Por que direitos LGBT incomodam tanto os governantes autorit�rios?
Emrah Gurel - 28.jun.2015/Associated Press | ||
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Manifestante na Parada Gay de Istambul de 2015 ap�s ataque da pol�cia com jatos d'�gua |
RESUMO Ensa�sta sustenta que proibi��o da presen�a de transg�neros nas For�as Armadas americanas anunciada por Trump passa longe de ser manobra diversionista. Citando exemplos de outros governos autorit�rios no mundo de hoje, afirma que os direitos LGBT �s vezes s�o "a" fronteira na virada em dire��o � autocracia.
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O dia 26 de julho de 2017 marcou um anivers�rio pessoal para mim: um ano antes, havia publicado um artigo no qual argumentava que dever�amos deixar de lado a ideia de uma conspira��o Trump-R�ssia (sim, ela j� estava circulando um ano atr�s) para nos dedicarmos � tarefa muito mais importante de imaginar o que um governo Donald Trump poderia trazer.
Escrevi que o republicano desencadearia uma guerra interna. Embora fosse dif�cil prever qual seria o alvo, "aposto que ser� a comunidade LGBT, porque sua aceita��o � a mudan�a social mais inequ�voca e dr�stica vista nos EUA nos �ltimos dez anos, de modo que uma campanha antigays captaria o desejo de voltar atr�s para um tempo em que os eleitores de Trump se sentiam � vontade".
Era s� um racioc�nio hipot�tico: ao mesmo tempo em que apresentava um argumento que julgava ser l�gico, eu mesma n�o acreditava no que dizia. No �ltimo dia 26, exatamente um ano depois de eu fazer essa previs�o, o presidente Trump anunciou –por meio de um tu�te– que transg�neros n�o poder�o mais servir nas For�as Armadas americanas.
[Se efetivada,] essa revers�o de pol�tica ter� efeito direto e imediato sobre milhares de pessoas.
Muitos comentaristas classificaram o an�ncio como manobra diversionista, como tentativa do presidente de tirar o foco da hist�ria sobre uma conspira��o com a R�ssia, ou da batalha em torno da poss�vel revoga��o da lei de sa�de do governo Barack Obama, ou de qualquer outra coisa que eles considerem mais importante que a declara��o feita por Trump de acordo com a qual alguns americanos s�o cidad�os de segunda classe.
Trata-se n�o apenas de um insulto grave aos transg�neros mas tamb�m de incompreens�o prim�ria da l�gica emocional do trumpismo.
Essa � a l�gica que o presidente americano compartilha com a maioria dos que governam com m�os de ferro hoje em dia, e foi ela que tornou t�o previs�vel seu ataque aos direitos LGBT, mesmo em 2016, quando Trump estava literalmente cobrindo o corpo com uma bandeira de arco-�ris.
Trump elegeu-se prometendo o retorno a um passado imagin�rio –um tempo do qual n�o nos lembramos porque ele nunca existiu de fato, mas um tempo no qual a Am�rica era grande de uma maneira que Trump prometeu restaurar.
Trump compartilha esse tipo de nostalgia do passado com Vladimir Putin –que passou os �ltimos cinco anos falando dos "valores tradicionais" russos–, com o presidente da Hungria, Viktor Orb�n –que avisou pessoas LGBT que elas n�o devem agir de modo provocante–, e com um sem-n�mero de populistas europeus que prometem um retorno a um m�tico passado "tradicional".
Com poucas exce��es, os pa�ses que se tornaram menos democr�ticos nos �ltimos anos tra�aram as linhas de batalha em torno da quest�o dos direitos LGBT.
TEND�NCIA
Moscou proibiu as Paradas de Orgulho Gay e a "propaganda de rela��es sexuais n�o tradicionais", enquanto a Tchetch�nia , tecnicamente uma regi�o da R�ssia, lan�ou uma campanha visando a se libertar de gays.
Em Budapeste, a Parada do Orgulho Gay virou uma marcha oposicionista anual: muitos dos participantes, sen�o a maioria, s�o pessoas heterossexuais que aproveitam esse dia para se manifestar contra o governo de Orb�n.
Na Turquia de Recep Erdogan, jatos de �gua foram usados para dispersar a Parada do Orgulho Gay em Istambul, ao passo que a �ndia de Narendra Modi voltou a criminalizar a homossexualidade (embora os direitos dos transg�neros tenham sido preservados).
No Egito, onde os gays sentiram o gostinho de novas liberdades no breve interl�dio de democracia ap�s a revolu��o de 2011, eles est�o sujeitos agora, sob a ditadura de Abdel Fattah al-Sissi, a ass�dio e vigil�ncia constantes. Centenas de gays j� foram detidos.
Uma exce��o importante � regra � Israel, sob a �gide de Binyamin Netanyahu: o governo se gaba de sua atua��o em rela��o aos direitos LGBT precisamente para afirmar suas credenciais democr�ticas –que, � exce��o desse ponto espec�fico, s�o esfarrapadas, numa t�tica que a escritora Sarah Schulman chamou de "lavagem rosa".
Em outras palavras, os direitos LGBT s�o tudo menos algo de que se fala para desviar a aten��o de algo maior. Eles s�o uma fronteira, �s vezes "a" fronteira na virada global em dire��o � autocracia.
A sedu��o da autocracia est� em sua promessa de simplicidade radical, de aus�ncia de escolha. No passado imagin�rio ao qual Trump faz refer�ncia, cada pessoa ocupava seu devido lugar e tinha um futuro circunscrito, todos e todas as coisas eram exatamente o que pareciam ser e o governo era comandado por um homem isolado que emitia ordens que n�o podiam e n�o precisavam ser questionadas.
A pr�pria exist�ncia de pessoas LGBT, especialmente de pessoas transg�nero, constitui uma afronta a essa vis�o.
Os transg�neros complicam as coisas, eles colocam o futuro em d�vida pelo fato de moldarem seu pr�prio futuro, acrescentam camadas de interpreta��o �s apar�ncias e contestam a l�gica de que um homem isoladamente possa decidir o destino de um povo e um pa�s.
REP�DIO � ESCOLHA
Podemos rir da ideia de uma proibi��o russa da "propaganda homossexual" –como se a vis�o da homossexualidade ostentada abertamente, ou at� mesmo a imagem de um arco-�ris, fosse capaz de converter um heterossexual em homossexual (sim, isso j� foi alegado).
Ao mesmo tempo, as pessoas LGBT formam um alvo ideal para a propaganda do governo na R�ssia, porque a pr�pria ideia de haver pessoas LGBT serve de representa��o conveniente de uma era de liberaliza��o hoje repudiada.
Antes da queda da Uni�o Sovi�tica, em 1991, o mundo LGBT era impens�vel. Depois, ele se tornou poss�vel, ao lado de tantas outras coisas. A vida se tornou complexa, repleta de possibilidades e incertezas. E virou assustadora, porque nada mais era certeza absoluta.
Esse medo atravessa fronteiras geogr�ficas; ele � mais ou menos igual em pa�ses que nunca foram comunistas e em sociedades que aparentemente nunca foram fechadas. A perda repentina da seguran�a econ�mica, o desaparecimento de profiss�es e carreiras longevas, a sensa��o crescente de um mundo transformado por movimentos migrat�rios, tudo isso coincidiu com a visibilidade crescente das pessoas LGBT.
Tamb�m nos EUA, a vis�o de uma pessoa LGBT � capaz de desencadear o medo da mudan�a.
A campanha de Trump foi baseada na palavra "novamente", no compromisso de "recuperar" um senso de seguran�a, de "trazer de volta" um tempo em que as coisas eram mais simples. Quando prometeu construir o muro ou combater uma s�rie de ondas de criminalidade (urbana, de imigrantes) inexistentes, referia-se a proteger os americanos do estranho, do desconhecido, do imprevis�vel.
Tamb�m aqui as pessoas LGBT podem servir como paradigmas convenientes. Ao tuitar que decidiu banir transg�neros das for�as militares, Trump mostra que � o autocrata que foi eleito para ser: ele � capaz de controlar as pessoas, emitindo uma ordem.
Essa ordem justap�e os militares –s�mbolos da seguran�a dos americanos– aos transg�neros, que provocam sentimentos de ansiedade em tantos americanos.
Olhar para uma pessoa que encarna a possibilidade de escolha –a possibilidade de ser ou de se tornar diferente– pode ser como olhar dentro do abismo da incerteza. Nesse sentido, assistir a uma Parada Gay ou ver um transexual pode provocar uma sensa��o muito estranha em uma pessoa h�tero: � uma manifesta��o das possibilidades e torna o mundo assustador.
A INVEN��O DE SI
� algo que remete ao dilema moderno sobre o qual escreveu o psic�logo social Erich Fromm (1900-80) em seu livro sobre a ascens�o do nazismo, "O Medo � Liberdade" (Zahar): a capacidade de se inventar.
A pessoa n�o nasce mais comerciante ou camponesa, residente de um bairro espec�fico pela vida inteira, homem ou mulher. Essa liberdade pode ser sentida como uma carga insuport�vel para carregar.
N�o � por acaso que a legisla��o antitransg�neros mais not�ria dos EUA –a lei da Carolina do Norte sobre o uso de banheiros p�blicos– pin�ou a certid�o de nascimento como o documento mais importante.
Ao ordenar que as pessoas usem os banheiros p�blicos do sexo que lhes foi designado ao nascer, a lei criou uma situa��o em que algumas pessoas com apar�ncia feminina, que agem como mulheres, t�m cheiro de mulher, se identificam como mulheres e vivem como mulheres s�o obrigadas a usar o banheiro masculino, e vice-versa. A lei definiu que a posi��o da pessoa no mundo � determinada a partir de seu nascimento.
Pelo �ltimo meio s�culo, o movimento LGBT nos EUA fez de tudo para acomodar a ideia de que a identidade de uma pessoa j� est� presente desde o nascimento.
"Nascido assim" tem sido o mantra que possibilitou muitos dos avan�os pol�ticos e a aceita��o cultural das pessoas LGBT, mesmo que tenha afastado do debate p�blico a experi�ncia de escolha vivida por muitas pessoas LGBT.
Mas nem todo o esfor�o no mundo de afirmar que as pessoas LGBT "n�o t�m como n�o ser assim" � capaz de aliviar a ansiedade provocada pela vis�o de pessoas transgredindo os pap�is de g�nero. � a esse tipo de ansiedade que Trump se dirigiu como candidato e a que ele se dirigiu novamente com sua promessa aparente de expurgar os transg�neros que j� est�o servindo nas For�as Armadas.
N�o se trata de uma distra��o, de algo para desviar a aten��o das pessoas: esse � o pr�prio cora��o do trumpismo.
Copyright � 2017 por Masha Gessen
Da "New York Review of Books Daily"
MASHA GESSEN, 50, jornalista russo-americana, � autora de "Palavras Quebrar�o Cimento" (Martins Fontes). Seu texto foi publicado originalmente na "New York Review of Books".
CLARA ALLAIN � tradutora.
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