Filha � suspeita de envenenar fam�lia; leia trecho de livro in�dito da americana Shirley Jackson
SOBRE O TEXTO Este trecho faz parte de "Sempre Vivemos no Castelo", primeiro romance da escritora americana traduzido no Brasil. Conta a hist�ria das irm�s Constance e Merricat, aquela acusada de matar o resto da fam�lia. O livro sai pela Suma de Letras no pr�ximo m�s.
Queria que todos voc�s estivessem mortos, pensei, e senti �nsia de falar em voz alta. Constance dizia, "Nunca deixe que eles vejam que voc� se importa" e "Se voc� der alguma aten��o, a situa��o s� vai piorar", e era prov�vel que fosse verdade, mas eu queria que estivessem mortos. Gostaria de entrar no mercado uma manh� e ver todos eles, at� os Elbert e as crian�as, deitadas ali, chorando de dor e agonizando. Ent�o pegaria os produtos por conta pr�pria, imaginei, pisando em seus corpos, tirando o que quisesse das prateleiras, e iria para casa, talvez com um chute na sra. Donell, ali deitada. Nunca sentia remorso quando tinha pensamentos como esse: s� queria que se tornassem verdade. "� errado odi�-los", Constance dissera, "s� serve para enfraquecer voc�", mas eu os odiava mesmo assim, e me questionava at� mesmo por que eles tinham sido criados.
Sempre Vivemos No Castelo |
Shirley Jackson |
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Comprar |
O sr. Elbert p�s todos os meus produtos juntos sobre o balc�o e esperou, olhando para al�m de mim, para algo distante. "Por hoje � s� isso", eu lhe disse, e sem me olhar ele anotou os pre�os em um bloco e somou, depois me entregou o bloco para que eu me certificasse de que n�o havia trapaceado. Eu sempre fazia quest�o de verificar os n�meros com cuidado, embora ele nunca se enganasse; n�o havia muitas coisas que eu pudesse fazer para me vingar deles, mas fazia o poss�vel. As compras encheram minha sacola e tamb�m outro saco, e eu s� poderia lev�-las para casa carregando. Ningu�m jamais se ofereceria para me ajudar, � claro, mesmo se eu quisesse aceitar.
Fique duas rodadas sem jogar. Com os livros da biblioteca e as compras, indo devagar, precisava andar pela cal�ada da mercearia para entrar na Stella. Parei na porta do mercado, buscando dentro de mim algum pensamento que me deixasse segura. �s minhas costas, come�aram os burburinhos e as tossidelas. Preparavam-se para falar de novo, e na outra extremidade da loja os Elbert provavelmente reviravam os olhos, aliviados. Enrijeci o rosto. Hoje eu iria pensar em arrumar nosso almo�o no jardim, e, apesar de manter os olhos abertos s� o bastante para ver aonde ia –os sapatos marrons de nossa m�e subindo e descendo–, na minha imagina��o eu arrumava a mesa com uma toalha verde e levava os pratos amarelos e morangos em uma tigela branca. Pratos amarelos, pensei, senti os olhares dos homens enquanto seguia em frente, e tio Julian comeria um belo ovo mole com torradas quebradas, e vou me lembrar de pedir a Constance que ponha um xale nos ombros dele porque a primavera est� s� no comecinho. Sem olhar eu conseguia ver os sorrisos e os gestos; queria que estivessem todos mortos e eu andasse sobre seus corpos. Raramente dirigiam a palavra a mim, mas sempre uns aos outros. "Essa � uma das meninas dos Blackwood", ouvi um deles anunciar em voz aguda, zombeteira, "uma das meninas dos Blackwood, da Fazenda Blackwood." "Uma pena o que aconteceu com os Blackwood", disse outro, alto o bastante, "uma pena para essas pobres meninas." "A fazenda � uma beleza", eles disseram, "um bom terreno para cultivar. Um homem poderia enriquecer cultivando a terra dos Blackwood. Se tivesse um milh�o de anos e tr�s cabe�as, e n�o ligasse para o que brotaria, um homem ficaria rico. Manter o terreno bem trancado, � isso o que os Blackwood fazem." "Um homem ficaria rico." "Uma pena o que aconteceu com as meninas da fam�lia Blackwood." "Nunca se sabe o que vai brotar no terreno dos Blackwood."
Caminho sobre seus corpos, pensei, almo�amos no jardim e tio Julian usa seu xale. Eu sempre segurava firme minhas compras ao passar ali, pois numa manh� tenebrosa a sacola de compras caiu e os ovos quebraram e o leite entornou e eu catei tudo enquanto eles gritavam, dizendo a mim mesma que de jeito nenhum eu sairia correndo, enfiando latas e caixas e a��car derramado na sacola de compras como uma louca, dizendo a mim mesma para n�o sair correndo.
Em frente � Stella havia uma fissura na cal�ada que parecia um dedo apontando para alguma coisa; a fissura sempre estivera ali. Outros marcos, como a impress�o da m�o que Johnny Harris deixara no cimento da sede da prefeitura e as iniciais do menino Mueller na entrada da biblioteca, foram implementados em �pocas de que me recordava; eu estava na terceira s�rie da escola quando a prefeitura foi constru�da. Mas a fissura da cal�ada em frente � Stella sempre estivera ali, assim como a Stella sempre estivera ali. Lembro de patinar por cima da fissura, e tomar o cuidado de n�o pisar nela, sen�o daria muito trabalho � nossa m�e, e passar pedalando por ali com meu cabelo esvoa�ando; os moradores n�o demonstravam nos detestar naquela �poca, embora nosso pai declarasse que eles eram um lixo. Uma vez nossa m�e me disse que a fissura j� existia quando ela era menina e morava na casa Rochester, portanto devia existir quando ela casou com nosso pai e foi morar na Fazenda Blackwood, e imagino que a fissura existisse, como um dedo apontando para alguma coisa, desde quando o vilarejo se formou a partir de madeira velha e cinzenta e das pessoas feias de rostos perversos trazidas de algum lugar insuport�vel e postas para morar naquelas casas.
SHIRLEY JACKSON (1916-65) autora americana, escreveu hist�rias de terror e influenciou escritores como Neil Gaiman e Stephen King.
D�BORA LANDSBERG, 34, � tradutora.
MARCOS GARUTI, 47, artista pl�stico, ilustrou o livro "Pasolini, do Neorrealismo ao Cinema Poesia" (Laranja Original).
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