� urgente voltar a Marx para entender nova fase da economia, diz professor
AFP | ||
Homem limpa neve de est�tua de Karl Marx em Potsdam, na Alemanha, em 2004 |
RESUMO Nick Nesbitt afirma que nem a esquerda nem os neoliberais t�m explica��o adequada para a atual transforma��o do capitalismo, com a automatiza��o da produ��o e a substitui��o quase completa da m�o de obra humana. Para ele, � urgente voltar a "O Capital", de Marx, cujo primeiro volume completa 150 anos.
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O Capital - Livro 1 |
Karl Marx |
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Um s�culo e meio depois de Karl Marx lan�ar o primeiro volume de "O Capital", a sua an�lise da economia capitalista ainda hoje � a ferramenta te�rica mais importante para compreender o mundo do trabalho, avalia F. Nick Nesbitt, 52, professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.
Nesbitt organizou "The Concept in Crisis: Reading Capital Today" [Duke University Press, 328 p�gs., R$ 405,94, R$ 84,60 em e-book] (o conceito em crise: ler "O Capital" hoje), livro que acaba de ser lan�ado nos EUA e rediscute o cl�ssico "Ler o Capital" (1965), escrito pelo marxista franc�s Louis Althusser (1918-90).
Em entrevista � Folha por e-mail, Nesbitt, que leciona no departamento de literatura comparada, afirma que Marx antecipou o que ele chama de "capitalismo p�s-humano", isto �, uma dupla tend�ncia � elimina��o gradual do trabalho humano das cadeias produtivas e � precariza��o da for�a de trabalho.
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Folha - A economia global n�o � mais industrial como aquela de que Marx falava. Por que retornar a "O Capital" hoje?
Nick Nesbitt - Alguns leitores de Marx gostariam de fazer crer que seus vastos escritos s�o pouco mais que uma descri��o das condi��es de explora��o da classe trabalhadora no s�culo 19. Eu, ao contr�rio, penso que o Marx genial e duradouro deve ser encontrado, mais que em seus prodigiosos textos pol�ticos, na obra-prima sem paralelos que � "O Capital".
Marx gastou toda a energia intelectual das �ltimas tr�s d�cadas de vida para descrever n�o s� as condi��es da classe trabalhadora no s�culo 19. "O Capital" transcende a especificidade hist�rica de seu lugar e momento de escrita. Como o subt�tulo diz, � uma cr�tica sistem�tica da economia pol�tica do capitalismo, com a proeza e a influ�ncia da ordem de "Princ�pios da Filosofia do Direito", de Hegel [livro publicado em 1820], ou mesmo de "A Rep�blica", de Plat�o [datada do s�culo 4� a.C.].
Marx trabalhou para desenvolver uma compreens�o conceitual da natureza, da forma e das estruturas do sistema capitalista.
Ao contr�rio das incont�veis descri��es superficiais do capitalismo –pre�os e lucros, as perdas e os luxos dos capitalistas e das na��es, as condi��es dos trabalhadores, a pol�tica de produ��o, distribui��o, consumo e redistribui��o da riqueza– que agraciam os anais do liberalismo e da esquerda tradicional, "O Capital" �, sobretudo, um trabalho de filosofia conceitual e cr�tica.
Diante das enormes transforma��es potencialmente catastr�ficas do capitalismo hoje –transforma��es que apenas se aceleraram neste s�culo–, se quisermos compreender as for�as que atualmente conduzem a globaliza��o, n�o aprenderemos nada olhando para as estat�sticas e as an�lises neoliberais sobre PIB, emprego, lucro, crescimento e outras categorias do c�lculo econ�mico, que s�o apenas descritivas. Em vez disso, devemos voltar � an�lise conceitual de Marx.
Jiri Zavadil | ||
O professor de literatura Nick Nesbitt, da Universidade Princeton, organizador de livro sobre 'O Capital' |
Que debates o sr. procura criar ou revisitar no livro?
Como organizador, acima de tudo, pretendi ultrapassar a est�pida, superficial e moralista interdi��o de um dos grandes pensadores do s�culo passado, feita em raz�o das trag�dias de sua biografia. Althusser passou a maior parte de sua vida frequentando cl�nicas psiqui�tricas, para culminar em um ataque de insanidade que custou a vida de sua mulher e sua pr�pria exist�ncia p�blica.
Em segundo lugar, quis chamar a aten��o para a leitura filos�fica e conceitual iniciada por Althusser e seus alunos [o livro de Nesbitt tem cap�tulos escritos por frequentadores dos semin�rios que deram origem a "Ler o Capital", como o fil�sofo �tienne Balibar].
Trato "Ler o Capital" como a maior realiza��o filos�fica de Althusser para entender as crises, transforma��es e potencialidades do capitalismo tardio. O livro argumenta que Marx construiu em "O Capital" uma filosofia da forma-valor que � surpreendentemente pressagiadora em nos ajudar a entender o capitalismo contempor�neo.
Na contram�o do revisionismo e das rupturas p�s-marxistas dos anos 1960, Althusser se manteve fiel a uma leitura marxista-leninista tradicional. Essa ainda � uma perspectiva te�rica e pol�tica vi�vel?
Penso que n�o. A virtude contempor�nea de "Ler o Capital" � ter deixado de lado as inclina��es pol�ticas datadas de Althusser, concentrando-se unicamente na cr�tica te�rica do capitalismo.
Althusser afirmava que "O Capital" era mais bem compreendido entre oper�rios do que entre intelectuais, porque estes n�o experimentavam a explora��o de que fala o livro. O sr. concorda com essa afirma��o?
Acho que essas afirma��es de Althusser n�o s�o mais do que atormentada m�-f� de um brilhante pensador iconoclasta em sua recusa a deixar o Partido Comunista franc�s, tentando encaixar-se em seu pr�prio c�rculo existencial.
Embora qualquer um possa potencialmente compreender "O Capital", esse trabalho filos�fico-cr�tico � de ordem de complexidade totalmente diferente de algo como o "Manifesto Comunista". Com um livro t�o complexo e exigente, qualquer um que fizer o esfor�o de entender seus volumes interpretar� seus argumentos de acordo com posi��es subjetivas.
Ao mesmo tempo, podemos alcan�ar uma compreens�o mais aguda da l�gica objetiva do texto, como ocorreu, acredito, nas �ltimas d�cadas de pesquisa.
O que havia no s�culo 19 e ainda h� de equivocado sobre a vis�o econ�mica de Marx entre estudiosos?
A economia dominante continua ignorando o poder de muitos dos conceitos-chave de Marx: for�a de trabalho, valor excedente absoluto e relativo, tempo de trabalho socialmente necess�rio, tend�ncia � queda da taxa de lucro. No entanto, o conceito fundamental para a cr�tica de Marx � sua teoria do valor-trabalho [rela��o entre o valor da mercadoria e o tempo dedicado � sua produ��o].
Ao abandonar qualquer forma da teoria do valor-trabalho, de [Adam] Smith a Marx, a economia neoliberal ganhou na habilidade de quantificar e analisar lucros e os v�rios movimentos internos ao capitalismo, mas perdeu a capacidade de entend�-lo como uma pr�tica social, para n�o falar dos meios para construir qualquer cr�tica vi�vel a suas crises, danos e limites.
� poss�vel verificar empiricamente a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo resultaria em maior preju�zo para os trabalhadores?
A leitura atenta de "O Capital" aponta para uma grande transforma��o na estrutura e na opera��o do capitalismo na atual conjuntura hist�rica. � um desenvolvimento que eu chamaria de capitalismo p�s-humano, tend�ncia rec�m-dominante no capitalismo do s�culo 21 para a for�a de trabalho humana tornar-se o que Marx chamou de "infinitesimal e em extin��o".
Essa tend�ncia n�o � contrariada pelo fato de que, desde a d�cada de 1980, sempre mais pessoas no mundo "trabalham" (em condi��es sempre mais precarizadas).
Pelo contr�rio, s�o duas consequ�ncias da mesma tend�ncia.
Esse aumento num�rico � a forma vis�vel da tend�ncia de que a humanidade continua a depender do trabalho assalariado para a sobreviv�ncia. A desvaloriza��o da for�a de trabalho �, por outro lado, a forma conceitual da tend�ncia, em que a automa��o reduz constantemente o valor da for�a de trabalho aos n�veis "infinitesimais".
At� a d�cada de 1940, todo o algod�o era colhido � m�o. Hoje, em um mercado global, um colhedor de algod�o na �ndia, que ainda trabalha com as m�os, compete com colheitadeiras autom�ticas no Texas, que colhem, com um �nico motorista, 300 vezes mais por dia.
No passado, novas commodities e novos setores de servi�os reempregavam for�a de trabalho dispensada devido � automatiza��o de outros segmentos. Hoje, as novas �reas e processos criados j� s�o automatizados.
Pode-se argumentar que o capitalismo entrou nessa nova fase nos �ltimos dez ou 20 anos. Sua caracter�stica � a automatiza��o generalizada dos processos produtivos, com a tend�ncia de elimina��o de postos de trabalho n�o s� no Norte mas tamb�m no Sul, de forma ainda mais devastadora.
Os sinais dessa transforma��o est�o em toda parte, mas sua natureza e as for�as que a dirigem mal foram compreendidas, a meu ver, tanto pela esquerda quanto pelos economistas neoliberais.
Por volta do ano 2000, estudiosos da tecnologia diziam que seria imposs�vel fabricar um carro de forma totalmente automatizada; hoje n�o s� vemos tais carros nas estradas como temos previs�es de que 85% de toda a produ��o global possa estar automatizada dentro de uns 20 anos.
No entanto, esse processo ainda n�o foi devidamente compreendido como um momento no desenvolvimento hist�rico e estrutural do capitalismo. Nos artigos sobre o assunto, encontramos meras descri��es desses novos processos de automatiza��o e seus efeitos sobre PIB, trabalhadores, sal�rios e empregos, mas nunca uma explica��o que v� al�m de refer�ncias vagas e superficiais a "competi��o" global e "for�as do mercado".
� por isso que a an�lise de Marx sobre a estrutura do capitalismo � mais urgente do que nunca.
Embora as transforma��es que t�m ocorrido desde o ano 2000 n�o pudessem ser fenomenologicamente percebidas por Althusser em 1965, elas eram bem compreendidas por Marx, que claramente delineou a l�gica estrutural desse processo em "Fragmento sobre as M�quinas", texto de 1858.
Para formular o que pode ser uma pol�tica p�s-capitalista, acredito que seja necess�rio atingir uma compreens�o clara e adequada sobre a natureza e os limites dessa nova forma do capitalismo. O lugar para come�ar e desenvolver esse entendimento contempor�neo, com toda complexidade e rigor, tenho certeza de que continua sendo a obra-prima de Marx.
O que � ser marxista hoje?
H� mais de 150 anos, os escritos pol�ticos e filos�ficos de Marx s�o a refer�ncia mais penetrante para a cr�tica sistem�tica do capitalismo e a luta militante para derrubar seu reinado de iniquidade sobre uma parcela cada vez maior da humanidade. Ao mesmo tempo, ao longo do s�culo passado, "marxismo" e "marxista" designaram uma sistem�tica incompreens�o e simplifica��o de sua teoria.
N�o me consideraria um "marxista". Sou um estudioso da monumental cr�tica conceitual de Marx ao capitalismo, tentando compreend�-la para desenvolver o mais rigorosamente poss�vel sua implica��o para o capitalismo contempor�neo e o imperialismo tardio.
Talvez, ent�o, ser marxista hoje significaria, no m�nimo, a recusa firme em abandonar o pensamento de Marx e orientar a pr�pria cr�tica e a��o na luz que ele lan�a sobre os obscuros desastres da era atual do capitalismo p�s-humano.
LU�S COSTA, 30, doutorando em hist�ria, � jornalista.
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