Para jurista morto no governo St�lin, o direito s� pode existir no capitalismo
Arquivo do Estado Russo de Hist�ria Social e Pol��tica | ||
L�nin e St�lin nos arredores de Moscou, em 1922 |
RESUMO O jurista sovi�tico Pachukanis desenvolveu uma das principais cr�ticas marxistas do direito. Suas ideias, no entanto, contrariaram os interesses do regime stalinista. Ele foi morto em 1937 e teve sua obra proscrita durante d�cadas. Somente agora chega ao Brasil seu livro mais importante, em tradu��o direta do russo.
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As comemora��es do primeiro centen�rio da Revolu��o Russa j� renderam ao menos um bom fruto no Brasil: a reedi��o de "A Teoria Geral do Direito e o Marxismo", de Evgeni Bronislavovich Pachukanis (1891-1937). Publicado em 1924, o livro bem poderia figurar em qualquer lista dos grandes cl�ssicos das ci�ncias humanas no s�culo 20.
Pela primeira vez, sua tradu��o � feita diretamente do russo. Nas tr�s vers�es anteriores –uma na d�cada de 70, em Portugal, e duas nos anos 80, no Brasil–, tomava-se como base uma edi��o francesa, que por seu turno era vertida de uma publica��o alem�.
Pode-se imaginar as vantagens que o leitor brasileiro encontrar� agora em termos de clareza e proximidade estil�stica. Duas editoras executaram essa miss�o. A Boitempo ("Teoria Geral do Direito e Marxismo" [trad. Paula Almeida, 144 p�gs., R$ 43]) e a Sundermann ("A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921-1929)" [trad. Lucas Simone, org. Marcus Orione, 384 p�gs., R$ 45]), cujo volume re�ne ainda seis artigos do jurista sovi�tico.
Nascido em 23 de fevereiro de 1891, em Staritsa, R�ssia, Pachukanis cresceu no seio de uma fam�lia intelectualizada que combatia o czarismo, o regime imperial ent�o vigente no pa�s.
Ainda na adolesc�ncia, o futuro jurista revolucion�rio integrou, por volta de 1907, a juventude do Partido Oper�rio Social-Democrata Russo (POSDR), abrigo da tradi��o de luta anticzarista e socialista da �poca. Dessa legenda emanariam os agrupamentos menchevique e bolchevique, protagonistas dos acontecimentos de 1917.
Em 1909, Pachukanis ingressou na Faculdade de Direito de S�o Petersburgo, mas, devido a suas atividades pol�ticas, terminou preso no ano seguinte e obrigado a exilar-se na Alemanha.
Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, em 1914, Pachukanis j� tinha voltado a seu pa�s. Decidiu manter colabora��o ativa com a fra��o bolchevique do POSDR e, mais tarde, com o Partido Comunista. Na d�cada de 20, desenvolveu suas pesquisas na se��o de teoria do Estado e do direito da Academia Comunista, que veio a se tornar um influente centro de estudos jur�dicos marxistas.
AMOR E �DIO
Em raz�o da veicula��o de sua obra maior em 1924, Pachukanis obteve grande influ�ncia, alcan�ando postos de alta responsabilidade no �mbito da Uni�o Sovi�tica. Tornou-se, por exemplo, vice-comiss�rio da Justi�a e participou da comiss�o que redigiu a Constitui��o Sovi�tica de 1936.
O impacto de suas teses, por�m, tamb�m atraiu os olhos da vigil�ncia stalinista. A partir de 1930, viu-se for�ado a abandonar progressivamente suas concep��es, vez que se chocavam com a pol�tica imposta por Josef St�lin (1878-1953).
Contrariando as abordagens tradicionais, para as quais o direito teria existido praticamente em todas as �pocas, Pachukanis considerava que ele s� passou a existir no capitalismo. Na sua vis�o, o que chamamos hoje de "jur�dico" pouco tem a ver com o que havia nas civiliza��es antigas ou na Idade M�dia.
Para Pachukanis, o elemento jur�dico central n�o s�o as leis ou as normas, mas um elemento tra�o do capitalismo: o sujeito de direito, decorrente da caracteriza��o de todos os seres humanos como indiv�duos independentes entre si, formalmente livres, iguais uns aos outros e propriet�rios de mercadorias (ou de si mesmos).
Assim, segundo Pachukanis, a verdadeira compreens�o do direito n�o come�a pelo estudo das leis e das normas, mas pela an�lise do sujeito de direito, uma forma hist�rica espec�fica do indiv�duo.
Em sociedades da �ndia Antiga ou do Imp�rio Inca, entre outros exemplos, a troca de produtos se dava apenas na rela��o entre as comunidades, n�o entre os indiv�duos. Quando uma �nica pessoa realizava o interc�mbio, atuava como representante de um coletivo, n�o em nome pr�prio.
Com o tempo, essas trocas deixaram de ser ocasionais, e uma fra��o dos produtos passou a ser reservada para esse fim. Como essa parcela era �nfima, por�m, uma comunidade negociava sua produ��o com outras apenas de forma residual. Isto, por sua vez, implicava que tamb�m de modo muito restrito os indiv�duos se tratavam como formalmente independentes uns dos outros; na maior parte das ocasi�es, eram representantes das comunidades �s quais pertenciam.
Dito de outra forma, at� que surgisse o capitalismo, a produ��o social para a troca, mesmo na Antiguidade romana e grega, nunca se tornou o modo predominante e est�vel de a sociedade se organizar.
O DIREITO
No capitalismo, o surgimento do trabalho assalariado generaliza a troca mercantil, a qual se desenvolve como a rela��o social mais b�sica entre os indiv�duos. O trabalhador j� n�o � nem servo nem escravo, mas um sujeito formalmente livre e igual aos demais.
Nessa sociedade, n�o ocorre mais apenas a mera troca de m�o em m�o das mercadorias. O pr�prio modo de produ��o agora pressup�e um interc�mbio, um contrato em que o propriet�rio da for�a de trabalho � remunerado por meio do sal�rio. Esse contrato s� pode ser firmado se tanto o trabalhador como o capitalista se apresentarem enquanto propriet�rios formalmente aut�nomos, livres e iguais uns aos outros –como em toda troca de mercadorias entre indiv�duos.
De um lado, o trabalhador (propriet�rio da for�a de trabalho) produz para receber sal�rio, sua �nica forma de sobreviver. De outro, o capitalista (propriet�rio dos meios de produ��o) investe para que as mercadorias sejam vendidas.
Nenhuma das partes se envolve nesse processo no intuito de consumir a mercadoria produzida. A produ��o, a circula��o e o pr�prio consumo dos objetos socialmente produzidos se realizam t�o somente por meio de uma rela��o mercantil entre propriet�rios privados.
Da� por que pode-se dizer que o trabalho assalariado, ao generalizar a troca de mercadorias, institui a no��o de sujeito de direito como elemento central das rela��es do modo de produ��o capitalista.
A partir desse per�odo da hist�ria, os indiv�duos apresentam-se a todo tempo como sujeitos de direito, como propriet�rios de mercadorias com liberdade e igualdade formais. S� ent�o pode-se falar de modo preciso num sujeito jur�dico; o direito, por seu turno, pode ser compreendido, em sua ess�ncia, como uma media��o social de propriet�rios privados de mercadorias.
Ao estabelecer uma rela��o necess�ria entre a exist�ncia do sujeito de direito e o modo de produ��o capitalista, Pachukanis tamb�m est� dizendo que a supera��o desse sistema implica a extin��o do direito enquanto tal. Nesse sentido, o desaparecimento do direito burgu�s seria ao mesmo tempo o desaparecimento do direito em geral.
OBRA PROIBIDA
Uma das consequ�ncias dessa conclus�o –logo se v�– � a afirma��o de que o direito tem natureza burguesa, do que decorre a impossibilidade de afirmar um "direito prolet�rio".
Enquanto o regime sovi�tico stalinista avan�ava cada vez mais por meio de uma afirma��o jur�dica e estatal, as conclus�es pachukanianas soavam como afronta ao governo, que se declarava "plenamente socialista". Em 1937, ao lado de muitos outros militantes classificados como "inimigos do povo", Pachukanis foi preso e morto, em circunst�ncias at� hoje n�o totalmente conhecidas.
N�o bastasse a execu��o do revolucion�rio russo, sua obra foi proibida. Veio a ser reabilitada somente d�cadas mais tarde, e em parte por isso, at� o presente momento, v�rios dos escritos de Pachukanis ainda n�o possuem tradu��o.
A edi��o da Sundermann, por�m, traz seis ensaios do jurista sovi�tico que at� ent�o haviam sido publicados apenas em russo. Escritos de 1921 a 1929, enquanto seu autor ainda mantinha autonomia intelectual, esses "novos" textos merecer�o diversos estudos para que seu alcance seja delimitado.
Mesmo antes desse aprofundamento te�rico, entretanto, j� se pode afirmar que os ensaios complementam significativamente pontos centrais da trama te�rica pachukaniana, seja esclarecendo suas posi��es em rela��o a outros pensadores, seja desenvolvendo teses acerca da natureza do Estado e do direito.
No texto "Os Dez Anos de 'O Estado e a Revolu��o' de L�nin", Pachukanis visita uma das mais importantes obras pol�ticas do s�culo 20. Em outro dos ensaios ("O Aparato Sovi�tico na Luta contra o Burocratismo"), destaca-se a lucidez na descri��o dos problemas enfrentados pelo aparelho estatal rec�m-criado.
Tendo tudo isso em vista, a ocasi�o nos faz afirmar que a mais expressiva cr�tica te�rica do direito recebeu acabamento mais compat�vel com sua grandeza. Mais do que nunca, Pachukanis � um autor a ser relido.
THIAGO ARCANJO CALHEIROS DE MELO, 31, advogado, doutorando em direitos humanos pela USP.
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