Feira de armas nos EUA tem de aula sobre fuzil a venda de livros infantis
AP Photo/Rick Bowmer | ||
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Ativista pr�-arma anda com os filhos de 3 e 5 anos carregando um rifle AR-15 em Salt Lake City |
RESUMO Rep�rter visita duas das mais importantes feiras de armas dos EUA. O frequentador t�pico � um homem branco com mais de 55 anos e que s� fala ingl�s, mas os eventos se esfor�am para atrair fam�lias, inclusive crian�as. Entre as atividades est�o aulas sobre o fuzil AR-15 e venda de livros infantis, como "Meu Primeiro Rifle".
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Dentro do complexo de 60 mil m2 onde ocorre o Great American Outdoor Show, no fim do Hall de Esportes de Tiro e atr�s do estande de uma loja de armas de precis�o, um garoto de dez anos vende livros infantis. Robert H. Jacobs 3� � o nome dele, e seu pai � o autor. H� nove t�tulos � venda, incluindo "Meu Primeiro Rifle", "Minha Primeira Pistola de Ar Comprimido" e "Meu Primeiro Arco".
O pai do garoto come�ou a escrever livros depois de n�o encontrar literatura sobre o tema para os filhos. Robert 3� ganhou sua primeira arma quando tinha cinco ou seis anos. Hoje, ostenta com orgulho uma pistola de ar comprimido, um rifle calibre 22 e dois arcos. O menino afirma gostar de ca�ar "quase tudo: ant�lope, alce, essas coisas".
Robert 3� se sentiu bem ao matar um ant�lope, ele conta, mas revela que quem matou mesmo foi seu pai. Na verdade, ele nunca matou um animal com arma, s� p�ssaros com estilingue. Ele diz que, ao matar um bicho, voc� tem sentimentos confusos. "Quando [o presidente americano] Teddy Roosevelt matou um esquilo, ele parou de ca�ar. Ele sentiu emo��es contradit�rias."
Os livros do pai de Robert ajudam os jovens ca�adores a se preparar para momentos como esse. No site em que vende suas obras, Robert pai explica que, para garantir um futuro para a ca�a e os esportes de tiro, � essencial recrutar hoje os ca�adores de amanh�.
Os Robert s�o um dos 1.100 expositores que atendem aos 200 mil visitantes do Great American Outdoor Show (a grande feira americana de atividades ao ar livre) em 2016. Realizado anualmente durante nove dias de fevereiro, em Harrisburg, capital da Pensilv�nia, essa � a maior feira de ca�a, esportes de tiro, armas e pesca do mundo, segundo a organiza��o.
Em anos eleitorais e ap�s trag�dias —como o massacre da escola Sandy Hook, em 2012, ou o ataque de Las Vegas no domingo (1�), quando um homem matou 58 pessoas e feriu mais de 500—, a m�dia americana abre espa�o para discuss�es sobre a necessidade, a futilidade ou a insensatez do controle de armas no pa�s.
Enquanto isso, os visitantes das in�meras feiras de armas dos EUA consideram esse tipo de evento um modo de reafirmar sua cultura e seu estilo de vida. Para eles, armas n�o t�m a ver com viol�ncia, e sim com tradi��es, esporte e recrea��o.
N�o se conhece o n�mero exato de armas nos Estados Unidos. De acordo com um relat�rio do Congresso, de 2012, os americanos acumulavam 310 milh�es de armas de fogo em 2009. Segundo estimativa do jornal "The Washington Post", o pa�s atingiu 357 milh�es de armas em 2013, mais do que pessoas (317 milh�es).
Somando 4,43% da popula��o mundial, os americanos eram donos de 42% das armas privadas do mundo, segundo dados de 2007 da organiza��o Small Arms Survey.
AULA DE TIRO
Na feira, � quase imposs�vel n�o se perder, tentando achar um caminho entre a loja da Smith and Wesson, no Hall de Esportes de Tiro, e a Zona de Divers�o para Fam�lias, no Hall de Ca�a, trope�ando no trajeto nos estandes da Federa��o Nacional do Peru Selvagem, dos Ca�adores com Arco Crist�os da Am�rica ou da famosa NRA (Associa��o Nacional do Rifle).
Entre as atra��es da loja da NRA est�o um kit de sobreviv�ncia para cinco dias (US$ 80, ou cerca de R$ 260), com "32 por��es de comida gourmet e leite", babadores da NRA para beb�s, um acendedor de churrasco "resistente a crian�as" no formato de um fuzil AR-15 e canecas em que a palavra "coexistir" aparece escrita com armas e balas.
Fundada em 1871, a NRA lidava com assuntos de ca�a e esportes de tiro. S� em meados dos anos 1970 a organiza��o tornou-se o que � hoje: o principal grupo de lobby pr�-armas no pa�s. Atualmente, os dois focos —pol�tico e recreacional— convergem em eventos como o Great American Outdoor Show.
Para aprender sobre o assunto, decidi assistir � palestra "Entendendo o AR-15". Quando o palestrante pergunta quem na sala tem um AR-15, sou das poucas pessoas que n�o levanta a m�o. "Qual � o problema com voc�s? N�o s�o americanos?", indaga Pat Rogers, oficial aposentado dos fuzileiros navais e da pol�cia de Nova York.
Como tantos outros, Rogers fala da Segunda Emenda da Constitui��o americana. "Nossa Constitui��o diz que o direito de ter e portar armas n�o deve ser infringido. Diz que devemos ter uma arma, e a infer�ncia � que � uma arma que os militares usam. Isso � o que os militares usam", diz, apontando para seu AR-15. "Como os militares usam, � popular."
Ele ainda credita a popularidade do AR-15 � sua versatilidade. Serve para ca�ar, para competi��es de tiro, � ergon�mica, barata e f�cil de usar. "Tudo que uma pessoa precisa numa arma", diz.
De 1994 a 2004, uma lei proibiu a venda de AR-15 e armas similares. Alguns Estados ainda imp�em restri��es � venda; outros, como Nova York, baniram o com�rcio desse tipo de equipamento depois do atentado de Sandy Hook.
Ap�s o ataque de Las Vegas, come�a a ser discutida a proibi��o da venda do "bump stock", artefato usado pelo atirador, que aumenta o poder de fogo de uma arma e pode ser comprado com facilidade.
QUEST�O CULTURAL
Feiras de armas, chamadas "gun shows", s�o t�o populares que � imposs�vel saber quantas existem no pa�s. O governo estima entre 2.000 e 5.200 eventos como esse por ano. Dados de 1998 revelam que 10% deles est�o no Texas, onde uma lei que permite porte ostensivo come�ou a vigorar em janeiro de 2016.
Naquele m�s, a "maior feira de armas do Texas", o Dallas Gun Show, atraiu cerca de 8.000 visitantes num fim de semana. Ali, uma variedade de artefatos � vendida ao lado de camisetas com os dizeres "Fuck Isis". Balas e B�blias � o nome de uma loja que vende esses dois artigos juntos. Adesivos trazem mensagens como "Mate os bandidos como um campe�o hoje" e "Eu corro em dire��o �s balas".
No estande da Associa��o pelo Porte Ostensivo, sou informada de que posso obter uma licen�a com um curso de tr�s horas –sem ter de atirar com uma arma de verdade.
Javier ("Voc� n�o vai conseguir muitos sobrenomes aqui. As pessoas s�o paranoicas") est� ali s� para acompanhar o pai. Diz que j� tem todas as armas de que precisa. "Acho que o ideal s�o uma ou duas pistolas, um ou dois rev�lveres, uma ou duas espingardas e um ou dois fuzis. Eu tenho umas seis."
Ele tem na ponta da l�ngua uma lista de motivos que fazem algu�m precisar de armas: para proteger suas casas, para ca�ar, para colecionar, para praticar tiro. "Em lugares populosos, como Nova York, n�o � preciso ter armas. Ent�o eles dizem para os demais: 'N�s n�o queremos armas'."
Poucos dias antes daquela feira, o ent�o presidente Barack Obama havia anunciado sua inten��o de aumentar a checagem de antecedentes na compra de armas. Ele j� havia tentado implantar medidas semelhantes ap�s diferentes atentados. O resultado quase sempre teve o efeito oposto ao esperado.
Ap�s massacres como o de Las Vegas, os americanos ficam preocupados com a viol�ncia, e as vendas de armas aumentam. Em dezembro de 2015, depois que 14 pessoas morreram em um atentado em San Bernardino, na Calif�rnia, venderam-se 1,6 milh�o de armas. O �nico m�s com mais armas comercializadas nos 15 anos anteriores (2 milh�es) foi janeiro de 2013, logo ap�s o massacre de Sandy Hook e a reelei��o de Obama.
MITO AMERICANO
No livro "Gun Show Nation - Gun Culture and American Democracy" (na��o das feiras de armas - cultura de armas e democracia americana), Joan Burbick, professora em�rita da Universidade Estadual de Washington, pesquisadora de cultura do Oeste americano e de narrativas nacionais, reflete sobre como as armas est�o impregnadas na identidade de seu pa�s.
Em conversas e entrevistas com donos de armas, percebeu que muitos deles se orgulham de pertencer a um "pa�s de armas". "A maioria das pessoas com quem conversei tem uma vers�o muito 'Hollywood' ou 'Velho Oeste' do passado. Eles romantizaram a mitologia nacional", diz Burbick. "Ent�o, voc� n�o est� falando sobre hist�ria, mas sobre narrativas nacionais. O discurso do patriotismo ligado � posse de armas � muito emocional, fantasioso."
Para Burbick, o debate sobre armas � dificultado pela dist�ncia entre os dois lados. "Parte do problema � que temos uma popula��o urbana que n�o sabe nada sobre armas, e temos pessoas que s�o fan�ticas por armas, que t�m at� 500 em casa. Existe um abismo gigante entre essas pessoas."
Segundo o estudo "Posse de Armas e Cultura Social de Armas", de 2015, 29% da popula��o que vive nos EUA tem armas, e a posse � 2,25 vezes maior entre os envolvidos com a chamada cultura das armas.
A professora Bindu Kalesan, da Universidade Columbia e da Universidade de Boston, liderou uma das raras pesquisas acad�micas das principais universidades sobre o tema. O que mais a surpreendeu foi descobrir que 27% das pessoas que n�o possuem armas pensavam em comprar uma no futuro. Se eles botarem a ideia em pr�tica, diz Kalesan, metade da popula��o do pa�s vai estar armada em breve.
O estudo tamb�m confirma algo �bvio para quem visita um "gun show": o t�pico dono de armas � um homem branco, com mais de 55 anos e que fala s� o ingl�s.
Entre os poucos estrangeiros que vendem viagens de ca�a aos seus pa�ses de origem no Great American Outdoor Show, ao menos um est� acostumado com Harrisburg. Gonzalo Mart�nez, um ginecologista argentino que leva "carpe diem" tatuado nas costas, promove um territ�rio de ca�a de aves no Norte da Argentina, enquanto bebe mate com o s�cio Peio Arrosagaray, urologista espanhol que adora ca�ar e quebrar pedras nos rins.
Em 1993, quando tinha 18 anos e sonhava se alistar no Ex�rcito, Mart�nez fez interc�mbio na cidade de Millerstown, vizinha de Harrisburg. Seu "pai" americano escolheu o argentino porque ele escreveu "ca�a" como uma de suas atividades favoritas.
Quando voltou para a Argentina, Mart�nez desistiu da carreira militar, mas n�o de ca�ar. Os dois doutores-ca�adores destacam, no entanto, que a cultura de ca�a em seus pa�ses � totalmente distinta da cultura de armas dos EUA.
"L�, ca�ar � uma atividade de elite. Aqui, o neg�cio � massivo, um estilo de vida. Quem organiza esse evento � a NRA. E pol�ticos ganham elei��es gra�as � NRA. Voc� j� foi ao hall de armas? Eles est�o oferecendo armas com silenciadores", diz Mart�nez. "Armas de guerra!", replica Arrosagaray.
"Todo imp�rio cai", diz Mart�nez. "E esse pa�s vai cair em algum momento, porque eles est�o totalmente loucos."
ADRIANA K�CHLER, 36, editora-adjunta de Cultura da Folha, � mestre em jornalismo em artes e cultura pela Universidade Columbia.
Este texto � uma adapta��o de trabalho apresentado em 2016 como conclus�o do mestrado em jornalismo em artes e cultura na Universidade Columbia. A vers�o original em ingl�s pode ser lida aqui.
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