Ursula K. Le Guin, o c�none da literatura e a fic��o cient�fica
Marian Wood Kolisch/"New York Times" | ||
A escritora norte-americana Ursula K. Le Guin |
RESUMO O pr�ximo encontro do Clube de Leitura Folha, que acontece na ter�a (28) �s 19h na Livraria Martins Fontes da av. Paulista, discutir� o livro "Os Despossu�dos", de Ursula K. Le Guin. Leia abaixo um perfil da autora, feito pelo jornalista David Streitfeld, do "New York Times".
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Se voc� � um escritor americano importante, torce por duas coisas para consolidar seu legado. Descobrir, numa bela manh� de outubro, que sua presen�a est� sendo requisitada na Su�cia, seria ideal. Quase t�o bom quanto isso � ter seu nome consagrado pela editora Library of America, a coisa mais pr�xima que existe da imortalidade entre capas duras.
A Library of America normalmente se limita a publicar Herman Melville, Mark Twain, Nathaniel Hawthorne e outros autores consagrados j� falecidos. Em algumas raras ocasi�es, contudo, ela teve tanta certeza da import�ncia de um romancista que seus volumes pretos e austeros come�aram a ser publicados enquanto o autor ainda estava vivo. Eudora Welty, Saul Bellow e Philip Roth receberam o chamado.
Os Despossuidos |
Ursula K. Le Guin |
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No ano passado, Ursula K. Le Guin passou a fazer parte dessa lista muito restrita de nomes. A ideia original da Library era come�ar com algumas das obras cl�ssicas de fic��o cient�fica de Le Guin, mas a autora fez press�o para que come�assem, em vez disso, com um volume de seus trabalhos menos conhecidos.
"Existe uma dose de arrog�ncia inata aqui: quero fazer as coisas � minha maneira", disse Le Guin em entrevista dada em sua casa em Portland. "N�o quero ser reduzida a 'aquela autora de fic��o cient�fica'. As pessoas vivem tentando me expulsar do cen�rio liter�rio e n�o quero saber disso."
Ela soltou uma risadinha. "Me recuso a ser expulsa."
O resultado � que "The Complete Orsinia", de Le Guin, foi publicado em setembro como o volume 281 da Library of America. O livro inclui um romance pouco conhecido, "Malafrena", ambientado num pa�s centro-europeu imagin�rio, e 13 contos relacionados. O material abrange a primeira metade da carreira de Le Guin, de seu primeiro conto publicado, em 1961, a 1990.
A obra de Le Guin n�o � fic��o cient�fica e tampouco � exatamente fantasia. A autora reconhece que seus f�s mais casuais podem se surpreender com o livro –um trabalho realista ambientado no in�cio do s�culo 19, a hist�ria de uma revolucion�ria esperan�osa em uma �poca em que as revolu��es s�o imposs�veis.
"Uma pessoa que j� tenha me classificado inequivocamente numa categoria xis dir� 'que merda � essa?'. Mas isso � problema dela."
Ursula Le Guin tem 88 anos. Ela diz "que merda � essa?" com frequ�ncia. Diz que est� velha demais para viajar de avi�o ou comparecer a eventos mesmo em Portland, exceto por uma ou outra presen�a em uma livraria. Assim, � o mundo que vai at� ela –subindo um morro, passando por uma placa de "rua sem sa�da" e atravessando uma ponte sobre um abismo profundo demais para ser povoado por duendes.
Sua casa, constru�da em 1899, � protegida por rosas amarelas, vermelhas e cor-de-rosa. Na sala, h� um volume de ca�a-palavras numa mesa e os livros que Le Guin e seu marido, Charles, historiador aposentado, est�o lendo em voz alta � noite ("Two Years Before the Mast", de Richard Henry Dana Jr., e a poesia de Theodore Roethke). N�o h� o menor sinal de que aqui vive algu�m que seja uma escritora, muito menos a maior escritora viva de fic��o cient�fica dos Estados Unidos.
SEM CR�DITOS
A internet est� cheia de f�s de Le Guin que dizem que ela n�o recebe o cr�dito que merece. "The Word for World Is Forest" (1976), sobre humanos perversos que invadem brutalmente um planeta habitado por extraterrestres pac�ficos que vivem na floresta, antecedeu "Avatar" (2009), de James Cameron, sobre humanos perversos que invadem um planeta habitado por extraterrestres pac�ficos que vivem na floresta.
"Planet of Exile" (1966) tem esta��es que duram 15 anos, b�rbaros que invadem vindos do Norte e seres mal�volos chamados "snowghouls" (algo como dem�nios da neve) –coisas que qualquer f� de "Game of Thrones" achar� familiares.
E Le Guin articulou todos os detalhes de uma escola de magos e bruxaria quando J.K. Rowling tinha apenas tr�s anos de idade. Esta obra do in�cio da carreira de Le Guin foi criada �s margens da cultura. "A Wizard of Earthsea" (1968), hoje visto como uma das grandes fantasias de sua era, foi lan�ado por uma editora pequena de Berkeley, Calif�rnia.
"A M�o Esquerda da Escurid�o" (1969), provavelmente a obra mais influente de Le Guin, foi lan�ada como livro de capa mole, barato, vendido por US$ 0,95.
"Publiquei como autora popular numa �poca em que a fic��o popular n�o era vista como literatura", ela disse. "Pode-se dizer que paguei o pre�o por isso. Don DeLillo, que � visto como liter�rio sem sombra de d�vida, recebeu o pr�mio em vez de mim" –no National Book Awards de 1985– "porque eu publicava meus livros como fic��o popular, e ele, n�o. Tamb�m porque ele � homem e eu sou mulher." (DeLillo recebeu o pr�mio por "Ru�do Branco"; o livro de Le Guin, "Always Coming Home", era sobre uma utopia californiana no futuro distante.)
ESCRITORES E DESODORANTES
Ficar mais tranquila com a idade claramente n�o � o estilo de Le Guin. Em 2014 ela recebeu a Medalha da National Book Foundation por sua Contribui��o Distinta �s Letras Americanas. Ela passou seis meses redigindo o discurso de seis minutos que faria.
"Quem era eu para cuspir na tigela de ponche das editoras na festa anual da ind�stria livreira?", ela conta em "Words Are My Matter," uma colet�nea de n�o fic��o que saiu em 2016 pela Small Beer Press. "Bem, na realidade, eu era a pessoa certa para faz�-lo. Ent�o fiz."
Ela usou o discurso para criticar editoras que "lucram com commodities", que vendem escritores "como se fossem desodorante e nos dizem o que publicar, o que escrever". Criticou nossas "tecnologias obsessivas" que promovem o medo e a cobi�a.
O discurso e a indigna��o de Le Guin viralizaram. "Uma escritora na casa dos 80 anos simplesmente n�o tem tanto a perder", ela comentou. "Uma autora na metade de sua carreira que desafie a hegemonia do Google e da Amazon e d� nomes aos bois, identificando as pr�ticas imorais e injustas dessas empresas como o que s�o, passa imediatamente a correr o risco de virar alvo de vingan�a delas e da inimizade de outros escritores mancomunados com elas. Estou correndo o mesmo risco, mas o que importa? Meu trabalho est� a� fora, vis�vel, presente."
Muitos escritores mais jovens citam Ursula Le Guin como inspira��o; � o caso de David Mitchell e Neil Gaiman. Em um e-mail, Junot D�az falou sobre "The Ones Who Walk Away From Omelas", a par�bola de Le Guin sobre uma sociedade cuja exist�ncia tranquila depende de conservar uma criancinha isolada e infeliz. A maioria dos cidad�os de Omelas aceita essa condi��o. Alguns poucos, n�o.
"Para Le Guin, esse conto � ao mesmo tempo uma par�bola e uma pr�tica", comentou Diaz. "Ursula passou todas essas d�cadas tentando mapear um caminho para quem deseja se afastar de Omelas, tamb�m conhecido como o horror de nossa civiliza��o."
"The Complete Orsinia" � Ursula Le Guin em registro mais suave. "O desafio editorial da Library of America � encontrar um ponto de equil�brio", disse Max Rudin, o publisher da editora. "Por um lado, publicar autores e obras que sejam indiscutivelmente parte do c�none americano. Por outro, publicar livros que ampliem a vis�o das pessoas sobre o que � a grande literatura americana."
Na introdu��o ao livro, Le Guin cita passagens de um caderno de 1975 em que ela escreveu que boa parte de sua obra trata de uma no��o central: "A verdadeira peregrina��o consiste em voltar para casa". O her�i de "Malafrena" precisa deixar sua fazenda provincial, apenas para reencontr�-la mais tarde.
"Existe uma diferen�a entre o c�rculo e a espiral", disse Le Guin. "Dizemos que a Terra descreve uma �rbita circular em volta do Sol, mas � claro que isso n�o acontece. Nunca voltamos para o mesmo lugar, apenas para o mesmo ponto na espiral. Essa imagem � muito profunda em meu pensamento."
"Orsinia" tem outra espiral: enquanto as obras de Le Guin est�o sendo inclu�das no c�none, ela, em grande medida, j� parou de escrever. "A fic��o n�o est� saindo. N�o d� para tirar �gua de um po�o que secou." Ela ainda escreve poesia, o que � um consolo.
Resta aquela outra grande possibilidade que cimentaria seu legado. Em 2015 Le Guin foi avaliada como tendo chances 25 contra e uma a favor de receber o Nobel. Sua conclus�o: "Nos pr�ximos 25 anos, a �nica coisa que preciso fazer � viver mais tempo que os outros 24 autores".
Tradu��o de CLARA ALLAIN
Livraria da Folha
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