• Maria Clara Vieira
  • Fotos: Guto Seixas / Editora Globo
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Nos Estados Unidos, onde a melatonina é comercializada livremente, um vidro com 30 comprimidos pode custar de US$ 1,80 a US$ 10 (Foto: Guto Seixas / Editora Globo)

Nos Estados Unidos, onde a melatonina é comercializada livremente, um vidro com 30 comprimidos pode custar de US$ 1,80 a US$ 10 (Foto: Guto Seixas / Editora Globo)

Você pode nunca ter ouvido falar da melatonina, mas depende dela todas as noites para dormir, assim como o seu filho. Conhecida como hormônio do sono, essa substância é produzida pelo próprio organismo, mas também pode ser encontrada à venda em potinhos, na forma de comprimido, gotas, cápsulas ou balas. No Brasil, a comercialização de melatonina é proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mas muitos pais e mães têm adquirido o hormônio em lojas de conveniência e supermercados dos Estados Unidos, onde não há necessidade de receita. Outros compram em lojas virtuais americanas e recebem o produto em casa.

Segundo relatos médicos, cada vez mais famílias brasileiras chegam ao consultório pediátrico pedindo informações sobre a substância, com o objetivo de fazer o filho dormir – seja porque viram na internet ou porque algum conhecido toma. Isso quando não ministram a melatonina para a criança por conta própria, achando que se trata de algo “natural”, e só depois perguntam a opinião do pediatra.

Não há dados no Brasil, mas, nos Estados Unidos, onde o produto tem sido obtido, os números são surpreendentes. Um levantamento do Nutrition Business Journal revelou que as vendas de melatonina aumentaram 500% de 2003 a 2014 (de US$ 62 milhões para US$ 378 milhões). Embora esse valor seja do consumo em geral e não especificamente infantil, o crescimento continua sendo considerável. Mesmo porque, as prateleiras estão cheias de opções de melatonina com sabores, cores e formatos voltados para as crianças. Em lojas virtuais, é possível encontrar o hormônio produzido por uma infinidade de marcas, em diferentes dosagens e por preços variados. Um vidro com 30 comprimidos pode custar de US$ 1,80 a US$ 10.

TODO CUIDADO É POUCO

“O uso deve ser feito com muita cautela e sempre sob orientação médica. Existem poucos estudos científicos sobre o efeito do consumo contínuo da melatonina em crianças”, afirma a pediatra Simone Chaves Fagondes, presidente do Departamento Científico de Medicina do Sono da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). A falta de evidências consistentes é um dos principais fatores que trazem dúvidas aos especialistas.

Uma revisão de estudos realizada pela Sociedade Canadense de Pediatria concluiu que todas as pesquisas feitas não conseguem garantir a plena segurança do uso em crianças saudáveis justamente porque não foram testados os efeitos e a eficácia da substância no longo prazo. Já experimentos comratos revelam que a melatonina sintética pode alterar o sistema metabólico, cardiovascular e reprodutivo, conforme mostram estudos de diferentes instituições, como a  Universidade da Carolina do Norte (EUA) e a Universidade de Genebra (Suíça). Simone explica que, hoje, o hormônio sintético é considerado relativamente seguro apenas para os casos em que há indicação médica, mas alguns efeitos adversos têm sido descritos (em especial se a dosagem é elevada), como desconforto abdominal, pesadelos, agressividade, perda de apetite e puberdade tardia ou precoce. Por isso, deve-se recorrer ao produto somente em situações bem específicas.

Os pais que ministram melatonina aos filhos sem o devido respaldo médico devem entender a gravidade do que estão fazendo. “Isso é uma barbaridade. A melatonina é um hormônio e ninguém toma hormônio sem consultar o médico. Será que dariam testosterona ao filho sem indicação? Não é porque a melatonina é vendida nos Estados Unidos sem receita que o uso pode ser indiscriminado. Há uma série de cautelas que o paciente precisa ter, como a dosagem e o horário em que toma”, ressalta José Cipolla Neto, médico e pesquisador da melatonina há quase 40 anos no Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

UMA FORCINHA PARA DORMIR

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O fotógrafo Guto Seixas, 42 anos, é adepto damelatonina há mais de um ano. Ele ministra a substância esporadicamente à filha Anita, 3 anos e 10 meses. “Não é algo regular. Ela só toma quando está muito agitada. Por exemplo, a gente viaja muito, geralmente à noite. Às vezes, quando chegamos no destino, de madrugada, ela está pilhada e querendo brincar. Então, decidimos buscar uma alternativa. O meu pai toma melatonina para dormir há bastante tempo e eu descobri que tinha versão para criança também. Pesquisei a menor dose disponível e pedi para uns amigos trazerem dos Estados Unidos. Percebi que ela dá um sono gradual. O  homeopata da minha filha disse que o ideal é não tomar nada, mas que de vez em quando não tem problema”, conta Seixas.

Segundo o pediatra e neonatologista Nelson Douglas Ejzenbaum, membro da SBP, antes de utilizar a melatonina é preciso passar por avaliação com um especialista em sono. “Crianças saudáveis e que não apresentam dificuldade para dormir não devem usar. Muitas vezes, a questão é apenas comportamental e não requer medicamento”, comenta o médico. Ele diz ainda que, antes de recorrer à melatonina, é indicado observar a rotina para corrigir eventuais hábitos que possam estar dificultando o sono da criança.

ESTRATÉGIA TEMPORÁRIA

Na casa da nutricionista Patrícia Cruz Smith, 44 anos, a hora de colocar o filho na cama costumava ser um pequeno caos. Adan, 5, tinha dificuldade para aquietar o corpo e a mente antes de dormir. Isso se intensificou na fase em que precisou enfrentar a transição da cama compartilhada com os pais para o sono sozinho em seu próprio quarto. “Tentamos de tudo, inclusive técnicas de ioga e medicina chinesa para relaxar. Eu contava histórias e ele sempre pedia mais uma. Também expliquei a importância do sono, para ele poder crescer e ter energia para brincar. Nada funcionava. Então, comecei a pesquisar na internet e encontrei alguns artigos sobre a melatonina”, lembra Patrícia.

Porém, antes de recorrer à substância, a mãe levou a questão das noites mal dormidas à psicóloga. “Ela me disse que o meu filho estava habituado a dormir com a gente e não gostava de ficar sozinho. Então, tive a ideia de usar a melatonina temporariamente, apenas para ele entender a importância do sono e se habituar a dormir no próprio quarto”, relata. Mas o plano só foi colocado em prática com o aval do pediatra. “O médico disse que tudo bem, e que o filho dele também usava”, conta. Em uma viagem aos Estados Unidos, no último mês de novembro,  Patrícia optou por comprar a melatonina em forma de comprimido mastigável. “No começo, fiquei com medo por estar induzindo o sono do meu filho, mas pareceu espontâneo: depois de usar a melatonina, ele conseguia dormir na metade da história que eu contava. Dei o comprimido por uma semana, toda noite. Notei que ele começou a ter mais sonhos e pesadelos. Então, fomos diminuindo a dose gradualmente até parar. Agora ele consegue dormir sozinho”, relata
a mãe.

QUANDO É INDISPENSÁVEL

O uso do hormônio do sono só é realmente indicado pelos médicos para aqueles casos em que o corpo da criança não produz melatonina ou produz em pouca quantidade. Nessas situações, que não são frequentes, a substância faz toda a diferença na vida das famílias. “A indicação acontece quando a criança tem autismo, cegueira total, lesão neurológica, doença grave ou algum problema cerebral importante”, esclarece Gustavo Antônio Moreira, pediatra especialista em Medicina do Sono e membro da Associação Brasileira do Sono (ABS).

Felipe, 3 anos e 9 meses, se encaixa exatamente em uma dessas situações. Filho da dona de casa Marcela Gomes, 34 anos, o menino passava a noite acordado numa boa. Quando dormia, era durante o dia e apenas por curtos períodos. “Ele sempre passava a noite como se fosse dia. Quando tinha 1 ano e 8 meses, levamos a um neuropediatra. Além de não dormir, o meu filho  ainda não sabia dizer mamãe e papai. O diagnóstico do autismo veio logo e uma especialista descobriu que ele não produz melatonina”, relembra Marcela. Hoje, Felipe usa o hormônio toda noite na forma de pastilha mastigável e dorme de oito a nove horas consecutivas. “Funcionou muito bem. Foi o que nos salvou”, comemora a mãe.

UM CASO RARO

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Vivian da Costa, 33 anos, descobriu que o filho Allan, 6,
tem uma síndrome rara que impede a produção natural
de melatonina. No caso dele, o uso da substância
sintética é essencial para dormir (Foto: Guto Seixas /
Editora Globo )

Mãe de três meninos, a fisioterapeuta Vivian Paola da Costa, 33 anos, não descansou até  descobrir o motivo de seu caçula não dormir. “Desde bebê, o Allan não dormia bem. Conforme ele crescia, tentamos de tudo. Era exaustivo. Ele acordava a noite toda, nunca dormia horas seguidas. O pediatra chegou a receitar doses altas de um remédio que o apagava. Era horrível e já não estava fazendo tanto efeito. Foi então que ele fez um exame bastante específico e descobrimos uma síndrome genética rara, chamada Smith-Magenis, que causa alteração de
humor, problemas cardíacos, atraso na fala e na coordenação motora e, principalmente, o  distúrbio do sono”, declara ela.

Após consulta com uma neurologista especialista em sono, Vivian compreendeu que a falta de melatonina era o que causava todo o transtorno na hora de dormir. Hoje, Allan tem 6 anos e consegue dormir à noite graças ao uso contínuo da substância que seu corpo não produz. “Ele já toma há dois anos e não notei efeitos colaterais”, conta Vivian. “Para o meu filho, a melatonina
é uma questão de qualidade de vida. Agora que dorme, ele evoluiu. Progrediu em todos os  aspectos.”

Então, fica o recado dos pediatras: se a criança não tem nenhum problema específico, ela não precisa da melatonina, e sim de mudanças de hábito e rotina (além de muita paciência dos pais).

COMO FUNCIONA?

A melatonina é um hormônio produzido pela glândula pineal, que fica bem no centro do cérebro. Segundo o médico e pesquisador da Universidade de São Paulo, José Cipolla Neto, cerca de 0,1 mg da substância é liberada no organismo toda noite, quando o ambiente começa a escurecer. Ela sinaliza ao corpo que está chegando a hora de dormir. Apenas em casos específicos e pouco frequentes (como cegueira total, autismo ou lesões neurológicas, entre outros) não acontece a produção desse hormônio e, então, é preciso fazer uso da melatonina sintética de acordo com a indicação médica.

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PARECE DOCE, MAS É REMÉDIO

É comum encontrar potes de melatonina no exterior que trazem a substância na forma de balas mastigáveis, com cores e sabores que atraem as crianças. Até em formato de ursinho existe. Embora isso possa facilitar o momento de ministrar o medicamento, os pais devem lembrar que, apesar da aparência, ela não é uma simples balinha. E as crianças também precisam saber disso.

O ideal é optar pela melatonina em formatos que pareçam mais medicamento do que doce – recomendação que, aliás, vale para qualquer remédio. “A criança pode achar que é
comida e ingerir o pote inteiro. Isso é um perigo. Remédio é remédio”, alerta Rosana Cardoso Alves, neuropediatra da Associação Brasileira do Sono (ABS).

É NATURAL?

Algumas embalagens de melatonina sintética dizem que o produto é “uma ajuda natural para o sono das crianças”. Mas, não se engane: trata-se de mero marketing para vender mais. Nesses mesmos potes, em letras miúdas, vem escrito que tal sentença não tem o aval do FDA (órgão americano similar à Anvisa). A própria Tired Teddies, uma empresa que fabrica a melatonina na
forma de ursinhos mastigáveis, alerta em seu site: “antes de ministrar a substância a qualquer criança, consulte a opinião de um pediatra”.

Natural mesmo, para acalmar e ajudar crianças saudáveis a cair no sono, só suco de maracujá ou chá de ervas como camomila, jasmim e erva-doce. Os médicos afirmam que embora isso seja de conhecimento muito mais empírico do que científico, não há problema em oferecer à
criança, por não haver efeitos colaterais.

POR QUE NÃO VENDE NO BRASIL?

Em nota à CRESCER, a Anvisa informou que o comércio da melatonina é proibido no país  porque “nenhuma empresa solicitou o registro de um medicamento com esta substância. No entanto, a legislação garante que pacientes que tenham a indicação de uso feita por um  profissional médico possam importar, seja via bagagem de mão ou pela internet. As autoridades sanitárias podem solicitar a receita na entrada do produto no país”. Em resumo: não é possível comprar em território nacional, mas tudo bem trazer o produto de fora, desde que você tenha a prescrição de um médico.

OUTRAS TÁTICAS

Especialmente em viagens, alguns pais dão aos filhos um remédio para evitar enjoos, cujo princípio ativo é o dimenidrinato. Ele pode causar sonolência e, não raro, as famílias ministram a substância justamente para fazer a criança dormir. Mas tal prática é desaconselhada pelos médicos. Em primeiro lugar, porque o medicamento deve ser prescrito por um pediatra para fins específicos. Depois, é preciso lembrar que “o efeito do sono que ele traz é temporário. Usar o dimenidrinato com essa finalidade não é uma indicação formal e, por isso, é desaconselhado”, esclarece a neuropediatra Rosana Cardoso Alves, da Associação Brasileira do Sono.

Outra técnica popular são os livros infantis que prometem fazer a criança adormecer. O mais famoso dos últimos tempos é O Coelhinho que Queria Dormir, do psicólogo sueco Carl-Johan Forssén Ehrlin. Traduzida para sete idiomas, a obra tem sido sucesso de vendas e é recomendada dos 2 aos 8 anos. O truque está na leitura lenta, repetições de palavras e bocejos pontuais ao longo do enredo, o que ajudaria a criança a relaxar. Se dá certo ou não, cada família é que deve dizer. A única certeza é que mal não faz, já que a leitura é sempre muito bem-vinda.

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