Schwarz ensinou a ler pa�s de Machado de Assis, mas tese esbarra em limites
Leonardo Wen/Folhapress | ||
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O cr�tico liter�rio Roberto Schwarz em sua casa, em foto de 2007 |
RESUMO A famosa f�rmula "ideias fora do lugar" completa 40 anos desde que foi publicada no livro "Ao Vencedor as Batatas", de Roberto Schwarz. Autor do ensaio mostra o trabalho de elabora��o constante da f�rmula e argumenta que, se ela ensinou a ler tanto Machado de Assis quanto o pa�s, agora j� esbarra em seus limites.
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Ao Vencedor as Batatas 5� Edi��o |
Roberto Schwarz |
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"Esta � a metade de um estudo sobre Machado de Assis. Como ele tem relativa independ�ncia, e a segunda parte talvez ainda demore, achei prefer�vel n�o esperar, e publicar em separado os cap�tulos que seguem." Assim se pronunciou Roberto Schwarz em nota que abre o livro "Ao Vencedor as Batatas", de 1977, sob o t�tulo "Explica��o ao leitor".
O primeiro cap�tulo, "As ideias fora do lugar", � muito mais famoso que os outros dois, "A importa��o do romance e suas contradi��es em Alencar" e "O paternalismo e a sua racionaliza��o nos primeiros romances de Machado de Assis". De todo modo, trata-se de estranha abertura para um livro de tamanho impacto nos anos seguintes.
Nos anos seguintes e at� este exato momento: h� poucos dias saiu do forno importante livro, "A Diplomacia na Constru��o do Brasil", de Rubens Ricupero. Em sua p�gina 118, lemos: "Desse agudo contraste com as transforma��es em curso na Europa e na Am�rica do Norte vai nascer o problema das ideias fora do lugar".
N�o � citado o autor da express�o, porque se sup�e que todos a conhe�am, ainda que s� de vista. Tampouco se menciona o contexto da express�o, que ganha no livro do experiente diplomata uma vers�o � moda da casa, que n�o � poss�vel subscrever � luz do original.
Diz Ricupero que, por "ideias fora do lugar", entende a "impossibilidade de adaptar as normas importadas do liberalismo pol�tico e econ�mico �s arcaicas condi��es de pa�ses rec�m-sa�dos do estatuto colonial".
Sim, � algo desse problema o que encontrou figura��o forte na express�o schwarziana, mas n�o � bem isso. No livro de 40 anos atr�s, o famoso estudo sobre Machado (1839-1908) tinha como moldura o insight cr�tico de largo alcance.
Para entender os motivos do acerto do grande Machado, a partir de "Mem�rias P�stumas de Br�s Cubas" (publicado em 1881), Schwarz recuou ao Jos� de Alencar (1829-77) urbano e ao primeiro Machado, tendo em mente a premissa geral, de matriz marxista e caminho lucaksiano e adorniano, que quer encontrar os v�nculos entre forma liter�ria e processo social.
Mas quer encontr�-los na estrutura, n�o (apenas, nem principalmente) nos temas e figuras de superf�cie, como fazia desde h� muito a visada naturalista.
FORMA��O
Roberto Schwarz, nisso, foi o mestre brasileiro.
Mestre, mas tamb�m disc�pulo. Em muitas ocasi�es, ele tem feito os devidos reconhecimentos a Antonio Candido, de quem foi aluno (no curso de ci�ncias sociais da USP) e com quem aprendeu muito.
O cl�ssico "Forma��o da Literatura Brasileira", de 1959, aponta j� numa dire��o cr�tica que se realizar� plenamente em ensaios como "Dial�tica da Malandragem", editado em 1970: um texto aparentemente frouxo e descosido como "Mem�rias de um Sargento de Mil�cias" (Manuel Ant�nio de Almeida, 1853), quando lido com rigor anal�tico e sabedoria dial�tica, revela-se representativo da realidade brasileira para muito al�m de seu tema ou sua fidelidade realista —em sua alma estava, viu Candido, a dial�tica da ordem e da desordem.
Pode-se ver em "Ao Vencedor as Batatas" empenho semelhante. Ali na obra de Machado, onde at� ent�o quase s� se viam eleg�ncia de sal�o, ironia � europeia e aus�ncia de realismo documental, Schwarz vai ver estrutura —o favor, como media��o social de relevo indiscut�vel no Brasil do s�culo 19, abafando a cr�tica social poss�vel, nos romances iniciais, e depois tratado abertamente, com escracho at�, a partir de hist�rias como as de Br�s Cubas e Bento Santiago (em "Dom Casmurro", 1899).
� o que Schwarz demonstraria em "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (1990, a segunda parte prometida em 1977) e em "Duas Meninas" (1997), respectivamente.
� certo que esse trabalho foi acompanhado por outros, como Silviano Santiago ou Raymundo Faoro. Ambos se beneficiaram do "turning point" representado pelo estudo da americana Helen Caldwell, "O Otelo Brasileiro de Machado de Assis", de 1960, que pela primeira vez p�s luz decidida sobre o processo narrativo machadiano.
DIFICULDADES
Quem l� "Ao Vencedor as Batatas" em sua totalidade enfrenta tarefa nada �bvia, nem simples, nem f�cil. Schwarz escreve com a dic��o acad�mica germ�nica, com par�grafos imensos e frases que n�o aliviam a complexidade do racioc�nio —o qual era mesmo complicado naquela altura da experi�ncia brasileira.
Vistas na perspectiva do tempo, as explica��es vigentes, sobre Machado e o Brasil que ele viveu, eram de reda��o obscura ou truncada (como se l� no �timo "A Pir�mide e o Trap�zio", de Faoro, de 1974), fruto de uma compreens�o ainda tateante sobre os fen�menos sociais e mentais do mundo machadiano. A hist�ria ainda n�o tinha proporcionado clareza.
Clareza que Schwarz ajudou, muito, a trazer para a conversa, justamente com sua feliz f�rmula das "ideias fora do lugar".
Vale lembrar de passagem outra analogia com Candido: assim como "Forma��o da Literatura Brasileira" foi mais discutido pelas ideias gerais, apresentadas na abertura, do que pelos cap�tulos anal�ticos, tamb�m "Ao Vencedor as Batatas" se consagrou pelo cap�tulo inicial, e n�o pelas brilhantes e inovadoras an�lises da forma em Alencar e em Machado.
A tese � relativamente f�cil de enunciar agora, mas foi um ovo de colombo quando veio a p�blico.
O Brasil, logo depois da independ�ncia, subscreveu princ�pios liberais, mas manteve a escravid�o. Uma incongru�ncia, certo, mas o ponto era outro: liberalismo e escravid�o conviveram por d�cadas, sem que um impugnasse o outro, mediados pelo favor, este um princ�pio universal no Brasil, que assegurava aos dois lados –favorecido e favorecedor– que nenhum deles era escravo.
Daqui sua intui��o, mancheteada na express�o famosa: "Neste contexto, as ideologias n�o descrevem sequer falsamente a realidade, e n�o gravitam segundo uma lei que lhe seja pr�pria".
ELABORA��O
Schwarz conta que a ideia lhe veio ainda antes de 1964. Apresentada em 72 em artigo em franc�s (e em livro cinco anos depois), a f�rmula "ideias fora do lugar" se tornou imediatamente refer�ncia geral no debate acad�mico da �rea de humanidades e de letras.
O autor voltou a ela v�rias vezes, com pertin�cia, para pens�-la e explic�-la. Em 2012, reuniu no livro "Martinha versus Lucr�cia" v�rios textos: uma entrevista de 2007, intitulada "Agregados antigos e modernos"; "Por que 'ideias fora do lugar'", texto de 2009, resultado de uma confer�ncia; e o longo ensaio "Verdade tropical: um percurso de nosso tempo", de 2011, em que debate o tropicalismo em boa parte � luz das "ideias fora do lugar".
N�o � nada, n�o � nada, estamos falando de meio s�culo de elabora��o, entre 1964 e o presente 2017. De quantas outras carreiras intelectuais no Brasil se pode dizer o mesmo, em sentido positivo?
Hoje, sua leitura de Machado segue de p� e ainda ilumina fortemente o debate sobre o autor. Mas o que se poder� dizer da tese-manchete "ideias fora do lugar"?
De um lado, teve imenso papel, seja no recha�o que recebeu (o primeiro deles, parece, de uma das fontes inspiradoras da tese, Maria Sylvia de Carvalho Franco; o mais famoso e persistente, de Alfredo Bosi; o mais �cido, de Eduardo Viveiros de Castro), seja, mais ainda, em seu grande poder sugestivo, que levou gente como Caetano Veloso e Rodrigo Naves, no Brasil, John Gledson, na Inglaterra, e Franco Moretti, nos EUA, a produzir estudos e depoimentos de alto valor.
LIMITES
De outro, creio que a tese venha perdendo for�a em seus fundamentos, pois no essencial acompanham Caio Prado J�nior, autor cuja interpreta��o � hoje inaceitavelmente empobrecedora —ele limita o pa�s � "plantation" e v� na economia da antiga col�nia um joguete sob comando europeu, visada criticada por Jo�o Lu�s Fragoso, Manolo Florentino e Jorge Caldeira, para citar alguns.
A pesquisa historiogr�fica vem alterando nossa vis�o, mediante estudos emp�ricos e interpreta��es de base econom�trica nem sonhadas por Schwarz e gera��o.
Assim, pode-se ver que a equa��o de Schwarz, justapondo o econ�mico-social da escravid�o e o ideol�gico do liberalismo, negligenciou uma dimens�o essencial, a pol�tica, em seu sentido institucional –a forma mon�rquica absolutista do Estado brasileiro (�nico pa�s do Novo Mundo a se tornar independente sem rep�blica) n�o pode ser tomada como secund�ria para entender nossa vida mental.
Al�m disso, como o t�m demonstrado estudos recentes, a escravid�o no Brasil tinha peculiaridades incontorn�veis no contexto da Am�rica. Por esse motivo, ali�s, as "ideias fora do lugar" nunca puderam ser generalizadas para outras localidades em que liberalismo e servid�o moderna conviveram, como nos EUA.
Aqui, por exemplo, havia todo um conjunto de modalidades de alforria e uma vasta pr�tica de mesti�agem que, combinados, constitu�ram uma rede de media��es sociais cotidianas inexistentes alhures (e que Gilberto Freyre considerou que "ado�avam" a brutalidade �bvia do trabalho servil).
Em outro sentido, dado o pre�o relativamente baixo do escravo (a respeito, ver Florentino, em "Em Costas Negras") e dada a perman�ncia absurdamente longa da institui��o servil —que demonstra a autonomia e o poder pol�tico do traficante brasileiro, este o verdadeiro setor hegem�nico do pa�s no s�culo 19, embora invis�vel (como mostram Fragoso e Florentino em "O Arca�smo como Projeto")—, houve o fen�meno da generaliza��o da propriedade escrava, como ali�s o mesmo Machado flagra, naquele ex-escravo Prud�ncio, que Br�s Cubas encontra na rua agora com seu pr�prio escravo.
Como as boas explica��es sobre a vida social e art�stica, tamb�m a tese das "ideias fora do lugar" parece estar encontrando seus limites geogr�ficos —ela fala n�o sobre o Brasil, mas sobre o mundo da "plantation" e sobre o Rio capital— e historiogr�ficos —ela se refere ao mundo do s�culo 19, talvez entre 1808 e a Rep�blica.
Mas ela nos educou, nos trouxe at� aqui, nos ensinou a ler o pa�s e, muito especialmente, a entender Machado de Assis, que pelas m�os de Schwarz cresceu e passou a fazer um sentido muito maior, mais cosmopolita e profundo do que antes.
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LU�S AUGUSTO FISCHER, 59, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, � autor de "Machado e Borges" (Arquip�lago) e de "Duas Forma��es, Uma Hist�ria", reflex�o sobre as condi��es para uma nova hist�ria da literatura brasileira (in�dito).
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