Lattes, o f�sico brasileiro que disputou o Nobel e nomeou base de curr�culos
RESUMO H� 70 anos, o brasileiro C�sar Lattes teve participa��o decisiva em uma das descobertas mais importantes da f�sica no s�culo 20: a detec��o da part�cula m�son pi, que mant�m o n�cleo at�mico coeso. Seus feitos lhe renderam v�rias homenagens, entre as quais a de nomear a plataforma acad�mica de curr�culos.
Acervo pessoal de C�sar Lattes | ||
O f�sico C�sar Lattes em 1948, ao regressar de temporada em Berkeley |
H� 70 anos, a descoberta de uma nova part�cula subat�mica causou sensa��o na comunidade internacional e esteve por tr�s do gesto contido do jovem na foto estampada na lateral desta p�gina. A imagem simboliza um per�odo em que ci�ncia, alavancada por ideais desenvolvimentistas e ligados � seguran�a nacional, integrou um projeto de na��o para o Brasil.
Ent�o com 24 anos de idade, Cesare Mansueto Giulio Lattes (1924-2005) foi recepcionado pela imprensa ao voltar ao pa�s no auge de sua fama, alcan�ada por feitos na Inglaterra e nos EUA.
�nico f�sico formado na turma de 1943 da USP, aquele curitibano com planos de ser professor secund�rio havia ido muito mais longe do que previra. C�sar Lattes se tornava "nosso her�i da era nuclear".
A revista "Nature" de 24 de maio de 1947, em poucas p�ginas, detalhava a detec��o de um novo fragmento de mat�ria: a part�cula m�son pi (hoje, p�on), respons�vel por manter pr�tons e n�utrons "colados" no n�cleo at�mico.
O feito era do laborat�rio H. H. Wills, da Universidade de Bristol, onde Lattes havia chegado no in�cio de 1946 a convite de Giuseppe Occhialini (1907-1993), que fora seu professor na USP, e Cecil Powell (1903-1969), chefe do grupo.
A equipe de Bristol usava placas fotogr�ficas especiais para capturar a trajet�ria e a desintegra��o de part�culas subat�micas. Quando Lattes se instalou na universidade brit�nica, o material havia passado por melhorias t�cnicas e estava em fase de calibra��o.
Lattes p�de p�r em pr�tica um plano que havia tra�ado ainda no Brasil. Ele queria usar as chapas para estudar os raios c�smicos, n�cleos at�micos que, a todo instante, penetram a Terra e, chocando-se com mol�culas da atmosfera, geram uma chuveirada de part�culas.
A esperan�a dos f�sicos era a de que um desses nacos de mat�ria fosse uma part�cula ainda desconhecida. Para melhorar as chances dessa "captura", as chapas eram expostas em montanhas. No final de 1946, Lattes pediu a Occhialini que deixasse algumas caixas delas no Pic du Midi, nos Pirineus franceses (2.500 m de altitude).
Parte dessas placas tinha algo novo. Lattes havia pedido ao fabricante que inclu�sse, na sua composi��o, o elemento qu�mico boro. Essa inova��o tornou mais f�cil visualizar as trajet�rias dos dois m�sons pi que ilustraram o artigo da "Nature" h� 70 anos.
Entusiasmado, Lattes apostou que, no monte Chacaltaya, na Bol�via, com o dobro da altura do Pic du Midi, ele poderia capturar mais m�sons pi. O laborat�rio H. H. Wills pagou a passagem at� o Rio de Janeiro e, de l�, o brasileiro se viraria para chegar ao seu destino. Montanhas, neve, cavernas, fundos de lago etc. F�sica experimental tinha algo de aventura � �poca.
Do pico andino, Lattes trouxe centenas de m�sons. Os resultados foram publicados em outubro de 1947 na "Nature", revelando mais detalhes sobre as part�culas.
CALIF�RNIA
Ao final daquele ano, o H. H. Wills ganhava ares de meca da t�cnica fotogr�fica aplicada � f�sica. As not�cias da detec��o do m�son pi espalharam-se. Do norte da Europa, veio o convite para Lattes dar palestras.
Em Copenhague, o jovem brasileiro encontrou-se com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de F�sica de 1922. O dinamarqu�s ficou surpreso ao saber que Lattes pretendia deixar Bristol e seguir para os EUA. Sua miss�o seria detectar m�sons no ent�o mais potente acelerador de part�culas do mundo, o sincrocicl�tron de 184 polegadas, na Universidade da Calif�rnia (Berkeley).
Essa m�quina, que come�ara a funcionar havia mais de um ano, tinha o prop�sito de produzir m�sons. Mas, para constrangimento geral, as part�culas ainda n�o haviam sido detectadas.
Lattes chegou no in�cio de 1948 e, dez dias depois, com a ajuda do colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950), visualizou os m�sons nas chapas fotogr�ficas expostas ao feixe de part�culas gerado por aquele equipamento.
Pela primeira vez, part�culas detectadas apenas na radia��o c�smica haviam sido produzidas artificialmente. Al�m disso, a visualiza��o dos m�sons pi por Lattes e Gardner mostrava que um avan�o t�cnico implementado naquele sincrocicl�tron funcionava.
Estavam lan�adas, assim, as sementes para uma nova forma de fazer f�sica: a era das m�quinas, que transformaria os EUA no centro mundial desse ramo pelo pr�ximo meio s�culo.
A produ��o artificial do m�son pi foi capa da revista "Science News Times", ocupou p�ginas de duas edi��es da revista "Time", mereceu entrevista coletiva com cobertura da "Nucleonics" e rendeu reportagens no jornal "The New York Times", cuja editoria de ci�ncia elegeu aquele o feito mais importante da f�sica no ano, comparando-o � fiss�o do n�cleo at�mico.
No Brasil, os feitos de Lattes tamb�m tiveram ampla repercuss�o. Jornais, revistas e suplementos come�aram a moldar "nosso her�i da era nuclear". O curitibano era o representante brasileiro de uma nova ordem mundial, na qual conhecimento tornava-se sin�nimo de poder (pol�tico e econ�mico).
No mundo, naquele momento, nascia a alian�a entre ci�ncia, tecnologia, capital e Estado. Eram as ra�zes do complexo militar-tecnol�gico dos EUA.
DESENVOLVIMENTISMO
O Brasil reagiu a esse novo cen�rio mundial. Cevada por uma mentalidade desenvolvimentista, uma campanha reuniu formadores de opini�o de v�rios setores.
Pleiteava-se a cria��o de um instituto no qual se fizesse, em per�odo integral, pesquisa em f�sica. Por sua parte, militares nacionalistas viram ali a chance de obter o ciclo completo da energia nuclear –ainda hoje de extrema import�ncia.
O sucesso do movimento rendeu frutos em 1949, quando foi fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas F�sicas (CBPF). Lattes era seu diretor cient�fico.
Nos anos seguintes, essa primeira alian�a entre f�sicos e militares criou dois projetos distintos.
O primeiro, de um "Brasil grande", capitaneado pelo f�sico-qu�mico e almirante �lvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), tinha como frente principal a constru��o de um acelerador mais potente que o de Berkeley. No outro, o do "Brasil realista", defendido por Lattes, propunha-se algo mais modesto: um acelerador de pequeno porte, para treinamento de estudantes.
O acelerador do almirante �lvaro Alberto naufragou fragorosamente. O pa�s nem tinha os equipamentos necess�rios para a usinagem dos �m�s gigantescos usados nessas m�quinas.
O cen�rio "Brasil grande", contudo, evaporou mesmo por causa de um esc�ndalo. O diretor financeiro do CBPF gastou a verba do acelerador em corridas de cavalo.
Embora desaconselhado por colegas, Lattes foi � m�dia, e o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) usou a hist�ria para atacar o governo de Get�lio Vargas, seu rival. Lacerda publicou na capa de seu jornal, "Tribuna da Imprensa", uma carta de Lattes.
Aos 30 anos, devido �s press�es, Lattes teve um surto psiqui�trico. Viajou para os EUA em busca de tratamento. Regressou ao Brasil em 1957, talvez para tentar finalizar o que havia constru�do.
Crise no CBPF, sal�rios baixos, infla��o, fam�lia numerosa e quadro mental inst�vel. Esses fatores levaram o f�sico de volta � USP, em 1959, onde seguiu com projetos experimentais envolvendo o uso das placas fotogr�ficas e o estudo dos raios c�smicos.
Em 1967, Lattes transferiu-se para a ent�o rec�m-inaugurada Universidade Estadual de Campinas (SP), na qual se aposentaria.
Para o Brasil, o m�son foi muito mais do que uma part�cula, e Lattes, muito mais do que ele mesmo. Seus feitos impulsionaram a constru��o da estrutura pol�tico-administrativa de ci�ncia no pa�s.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient�fico e Tecnol�gico (CNPq) e a Coordena��o de Aperfei�oamento de Pessoal de N�vel Superior (Capes) s�o frutos de um projeto que al�ou um cientista a her�i nacional, de um pa�s que percebeu que conhecimento era a ordem do dia para uma nova geopol�tica.
At� a d�cada de 1920, praticamente tudo o que havia de f�sica experimental no Brasil era um laborat�rio did�tico na Escola Polit�cnica do Rio de Janeiro.
Lattes elevou o campo de estudos a novos patamares. Na d�cada de 1950, construiu, em Chacaltaya, um laborat�rio para estudar radia��o c�smica. Nesse mesmo per�odo, a Europa, recuperando-se da Segunda Guerra, erguia seu centro de pesquisas nucleares. Aquele era um Brasil –ao menos em ci�ncia– protagonista da hist�ria.
As trajet�rias de part�culas na forma de risquinhos pontilhados que aparecem no artigo de maio de 1947 mudaram a ci�ncia brasileira. E essa, nas d�cadas seguintes, mudaria a cara do pa�s.
Lattes poderia ter feito carreira no exterior, mas optou por seu pa�s. "Prefiro ajudar a construir a ci�ncia no Brasil do que ganhar um Nobel", escreveu, na d�cada de 1940, ao colega f�sico Jos� Leite Lopes (1918-2006).
N�o era bravata. Em 1949, o japon�s Hideki Yukawa (1907-1981) ganhou o Pr�mio Nobel de F�sica pela previs�o te�rica dos m�sons. Um ano depois, Cecil Powell foi laureado pelo desenvolvimento do m�todo fotogr�fico que permitiu as descobertas sobre os m�sons. Lattes recebeu sete indica��es ao pr�mio.
Passados 70 anos, o nome "Lattes" e o termo "m�son pi" ainda ressoam. O cientista recebeu v�rias homenagens (t�tulos, pr�mios, nomes de rua). A faceta mais famosa � a plataforma acad�mica de curr�culos. S�o ecos benignos de um pa�s que havia feito da ci�ncia uma prioridade. Com um pouco de esfor�o, ser� poss�vel n�o s� capturar aquela mensagem, mas amplific�-la e recoloc�-la em pr�tica.
ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA, 53, � professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas F�sicas e pesquisador do CNPq.
C�SSIO LEITE VIEIRA, 56, trabalha na revista "Ci�ncia Hoje" e no N�cleo de Comunica��o Social do Centro Brasileiro de Pesquisas F�sicas.
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