Descrição de chapéu França

França volta às urnas para eleger Parlamento mais dividida do que no 1º turno

Agressões físicas e retórica virulenta marcaram campanha; resultado tem chances de paralisar governo Macron

Boa Vista

Uma França altamente polarizada elege neste domingo (7) a nova composição da Assembleia Nacional, após uma campanha tão curta quanto violenta.

Nas quatro semanas entre a dissolução do Parlamento pelo presidente Emmanuel Macron e o segundo turno realizado agora, foram 51 os candidatos ou militantes agredidos em todo o país, segundo o ministro do Interior, Gérald Darmanin.

O ministro afirmou que os ataques atingiram todos os lados do espectro político. Um dos episódios mais emblemáticos foi a agressão sofrida pela equipe da porta-voz do governo, Prisca Thevenot, quando ela fazia campanha para reeleição em Hauts-de-Seine, nos arredores de Paris.

Eleitora francesa sai da cabine em que votou no primeiro turno da eleição legislativa antecipada, em Le Touquet, na França
Eleitora francesa sai da cabine em que votou no primeiro turno da eleição legislativa antecipada, em Le Touquet, na França - Ludovic Marin - 30.jun.2024/AFP

O premiê Gabriel Attal, representante do bloco governista, Jordan Bardella, líder da Reunião Nacional (RN) e Salomé Nicolas-Chavence, candidata do bloco de esquerda no distrito de Thevenot, pediram calma e apoiaram a porta-voz. Darmanin anunciou a mobilização de 30 mil policiais para este domingo.

A violência nas ruas se reflete na retórica inflamada de algumas manifestações. Exemplo disso é um videoclipe produzido por 20 rappers contrários à ultradireita que mistura críticas, insultos misóginos, teorias da conspiração e ameaças explícitas a Bardella —a produção somou mais de 2,3 milhões de visualizações em quatro dias.

O primeiro turno do pleito, que teve participação de 60% dos eleitores registrados (20 pontos percentuais a mais do que na votação anterior), colocou a RN na dianteira tanto em termos de votos totais como de representantes eleitos. O partido de ultradireita conquistou 29,25% dos votos válidos e 37 cadeiras —incluindo a da líder da sigla, Marine Le Pen.

Enquanto isso, o bloco de esquerda, Nova Frente Popular (NFP), angariou 28% dos votos e obteve 32 assentos.

O grande perdedor até aqui foi o Juntos, aliança governista de centro que, com 20% dos votos, só elegeu dois parlamentares no primeiro turno. Espremido pela ultradireita e por um bloco de esquerda que inclui a radical França Insubmissa (LFI), liderado por Jean-Luc Mélenchon, Macron perdeu sua estratégia inicial de absorver moderados dos dois lados do espectro político.

A vitória desses extremos —que o presidente chegou a dizer que levariam a uma "guerra civil" na França—na primeira fase da votação consagrou a polarização latente na atmosfera do país desde o início de junho, quando a ultradireita venceu com folga as eleições para o Parlamento Europeu. Esse tinha sido o gatilho, aliás, para que Macron demitisse o Congresso e antecipasse o pleito legislativo.

Essa sensação de que o que está em jogo são duas propostas de nação completamente diferentes parece ser uma das poucas concordâncias entre eleitores que falaram com a Folha na semana que antecedeu o segundo turno.

A advogada Claudia de Barros, 60, que tem dupla nacionalidade brasileira e francesa e mora há 28 anos no país europeu, compara o cenário àquele do pleito brasileiro de 2022 entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL). "Eu nunca vi isso aqui. As pessoas evitam falar sobre o assunto para não ter confusão", afirma ela, que diz votar na esquerda.

O programa da RN é enfático em questões migratórias. O partido diz que pretende deportar "imigrantes delinquentes", acabar com o direito à cidadania apenas pelo nascimento –o chamado "jus soli", que no caso da França permite que filhos de pais estrangeiros conquistem a cidadania aos 18 anos se tiverem morado ao menos 5 anos em solo francês, ou a partir dos 13 anos dentro de determinadas condições exigidas pela lei francesa— e restringir o acesso de pessoas com dupla nacionalidade a certos cargos públicos, algo já previsto em alguns casos.

Um empresário de Bordeaux que não quis se identificar avalia que a sociedade francesa passa por uma situação de declínio econômico, cultural e social. Por isso, necessita de mudanças radicais —motivo pelo qual votará na direita.

A NFP, bloco de esquerda que inclui o LFI, socialistas, comunistas e ecologistas, formou-se logo nos primeiros dias após a dissolução da Assembleia Nacional e tem como meta declarada barrar o avanço da ultradireita. Ele propõe, entre outros, o congelamento de preços e a revogação da reforma das aposentadorias aprovada no ano passado sob protestos maciços.

Aurelie Burtman, 33, que trabalha com direito tributário e se declara esquerdista, afirma estar preocupada com um discurso de parte da LFI que considera antissemita e, por isso, diz-se decepcionada com a inclusão do partido no bloco de esquerda. Ela, no entanto, reconhece na RN um perigo maior e votará na NFP.

"Vejo [a RN] como um perigo enorme para a França, para a democracia. Eles surfam no medo que as pessoas têm da migração, da violência e do islamismo, mas acho que o antissemitismo está no DNA político deles. Por isso não confio de jeito nenhum no seu discurso de moderação", diz ela, que é franco-israelense e vota em Seine-Saint-Denis, a leste de Paris.

No mesmo departamento vota Samy Lounes, 29, que discorda da percepção de que a LFI é antissemita e atribui essa característica à RN, "o inferno na terra", segundo ele. "São o oposto da direção em que caminha a história, o pior que pode acontecer à França", afirma.

Questionado sobre a estratégia de candidatos da esquerda moderada e do centro de desistir para que seus pares mais radicais, mais votados no primeiro turno, tenham mais chances de conter nomes da ultradireita, ele diz que isso é algo normal. "Mesmo que o governo anterior tenha promulgado leis que vão contra o que eu desejo, eu diferencio a extrema direita e Macron."

Mas ele não arrisca dizer se enxerga a NFP compondo um governo com a aliança governista de centro —no semipresidencialismo francês, a maioria parlamentar forma o gabinete de governo e indica o premiê. Bardella, da RN, já disse que descarta governar sem maioria absoluta.

O cenário de incerteza se mistura à provável paralisia institucional com a qual um eventual governo sem maioria precisará lidar, qualquer que seja a sua inclinação ideológica, até o fim do mandato de Macron, em 2027.

São 501 cadeiras em disputa neste segundo turno, de um total de 577. Uma nova dissolução do Parlamento e outra eleição só podem ocorrer daqui a um ano.

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.