Manipula��o do DNA � esperan�a para tratar c�ncer, mas pre�o ainda � alto
AP Photo/Eric Risberg | ||
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Enfermeira prepara tubo para tratamento com terapia gen�tica hospital na Calif�rnia |
RESUMO T�cnicas de modifica��o de DNA com fins medicinais s�o aprovadas com frequ�ncia crescente para uso em seres humanos. Principal alvo dessa onda � o c�ncer. A terapia gen�tica tem potencial para ser mais eficiente que procedimentos atuais, mas ela ainda � muito cara, e seu uso generalizado n�o deve vir t�o cedo.
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Depois de d�cadas de incerteza, promessas n�o cumpridas e algumas trag�dias, t�cnicas de modifica��o do DNA com fins medicinais est�o sendo aprovadas com frequ�ncia crescente para uso em seres humanos —e o principal alvo dessa nova onda da terapia g�nica (ou geneterapia) � o c�ncer.
Hoje, mais de 60% dos testes cl�nicos de fase 3 (a �ltima etapa de an�lise de um medicamento antes de ele ser liberado) relacionados a terapia g�nica t�m como objetivo atacar diferentes tipos de tumores. "A �rea de fato passa por um momento de empolga��o", diz Eugenia Costanzi-Strauss, do Instituto de Ci�ncias Biom�dicas da USP.
A grande promessa desse ramo de pesquisa � ir � raiz dos problemas que desencadeiam o c�ncer.
Todo tumor surge de muta��es, ou seja, altera��es nas "letras" qu�micas que comp�em o genoma, ou conjunto de DNA das c�lulas. Tais muta��es promovem o crescimento desordenado das c�lulas tumorais � custa do restante do organismo e, frequentemente, n�o s�o detectadas pelos sistemas de vigil�ncia do corpo.
Se fosse poss�vel alterar geneticamente esses sistemas de defesa para que soubessem de antem�o como atacar os tumores, ou se houvesse meios de corrigir o DNA das pr�prias c�lulas do tumor, a doen�a seria desarmada "por dentro".
A t�tica tem potencial para ser menos invasiva do que procedimentos cir�rgicos ou radioterapia e mais espec�fica do que a quimioterapia, que acaba afetando c�lulas sadias. Al�m disso, pode alcan�ar tumores que, por estarem localizados em �reas sens�veis, como o c�rebro ou o entorno de art�rias, hoje s�o considerados inoper�veis.
Um marco importante para a �rea veio em agosto, quando a FDA (ag�ncia americana que regula f�rmacos e alimentos) aprovou pela primeira vez o uso de uma forma de geneterapia nos EUA, no intuito de enfrentar um tipo de leucemia (c�ncer sangu�neo). Pouco depois, em outubro, a mesma ag�ncia deu aval a uma t�cnica similar, voltada para o tratamento de certos linfomas.
Al�m da proximidade temporal da aprova��o, ambas as terapias t�m em comum o mecanismo de a��o, que envolve, grosso modo, o uso de engenharia gen�tica com o fim de "ensinar" as c�lulas de defesa do organismo do paciente a atacar o c�ncer de forma espec�fica, ou seja, sem causar dano a tecidos sadios nesse processo.
CAR-T
A abordagem � conhecida como CAR-T (sigla da express�o "receptores quim�ricos de ant�genos de c�lulas T", em ingl�s).
As c�lulas T s�o uma esp�cie de soldado microsc�pico produzido naturalmente pelo corpo. Algumas delas s�o retiradas do organismo do paciente, cultivadas em laborat�rio e infectadas com um v�rus modificado cujos ancestrais eram parentes do HIV. Os cientistas usam esse invasor viral, agora em vers�o benigna, para carregar para dentro das c�lulas T peda�os de DNA que cont�m a receita para a produ��o dos tais receptores quim�ricos.
Na pr�tica, isso significa que o genoma dessas c�lulas alteradas passa a abrigar, em sua "biblioteca", informa��es para produzir os receptores, que funcionam como fechaduras nas quais subst�ncias presentes nas c�lulas do tumor podem se encaixar, feito chaves.
Uma vez paramentadas com os receptores, as c�lulas de defesa geneticamente modificadas s�o reintroduzidas no paciente. De volta ao organismo, elas conseguem detectar as c�lulas do tumor, pois seus receptores se conectam de forma precisa com mol�culas expostas na superf�cie das c�lulas tumorais, os chamados ant�genos (outro termo da sigla CAR-T).
Esse encaixe exato entre c�lulas T e c�lulas tumorais permite que as primeiras liberem toxinas que v�o matando o tumor, enquanto c�lulas sadias n�o s�o atacadas.
"A estrat�gia � bem interessante e, no meu entender, a libera��o do uso nesses casos traz a perspectiva de aplic�-la em outros tumores", diz o geneticista Carlos Menck, da USP. "Assim, voc� consegue preparar o sistema imune [de defesa] para combater tumores que apresentarem determinados ant�genos."
Menck aponta outra poss�vel vantagem da CAR-T em rela��o a outras formas de terapia g�nica: as c�lulas T modificadas j� se encontram num estado bastante diferenciado (ou seja, especializado) e n�o possuem a capacidade de dar origem a outros tipos de c�lulas.
Caso a altera��o em seu DNA ative genes ligados ao surgimento de tumores, a chance de que elas se multipliquem de forma descontrolada e produzam outro c�ncer � baixa (o receio de que isso volte a acontecer, como foi o caso em testes dos anos 1990, nunca desapareceu de todo).
PROBLEMAS
Isso n�o significa que a CAR-T esteja isenta de efeitos colaterais. "[As c�lulas T] come�am a matar as c�lulas tumorais t�o depressa que voc� tem uma ativa��o excessiva do sistema imune e um forte processo inflamat�rio. O paciente pode passar muito mal, com febres, calafrios e outros sintomas", diz o bioqu�mico Bryan Strauss, pesquisador do Icesp (Instituto do C�ncer do Estado de S�o Paulo Octavio Frias de OIiveira).
Apesar das taxas elevadas de sucesso do tratamento, que ficaram entre 80% e 90% em grupos de pacientes que j� n�o respondiam a drogas convencionais, houve algumas mortes nos testes cl�nicos.
Em parte, isso tem a ver tanto com o estado bastante debilitado dos participantes (algumas mortes ocorreram via infec��o por fungos, por exemplo) quanto com os f�rmacos usados na prepara��o para a transfus�o das c�lulas T modificadas. "Voc� tenta matar o m�ximo poss�vel de c�lulas tumorais antes, para facilitar o trabalho das c�lulas T, mas isso tamb�m enfraquece o paciente", diz Eugenia.
Em seu formato atual, as terapias baseadas na CAR-T s�o altamente personalizadas, pois dependem da obten��o e da altera��o de c�lulas do pr�prio paciente, al�m de muito caras: US$ 475 mil (cerca de R$ 1,5 milh�o) para a dose �nica necess�ria para o tratamento contra leucemia, US$ 373 mil (R$ 1,2 milh�o) no caso do linfoma.
"Por outro lado, voc� poderia pensar numa c�lula universal", afirma a pesquisadora da USP. Nesse caso, t�cnicas de edi��o de genes, que t�m se tornado mais pr�ticas e confi�veis, retirariam das c�lulas os fatores respons�veis por desencadear rejei��o, permitindo que as tais c�lulas T universais estivessem sempre prontas para uso —o que reduziria custos.
V�RUS MODIFICADO
O uso de armas biol�gicas contra o c�ncer tamb�m tem progredido com os chamados v�rus oncol�ticos, ou seja, cuja multiplica��o � capaz de destruir tumores.
Essa habilidade j� existe em certas formas virais na natureza, e o que os pesquisadores t�m feito s�o pequenos ajustes no material gen�tico dos parasitas para garantir que afetem apenas c�lulas tumorais. De quebra, podem inserir no organismo humano genes capazes de potencializar a rea��o contra tumores.
A FDA aprovou a primeira terapia desse tipo em 2015 —uma vers�o modificada do v�rus da herpes que est� sendo usada para tratar melanomas (tumores de pele) e � administrada localmente.
"Como ele se replica apenas dentro das c�lulas tumorais, sua multiplica��o amplifica o efeito destrutivo sobre o tumor e j� � suficiente para iniciar uma resposta imunol�gica", diz Strauss. "Al�m disso, o gene que ele carrega tem o objetivo de promover ainda mais essa resposta, o que permite que o sistema imune v� atr�s de poss�veis met�stases [espalhamento do c�ncer para outros tecidos e �rg�os]."
O Icesp e outros institutos brasileiros j� est�o iniciando os testes cl�nicos do mesmo v�rus oncol�tico. Todos esses exemplos deixam claro que os chamados vetores virais devem continuar sendo os principais sistemas de "entrega" da terapia g�nica.
No passado, algumas mortes em testes cl�nicos foram causadas pela a��o do v�rus, que inseriu material gen�tico em regi�es sens�veis do DNA humano, desencadeando leucemia, por exemplo. Para Strauss, os cientistas aprenderam a li��o, criando protocolos para selecionar o tipo de v�rus e a dosagem correta, entre outros fatores para minimizar os riscos.
Nesta d�cada, o desenvolvimento de t�cnicas mais precisas de edi��o de DNA, como a Crispr (pronuncia-se "cr�sper"), tamb�m trouxe a promessa de diminuir muito a inser��o indesejada de genes, corrigindo o genoma com mais finesse.
SEM BALA DE PRATA
Apesar dos avan�os significativos nos �ltimos anos, n�o � sensato esperar que a t�cnica se transforme numa esp�cie de bala de prata, capaz de ferir de morte qualquer tumor, diz o oncologista Vladmir Cordeiro de Lima, pesquisador do A.C. Camargo Cancer Center, em S�o Paulo.
"O problema do c�ncer � que ele � muito heterog�neo e muito din�mico", afirma. Como cada tumor nasce a partir de uma s�rie complexa de muta��es no DNA de c�lulas normais, em muitos casos n�o ser� poss�vel acertar de antem�o os genes necess�rios para eliminar determinado tipo de c�ncer —e, quanto maior o n�mero de genes que se deseja atingir ao mesmo tempo, maior a complexidade do "design" da terapia.
Por isso, o pesquisador prefere nem classificar as abordagens que est�o chegando ao mercado como formas de terapia g�nica. "A rigor, a gente s� poderia classific�-las desse jeito se a ideia fosse corrigir as muta��es das c�lulas cancerosas e faz�-las voltar ao seu estado normal, o que n�o � o caso."
Mais importante ainda, quando nem todas as c�lulas tumorais s�o eliminadas, as que resistem ao bombardeio inicial t�m a chance de se multiplicar novamente e invadir outros �rg�os.
"Algumas v�o escapar e voltar a crescer depois de um tempo. Ser� preciso descobrir como acertar v�rios alvos em paralelo, e como fazer isso num organismo multicelular como o nosso de forma segura", diz Cordeiro de Lima.
Apesar de antever essas dificuldades, o m�dico mostra algum otimismo. "A �rea tem mudado muito depressa, e as coisas andam acontecendo de forma catal�tica. Vamos ter avan�os, mas o uso generalizado n�o vir� t�o cedo."
REINALDO JOS� LOPES, 39, � jornalista de ci�ncia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral" (Harper Collins) e assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.
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