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Jerson Kelman

Independência funcional do Ministério Público

Tentativa de 'furar a fila' da vacina expõe certo excesso de poder

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Jerson Kelman

Engenheiro, professor e doutor em hidrologia, dirigiu duas agências reguladoras federais (ANA e Aneel) e três concessionárias de serviço público (Light, Enersul e Sabesp)

Mário Luiz Sarrubbo, presidente do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, em artigo nesta Folha, esclareceu que o colegiado não acatou “o pleito para dar preferência aos membros da instituição quando da disponibilização das vacinas contra a Covid-19” ("Vacina para a Covid-19 e o Ministério Público paulista"; 5.dez.20). Ainda bem!

O episódio enseja uma reflexão sobre as prerrogativas, responsabilidades e modus operandi do Ministério Público (MP). Segundo o artigo 127 da Constituição, incumbe ao MP “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O primeiro parágrafo estabelece que “são princípios institucionais do MP a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.

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O engenheiro e professor Jerson Kelman, ex-presidente da Sabesp - Eduardo Anizelli - 30.mar.17/Folhapress

O conceito de “independência funcional” poderia ser interpretado como de independência em relação aos Três Poderes. Porém, usualmente é interpretado como liberdade de atuação de cada um de seus membros, sem revisões hierárquicas. Esse segundo entendimento coloca em mesmo plano o poder coletivo da instituição e o poder individual de seus componentes.

O texto constitucional faz jus à tradição brasileira de buscar a convergência redacional, mesmo quando não há convergência conceitual, o que costuma produzir textos ambíguos. No caso específico, resultou numa interpretação que assegura uma autonomia e poder para cada membro do MP sem paralelo com o que se observa em outros países.

Como o processo de seleção para ingresso no Ministério Público é rigoroso, quase todos os seus membros têm discernimento para corretamente identificar os interesses difusos da sociedade, que lhes cabe defender. Mas há uma minoria que, consciente ou inconscientemente, usa o peso do MP para impor a toda a sociedade a sua particular visão de mundo, contradizendo na essência a missão constitucional de defesa do regime democrático.

Há muitos administradores públicos que tiveram a má sorte de serem abalroados por promotores de Justiça que compõem essa minoria. Por divergência de opinião, foram acusados de improbidade administrativa por decisões honestas e nos limites das respectivas atribuições legais. Respondem a processos que duram muitos anos e cuja simples existência arruína a reputação do acusado, mesmo quando afinal absolvido.

Excesso de poder resulta frequentemente na prevalência do interesse individual ou corporativo sobre o interesse da sociedade. A tentativa de “furar a fila” —eficazmente neutralizada— é mais um sintoma dessa ameaça.

Os conselhos superiores do MP deveriam criar defesas "interna corporis" mais robustas para contrabalançar iniciativas contrárias à sua própria razão de ser. É preciso que sistematicamente se identifique eventuais casos de “abuso de poder”. A simples exposição pública desses abusos, ou de tentativas de abuso, seria suficiente para inibir futuros comportamentos assemelhados. O caso da fila da vacina ilustra bem o conceito.

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