros � uma das maiores qualidades do homem. Ganhei este rel�gio de bolso quando completei 25 anos. Espero que ele o ajude a lembrar-se disso".
Contrariar o artista e permanecer ali 24 horas a fio resultaria em qual tipo de experi�ncia?
BEXIGA DE HITCHCOCK
N�o foi preciso olhar o celular para saber que eram 18h40 de s�bado quando me acomodei na segunda fileira. O rel�gio na parede indicava o hor�rio, enquanto a adolescente Juno (Ellen Page) jantava com o pai e a madrasta.
Dali em diante, imagens pontuadas por rel�gios —de mesa, de bolso, de parede, no aeroporto— se encadearam de maneira hipnotizante. Eles contrariavam Hitchcock. Ao defender filmes de no m�ximo 120 minutos, o diretor dizia que o cinema deve respeitar a capacidade da bexiga humana.
S� levantei para ir ao banheiro �s 3h20, depois de quase nove horas grudada � tela. �s 22h30, o personagem de algum filme havia programado um despertador para 3h. Eu precisava conferir se ele tocaria.
As duas horas ap�s o despertador ter tocado (ufa!) foram dif�ceis: todos s�o solit�rios na madrugada de Marclay. Ela n�o � cheia de festas, mas de pessoas insones ou adormecidas, quase sempre submetidas ao estardalha�o de despertadores ou telefonemas infaustos. A plateia, agora escassa, cochilava, �s vezes ronronava, mas n�o chegava a dormir um sono tranquilo.
Minha lembran�a de filmes em que a marca��o do tempo � fundamental se antecipava � sua apari��o. Haveria lugar em "The Clock" para alguma cena de "Cl�o das 5 �s 7" (1962), em que Agn�s Varda se prop�e a respeitar o tempo real da vida de uma personagem?
Desejava despertar com Emmanuelle Riva e Eiji Okada em "Hiroshima, Meu Amor" (Alain Resnais, 1959), mas n�o soube se o filme entrou na sele��o. Fui vencida pelo cansa�o �s 5h20 do domingo.
Quando retornei, perto do meio-dia, os almo�os n�o tinham a mesma intensidade dos jantares. As badaladas soavam banais. Os rel�gios nas plataformas pareciam d�j�-vus. A mem�ria das imagens da noite anterior se sobrepunha �s cenas diante de mim. Tentei reviver a experi�ncia de imergir na dura��o, mas n�o consegui. Sa� derrotada pouco depois das 14h.
MONTAGEM
In�meros fios conduzem a aten��o do espectador de "The Clock": a beleza dos n�meros e ponteiros, em seus mais variados designs; a delicadeza das engrenagens; as redomas que protegem as vers�es douradas de mesa; as sempre incr�veis fun��es dos rel�gios de pulso usados por James Bond...
Saltam aos olhos, tamb�m, alguns motivos laterais � passagem do tempo, como os banhos de banheira, abundantes por volta das 22h, e o abrir e fechar de geladeiras, em costumeiras refei��es fora de hora.
Diferentes cr�ticas podem ser feitas. As imagens originais s�o cortadas e achatadas para caberem na propor��o 16:9. Al�m disso, o percurso pela hist�ria do cinema � bastante parcial: prevalecem filmes hollywoodianos, seguidos por brit�nicos e franceses. Pouco Almod�var, algum Tsai Ming-Liang, talvez dois Wong Kar-Wai, quase nada de Ozu.
Outra conclus�o inc�moda, n�o relativa exatamente a "The Clock", mas � hist�ria do cinema: em cenas de espera, distribuem-se pap�is por g�nero, com as mulheres em posi��o mais passiva. Cher, Pen�lope Cruz e Jennifer Aniston aguardam; Jean-Pierre L�aud, Nicolas Cage e Harrison Ford est�o atrasados (e indiferentes a isso).
Feitas as ressalvas, � dif�cil n�o se emocionar diante da inigual�vel torrente de rostos e cenas que est�o na mem�ria afetiva de qualquer cin�filo.
A curadora da mostra, Heloisa Espada, escreve no texto de apresenta��o que a passagem do tempo se evidencia no rosto dos atores. � verdade, mas tenho a impress�o de que o inverso tamb�m ocorre. V�rios rejuvenesceram.
A montagem permite ver a passagem das horas e as possibilidades do tempo cinem�tico. Dois tipos de cena s�o interessantes: aquelas em que personagens d�o corda na engrenagem ou manipulam os ponteiros (para trapacear ou corrigir imprecis�es); e aquelas em que tentam sincronizar seus rel�gios, em esquetes de comicidade infinita.
No cinema, o tempo � male�vel. Em sua primeira d�cada, alguns t�tulos j� punham em cena a volta ao passado e o tempo congelado. Al�m disso, a filmagem e a montagem se apoiam na sincronicidade.
O TEMPO
Assim, � imposs�vel n�o perceber a pot�ncia autorreflexiva da tomada, feita em uma festa, em que Audrey Hepburn p�e fogo no chap�u de uma senhora ao bater sobre ele a cinza do cigarro e agarra em seguida o pulso de um conviva a fim de ver as horas, entornando sua ta�a de champanhe sobre o princ�pio de inc�ndio.
Na passagem do s�culo 19 para o 20, o tempo se torna algo palp�vel. Quando Walter Benjamin escreve, a respeito de Baudelaire, que "os minutos cobrem o homem como flocos de neve", ele resume um sentimento de ang�stia diante da acelera��o do ritmo da vida.
Por um lado, nesse per�odo rel�gios de bolso se popularizam, concretizando o impulso de vestir o tempo, como um ap�ndice do corpo. Em meio � obsess�o com a precis�o, uma confer�ncia em Washington, em 1884, divide o planeta em 24 fusos hor�rios.
Por outro lado, com a fotografia e o cinema, torna-se poss�vel armazenar e reproduzir o tempo. Como dizia Andr� Bazin, a imagem fotogr�fica o embalsama, resgatando-o de sua corros�o costumeira.
Com "The Clock", a rela��o com as horas � substitu�da por uma avalanche de minutos que envolve a plateia. Os instrumentos do s�culo anterior permitiam a ilus�o de controlar o tempo; agora s� nos resta assistir a seu fluxo inexor�vel.
Se, como j� foi dito, ao completar cem anos, o cinema se tornou um mausol�u repleto de corpos de atores emblem�ticos hoje mortos, a instala��o pode ser encarada como uma verdadeira m�quina de ressuscitar n�o s� seres humanos, mas tamb�m m�dias hoje raras.
Num flerte com o trabalho pregresso de Marclay, in�meras sequ�ncias s�o cadenciadas pelo gesto de colocar o vinil na vitrola e ouvi-lo —"Footsteps", uma de suas primeiras obras, consistia em discos gravados com sons de passos, sobre os quais os visitantes deviam pisar. Outras cenas entrela�am rel�gio e telefone, muitas vezes lado a lado perto da cama. Hoje, � mais prov�vel encontrar ali smartphones que acumulam as fun��es.
Na p�s-modernidade p�s-anal�gica e p�s-f�lmica, n�o precisamos nos concentrar para sincronizar nossos rel�gios —o dif�cil � fugir da sincronia que vem de f�brica com nossos celulares e computadores. Ali, onde o cinema sobrevive sob forma dilu�da no espa�o expositivo, condensam-se cem anos de sua hist�ria. Visto assim, um dia inteiro at� que passa r�pido.
L�CIA MONTEIRO, 39, � doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela USP, onde desenvolve pesquisa sobre cinemas nacionais perif�ricos.
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