Descrição de chapéu
crimes de guerra

Hamas jamais poderia ter sequestrado civis, e Israel estende a Gaza prática de Guantánamo

Só combatentes podem ser prisioneiros de guerra; Tel Aviv criou categoria na qual enquadra palestinos de forma arbitrária

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha, viveu no sul do Chile e cobriu o tsunami e o terremoto como correspondente estrangeiro

Quando o Hamas atacou Israel, no dia 7 de outubro, mais de 200 pessoas foram raptadas. Desde então, alguns poucos foram libertados, um número incerto teria morrido nas mãos dos sequestradores ou nos bombardeios israelenses e os demais poderiam ser usados numa troca de prisioneiros com Israel.

Essas abduções de civis israelenses são ilegais. Embora algumas pessoas se refiram aos capturados pelo Hamas como "prisioneiros de guerra", essa é uma contradição em termos tão grande quanto falar em "padres leigos". São categorias que não se misturam.

Manifestantes em Washington lembram civis de Israel capturados pelo Hamas e levados para Gaza como reféns
Manifestantes em Washington lembram civis de Israel capturados pelo Hamas e levados para Gaza como reféns - ROBERTO SCHMIDT/Roberto Schmidt - 12.nov.23/AFP

As únicas pessoas que podem ser tomadas como "prisioneiros de guerra" num conflito armado internacional são os próprios combatentes. Civis devem ser poupados dos efeitos das hostilidades a todo custo.

Mas as violações não estão restritas ao lado do Hamas. Do lado israelense, o número de palestinos presos dobrou depois de 7 de outubro. A maioria está presa por "razões de segurança", muitos deles em limbos legais, sem acusações formais e classificados em brechas excepcionais do direito.

Até 1949, não existia nenhuma convenção sobre "prisioneiros de guerra". A terceira Convenção de Genebra só foi adotada após o fim da Segunda Guerra Mundial. Essas normas são aplicáveis exclusivamente em conflitos armados de caráter internacional.

Israel refuta a ideia de que o conflito em Gaza seja de caráter internacional. Entretanto, a Palestina é reconhecida como Estado por 138 dos 193 Estados-membros das Nações Unidas. Além disso, Israel exerce o papel de "potência de ocupação" nos territórios palestinos, o que reforça a aplicabilidade das normas no contexto em questão.

Mas ainda que Israel se oponha à ideia de que vive um conflito internacional, as normas específicas sobre prisioneiros são consideradas tão fundamentais e invioláveis que passaram as ser reconhecidas como princípios do direito internacional e fazem parte também do direito consuetudinário ou costumeiro, ou seja, são baseadas em princípios de conhecimento e de respeito universais.

Além disso, passaram a constar também num artigo específico, o 3º artigo, incorporado em todas as quatro Convenções de Genebra de 1949, que compõem o núcleo duro do Direito Internacional Humanitário. Esses foram os jeitos encontrados para impedir que qualquer força captora tente driblar juridicamente a aplicação de padrões mínimos de humanidade, que visam a prevenir torturas, maus-tratos e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes nas prisões.

Nos termos da lei, "prisioneiros de guerra" são combatentes capturados por uma força adversária. O simples fato de ser um combatente não faz de alguém um criminoso. Portanto, essa não é uma prisão punitiva ou reeducativa, como em tempos de paz. Ela é uma prisão que só serve para deixar o adversário fora de combate.

Pegar em armas e matar combatentes inimigos não é um crime. Na verdade, é isso que os Exércitos esperam de seus homens. O direito da guerra permite que combatentes se matem mutuamente, com as únicas condições de que não cometam assassinatos de civis, nem de inimigos feridos, enfermos, náufragos, rendidos ou capturados.

Então, se uma força toma um combatente como "prisioneiro de guerra", ela não pode julgar e condenar essa pessoa capturada pelo simples fato de ela ter pertencido ao lado oposto. Quando há aplicação do direito, esse combatente é simplesmente liberado no fim do conflito e repatriado a seu local de origem. Apenas os que tenham comprovadamente cometido crimes de guerra são julgados.

O problema é que, do lado do Hamas, as pessoas capturadas são civis. Então, é simplesmente um crime capturar, raptar, sequestrar, abduzir –não importa o termo– esses civis.

Já do lado de Israel, nega-se aos membros do Hamas a condição de combatentes, usando para eles denominações de "combatentes ilegais" e de "terroristas". Essa é uma estratégia política usada para driblar a lei e tornar os adversários criminosos permanentes. Independentemente do que os homens do Hamas tenham feito em combate –se dispararam uma granada propelida por foguetes contra um tanque militar israelense, o que é legal, ou se massacraram civis numa festa, o que é ilegal– eles são considerados permanentemente ilegais por Israel, o que turva o próprio conceito de "prisioneiro de guerra".

Por essas leis, o Hamas não pode absolutamente capturar civis. Israel pode, por sua vez, enquanto "potência de ocupação", prender civis palestinos que cometem crimes, à luz do direito penal, como pode também capturar combatentes do Hamas dando a eles o tratamento previsto no direito internacional.

O que, no entanto, Israel faz e não poderia fazer é criar uma categoria híbrida, de "combatentes ilegais", na qual enquadra palestinos capturados de forma arbitrária, sem o devido processo legal, por tempo indeterminado, sem acusação formal, sem julgamento e sem respeito aos padrões mínimos de tratamento, estendendo para a realidade de Gaza uma prática penitenciária que teve Guantánamo como seu maior laboratório.

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