Desigualdade no Brasil � maior do que se pensava, apontam novos estudos
Marlene Bergamo - 28.jul.2015/Folhapress | ||
Jovem que morava em favela no Morumbi e que hoje vive em conjunto habitacional no mesmo bairro |
RESUMO Novos trabalhos acad�micos lan�am d�vidas sobre alcance das transforma��es sociais durante os anos petistas. Dados recentes sugerem que a desigualdade no Brasil � ainda maior do que se imaginava. Diferen�as metodol�gicas explicam os resultados divergentes dos estudos e apontam a necessidade de mais pesquisas.
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Em mar�o do ano passado, quando a Pol�cia Federal levou o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT) para depor sobre suas rela��es com empreiteiras investigadas pela Opera��o Lava Jato, o delegado que o interrogou quis saber como eram definidos os temas das palestras que ele come�ou a fazer para as construtoras no exterior ap�s deixar o poder.
"No meu caso, e � isso que me d� orgulho, o que mais as pessoas queriam saber � qual foi o milagre que aconteceu no Brasil", disse o petista. "Porque as pessoas viram no mundo pela primeira vez o pessoal do degrau de baixo subir um degrau na vida e fortalecer aquilo que eu dizia. Pobre n�o � problema. Pobre � solu��o."
Em seguida, o ex-presidente explicou as vantagens da transfer�ncia de recursos para os mais carentes. "Empresta um bilh�o para um rico, ele vai abrir uma conta para fazer especula��o", afirmou. "Empreste R$ 50 para um pobre que ele vai comprar p�o, ele vai comprar um chinelo, ele vai comprar uma coisa que vai fazer o mercado funcionar no dia seguinte."
Para Lula, a redu��o da pobreza e a queda da desigualdade foram as principais realiza��es de seu governo e formam a ess�ncia do seu legado. Elas s�o tamb�m uma explica��o para o forte apoio popular que o l�der petista ainda encontra no Nordeste, al�m de um escudo que ele usa para se defender das acusa��es que enfrenta na Justi�a e garantir um lugar na elei��o presidencial do pr�ximo ano.
Um n�mero crescente de estudos acad�micos, por�m, tem lan�ado d�vidas sobre o alcance das transforma��es ocorridas no Brasil nos �ltimos anos. A onda revisionista amea�a enfraquecer o discurso eleitoral petista e abre caminho para rediscutir as estrat�gias adotadas at� aqui para reduzir a pobreza e diminuir o fosso que separa ricos e pobres no pa�s.
A contribui��o mais recente para esse debate � o trabalho publicado no in�cio de setembro pelo irland�s Marc Morgan. Estudante de doutorado da Escola de Economia de Paris, ele tem como orientador o economista franc�s Thomas Piketty, autor de "O Capital no S�culo 21", vasto painel sobre a evolu��o da desigualdade no mundo que se tornou sucesso de vendas h� tr�s anos.
NOVOS DADOS
Em busca de um retrato mais completo da situa��o no Brasil do que o exibido por levantamentos tradicionais, Morgan construiu uma nova base de dados sobre a renda nacional, juntando informa��es de pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica) com outras extra�das pela Receita Federal das declara��es do Imposto de Renda.
Uma an�lise restrita aos dados colhidos pelo IBGE com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domic�lios) –o levantamento mais abrangente dispon�vel sobre as condi��es de vida dos brasileiros– mostra que a fatia da renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos encolheu de 46% para 41% nos �ltimos anos, enquanto a dos 50% mais pobres cresceu de 14% para 18% e o peda�o da classe m�dia passou de 40% para 41%.
Mas os n�meros de Morgan sugerem que a desigualdade no Brasil � muito maior do que se imaginava, com enorme concentra��o de renda no topo da pir�mide social. O grupo que representa os 10% mais ricos da popula��o fica com mais da metade da renda nacional e viu sua fatia aumentar de 54% para 55% de 2001 a 2015, diz o estudo.
Os dados de Morgan indicam que o peda�o da renda apropriado pelos 50% mais pobres tamb�m cresceu nos �ltimos anos, indo de 11% para 12% do total. Um grupo que representa 40% da popula��o ficou espremido no meio e viu sua fatia da renda encolher de 34% para 32%, segundo seus c�lculos.
a Pnad - Mostra as parcelas da popula��o possuem estas partes da riqueza total do pa�s
Morgan reconhece que a desigualdade no mercado de trabalho diminuiu. Mas n�o � poss�vel extrair dos seus n�meros conclus�es seguras sobre a evolu��o do quadro geral, porque as varia��es relativas no per�odo analisado foram pequenas e a renda aumentou nos dois extremos da distribui��o. Mesmo assim, o contraste com o diagn�stico apresentado por estudos anteriores � enorme.
"Perdemos a seguran�a que t�nhamos para analisar o que est� acontecendo com a distribui��o da renda no Brasil", diz o economista Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada) e um dos primeiros a usar informa��es do Imposto de Renda para analisar a desigualdade no pa�s. "Temos que lidar com um problema novo, a concentra��o extrema de capital no topo."
A dist�ncia entre os n�meros da Pnad e as conclus�es de Morgan � explicada pelas diferen�as metodol�gicas. Ao incorporar � sua base de dados informa��es da Receita e outras estat�sticas do IBGE, o economista irland�s contabilizou rendas que pesquisas domiciliares como a Pnad n�o conseguem captar. Como resultado, a fatia dos grupos mais ricos da popula��o ficou maior.
CORRE��O DE FALHAS
O disc�pulo de Piketty foi mais longe do que autores de outros estudos que adotaram metodologia semelhante. Medeiros e outro pesquisador do Ipea, Pedro Ferreira de Souza, publicaram nos �ltimos anos v�rios trabalhos com resultados na mesma dire��o. Em sua tese de doutorado, apresentada no ano passado ao Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Bras�lia), Souza calculou a fra��o da renda apropriada pelos brasileiros mais ricos desde 1926 e encontrou n�veis de concentra��o semelhantes.
O economista irland�s, no entanto, incorporou dados usados no c�lculo do PIB (Produto Interno Bruto) e outros que n�o haviam sido considerados por levantamentos anteriores, num esfor�o para corrigir falhas que prejudicam estudos sobre renda e desigualdade exclusivamente baseados em pesquisas domiciliares.
Se duas pessoas declaram a mesma renda aos entrevistadores do IBGE, n�o h� diferen�a entre elas para a Pnad. Contudo, elas n�o podem ser tratadas como iguais se uma vive em casa pr�pria e a outra paga aluguel para morar. A solu��o adotada por Morgan e outros pesquisadores � atribuir ao propriet�rio uma renda extra, equivalente ao valor da loca��o que ele n�o precisa desembolsar.
Outras escolhas do economista s�o controversas, na avalia��o de especialistas. Lucros retidos pelas empresas e n�o distribu�dos a seus acionistas, por exemplo, foram tratados por Morgan como renda e somados aos rendimentos recebidos por essas pessoas de outras fontes, como sal�rios, juros e alugu�is.
Ocorre que muitos acionistas n�o t�m controle sobre a distribui��o dos lucros de suas empresas, especialmente em grandes corpora��es, e esse dinheiro em geral n�o fica dispon�vel para que eles o usem quando quiserem.
Morgan argumenta que o procedimento permite enxergar com mais clareza a distribui��o dos recursos econ�micos entre os v�rios grupos da sociedade. Segundo seus c�lculos, os lucros retidos pelas empresas representam 6% da renda nacional e cresceram 231% de 2000 a 2015. No mesmo per�odo, o total de sal�rios pagos pelos empregadores cresceu 74%, e os lucros distribu�dos aos acionistas das empresas na forma de dividendos aumentaram 18%, diz Morgan.
LIMITA��ES
Os motivos pelos quais pesquisas domiciliares como a Pnad s�o insuficientes para capturar a renda dos ricos s�o conhecidos pelos especialistas h� muito tempo. Pesquisadores do IBGE dificilmente conseguem entrar nos condom�nios em que os ricos moram. Os que s�o entrevistados em geral escondem informa��es, em vez de oferecer um retrato completo de suas finan�as pessoais.
Problemas desse tipo, por�m, tamb�m ocorrem com os mais pobres. Muitos n�o se lembram de rendimentos eventuais como o abono de f�rias, o seguro desemprego e a ajuda de familiares. Trabalhadores sem registro em carteira nem sempre informam a renda com precis�o. A produ��o que pequenos agricultores usam para consumo pr�prio n�o � contabilizada como renda pela Pnad, assim como a alimenta��o oferecida pelos patr�es a empregados dom�sticos.
"Boa parte da renda dos mais pobres � eventual e n�o aparece nas pesquisas", diz Sergio Firpo, professor do Insper. "Esse problema diminuiu com a formaliza��o do mercado de trabalho nos �ltimos anos, mas pode estar voltando agora, porque a recess�o empurrou muita gente de volta para a informalidade."
Em 2007, num trabalho minucioso produzido pelo Ipea, os economistas Ricardo Paes de Barros, Samir Cury e Gabriel Ulyssea compararam dados da Pnad com outras estat�sticas produzidas pelo IBGE e conclu�ram que o grau de subestima��o da renda nas pesquisas do instituto � maior entre os 10% mais pobres do que nos grupos em que se concentram os mais ricos.
As declara��es do Imposto de Renda ajudam a preencher muitas lacunas, mas tamb�m apresentam problemas. Rodolfo Hoffmann, da USP (Universidade de S�o Paulo), observa que os rendimentos de aplica��es financeiras informados pelos contribuintes incluem juros e corre��o monet�ria. Ou seja, parte do que � computado como renda � apenas reposi��o da infla��o –uma "ilus�o monet�ria", como ele diz.
Isso n�o significa que as conclus�es de Morgan, Medeiros e outros economistas que incorporaram os dados da Receita estejam erradas. Mesmo pesquisadores que veem com maior ceticismo os novos estudos reconhecem que eles oferecem contribui��es relevantes. As ressalvas, contudo, indicam que � preciso analisar com cuidado os dados antes de tirar conclus�es.
No estudo para o Ipea em 2007, Paes de Barros e seus colegas fizeram v�rios testes para examinar o efeito que ajustes estat�sticos teriam na medi��o da desigualdade. A conclus�o foi que o impacto seria praticamente neutro, mesmo se v�rias rendas n�o declaradas por pobres e ricos fossem incorporadas aos c�lculos.
RICOS MUITO RICOS
De todo modo, os novos estudos n�o s� confirmam que o Brasil � um dos pa�ses mais desiguais do mundo –o que pesquisas anteriores j� indicavam–, mas tamb�m mostram que o grau de concentra��o de renda no andar de cima � maior do que em na��es mais desenvolvidas, nas quais o poder econ�mico das elites tamb�m suscita preocupa��o.
Segundo os c�lculos do disc�pulo de Piketty, o grupo correspondente ao estrato mais rico da popula��o, representado por apenas 1% dos brasileiros, fica com 28% da renda nacional. Grupos equivalentes se apropriam de 20% da renda nos Estados Unidos e 11% na Fran�a. No Brasil, a renda m�dia anual dos membros desse clube alcan�a valores equivalentes a R$ 1 milh�o, diz Morgan. Na Fran�a, ela � inferior a R$ 925 mil.
O trabalho do economista irland�s, no entanto, n�o ajuda a entender como os ricos ficaram t�o ricos no Brasil. Seriam necess�rios novos estudos para saber se essa riqueza foi acumulada com heran�as, aplica��es financeiras ou investimentos nos setores mais din�micos da economia –para ficar em apenas tr�s hip�teses– e qual a contribui��o de cada um desses fatores.
N�o � tarefa simples. Um estudo recente que examinou a evolu��o da desigualdade no mercado de trabalho de 1995 a 2012 p�e em xeque at� algumas das explica��es mais comuns para as melhorias observadas nos �ltimos anos, como o aumento da escolaridade da for�a de trabalho e a pol�tica de valoriza��o do sal�rio m�nimo.
Produzido a seis m�os pelos economistas Francisco Ferreira, do Banco Mundial, Sergio Firpo, do Insper, e Juli�n Messina, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o estudo afirma que a contribui��o da educa��o foi neutra. Com mais gente de n�vel m�dio e superior no mercado, a diferen�a salarial entre trabalhadores mais e menos qualificados de fato diminuiu. Mas o aumento dos n�veis de escolaridade n�o foi homog�neo na for�a de trabalho, o que gerou efeito contr�rio, segundo eles.
O trio tamb�m concluiu que o impacto do aumento do sal�rio m�nimo deveria ser reconsiderado. Seus c�lculos sugerem que ele contribuiu para reduzir a desigualdade em anos mais recentes, quando a economia cresceu aceleradamente e a formaliza��o do mercado de trabalho aumentou, mas n�o em per�odos de baixo crescimento, quando muitas empresas teriam preferido contratar sem registro em carteira e pagar menos.
Segundo o estudo, o fator que mais contribuiu para a queda da desigualdade da renda do trabalho nos �ltimos anos foi um fen�meno que os economistas identificaram ao analisar informa��es sobre idade e experi�ncia dos trabalhadores ocupados. A experi�ncia parece contar cada vez menos para a remunera��o, o que tende a favorecer jovens rec�m-chegados ao mercado de trabalho, reduzindo a dist�ncia entre sua renda e a dos mais velhos.
"� uma quest�o que ainda precisamos estudar melhor", diz Francisco Ferreira. "� poss�vel que isso esteja relacionado com o envelhecimento da popula��o e a capacidade da for�a de trabalho de se adaptar a mudan�as tecnol�gicas."
Tamb�m contribu�ram para diminuir a desigualdade no mercado de trabalho nos �ltimos anos, segundo o estudo, redu��es significativas observadas nas diferen�as existentes nos rendimentos obtidos por homens e mulheres, brancos e negros, trabalhadores urbanos e rurais, com registro formal e sem carteira assinada.
GOVERNOS
Os novos estudos indicam que � um equ�voco associar a evolu��o da desigualdade em determinado per�odo a pol�ticas do governo da �poca. "A qualidade da educa��o da maioria das pessoas que hoje est�o no mercado de trabalho � resultado de pol�ticas adotadas h� v�rias d�cadas", observa Medeiros. "A maior parte dos investimentos nessa �rea foi feita por prefeitos e governadores, e n�o pelo governo federal."
Ao destacar a concentra��o de riqueza no topo da escala social, os estudos prop�em tamb�m novas quest�es. Alguns pesquisadores temem consequ�ncias pol�ticas, como o risco de captura do governo pelos interesses dos mais ricos. Outros se preocupam com efeitos econ�micos, como a redu��o dos incentivos que as pessoas t�m para empreender e explorar oportunidades de neg�cio.
Piketty e seus seguidores defendem mudan�as que tornem os sistemas tribut�rios dos pa�ses mais justos e eficientes, com aumento dos impostos cobrados sobre a renda e o patrim�nio dos mais ricos. Outros especialistas, como o economista Ricardo Paes de Barros, temem que essa discuss�o tire o foco da necessidade de aperfei�oar pol�ticas sociais e os gastos p�blicos em geral.
Souza, colega de Medeiros no Ipea, afirma: "� evidente que o combate � pobreza � importante, mas, se n�o queremos um pa�s t�o desigual, n�o tem como fazer isso sem tratar da concentra��o de renda no topo da sociedade".
Num trabalho recente em que usou dados da Pnad de 2015, Rodolfo Hoffmann calculou que o n�vel de desigualdade da renda no Brasil cairia 23% se todos pagassem Imposto de Renda de acordo com as al�quotas em vigor, sem dedu��es, e todo o dinheiro arrecadado fosse transferido para os pobres. Em outro exerc�cio, a queda seria de 27% se fosse criada uma al�quota de 40% de IR para rendas superiores a R$ 7.000 mensais.
Discuss�es sobre impostos s�o �rduas no mundo inteiro, mas ainda mais em pa�ses como o Brasil, onde a carga tribut�ria representa mais de um ter�o do PIB e j� � bastante elevada para padr�es internacionais.
"A obsess�o com a extrema riqueza n�o pode nos deixar esquecer da pobreza, porque � isso que precisamos corrigir com as pol�ticas p�blicas", diz Ferreira. "Talvez os recursos do governo aumentem se os ricos forem mais tributados, mas o problema ser� sempre como usar esse dinheiro."
RICARDO BALTHAZAR, 48, � rep�rter especial da Folha.
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