Dramaturga mineira Grace Pass� descortina racismo e machismo
RESUMO A dramaturga mineira Grace Pass� j� teve pe�as traduzidas para seis idiomas e recebeu duas vezes o principal pr�mio do teatro nacional. Em julho, participa da Flip. Tamb�m diretora e atriz, notabilizou-se pelo arrojo de suas experimenta��es formais e por fazer da cena um campo de enfrentamento da intoler�ncia.
Foi-se o tempo em que o hipop�tamo que devorou o pai de fam�lia permanecia oculto. A lama na qual ele habita inundou cidades �s vistas de todo o p�blico.
Na pe�a "Amores Surdos" , de 2006, a met�fora absurda envolvendo o mam�fero herb�voro embalava a hist�ria de uma fam�lia incapaz de expressar afetos. Hoje, o teatro da dramaturga, atriz e diretora mineira Grace Pass�, 37, ousa outras linguagens. A sutileza da analogia j� n�o basta para enfrentar o despudor do machismo, do racismo e de outras manifesta��es de �dio.
"Mata Teu Pai" , em cartaz at� o dia 26 no Galp�o Gamboa, no Rio (e a partir de 31/8, no teatro Poeira, na mesma cidade), � fruto dessa consci�ncia aflorada.
Convidada pela diretora Inez Viana e pela atriz D�bora Lamm a escrever sua vers�o de Medeia, Pass� afastou-se da trilha aberta por Eur�pedes, autor da trag�dia que perpetuou o mito grego, para se concentrar na for�a de insubordina��o da personagem e em sua poss�vel transposi��o para o presente.
Revoltando-se contra a ordem patriarcal, a feiticeira inflama a plateia a enfrentar o pai traidor, Jas�o –dirige-se a ela como a uma linhagem de filhas conclamadas a se insurgirem contra o progenitor. No texto cl�ssico, Medeia mata as crias para se vingar do marido, que a deixou para casar-se com uma princesa.
"� como se essa Medeia pudesse traduzir a dimens�o indom�vel das mulheres do nosso tempo, que s�o as manifestantes feministas. � a vis�o delas que nos mostra a possibilidade de invertermos a l�gica da nossa sociedade", diz Pass�.
Em cena, Medeia j� n�o deseja a morte da noiva de Jas�o, mas sim a dele, numa rea��o que reconhece tamb�m a outra mulher como v�tima da misoginia. Rec�m-lan�ada em livro pela Cobog�, a dramaturgia do espet�culo ecoa a do mon�logo "Vaga Carne" (2016).
"Esse foi um trabalho em que me permiti radicalizar em alguns pontos, o que � muito importante para um artista. Ele expandiu minha experi�ncia de escrita e de atua��o", afirma, referindo-se �s experimenta��es formais com as quais revolve a linguagem para criar uma dissocia��o entre uma voz e o corpo do qual ela se apossa.
VOO SOLO
Com pe�as traduzidas para o espanhol, o ingl�s, o franc�s, o italiano, o polon�s e o chin�s, e tendo recebido dois pr�mios Shell (o principal do teatro brasileiro) de melhor dramaturgia, Pass� est� escalada para a Flip (Festa Liter�ria Internacional de Paraty), em julho.
Ela participa da s�rie de interven��es perform�ticas "Fruto Estranho", uma novidade desta edi��o. "Vou escrever a partir da experi�ncia do 'Vaga Carne'. Vai ser um desdobramento da forma como trato a palavra naquele espet�culo", adianta. Quem estiver por l� pode esperar um trabalho po�tico de estranhamento entre o corpo que fala, a materialidade da l�ngua e suas significa��es.
"Mata Teu Pai" e "Vaga Carne" (a ser editado pela Javali neste ano), os trabalhos mais recentes da autora, atestam o vigor do voo solo que ela iniciou em 2013, quando se desligou do grupo belo-horizontino Espanca!, que se projetara com "Por Elise" (2005; primeiro Shell de texto para Pass�) e os "Amores Surdos" da abertura desta reportagem.
Desde ent�o, a mineira estreitou la�os com antigos parceiros e encontrou novos interlocutores pelo pa�s.
Seguiu os passos de S�rgio Penna no espet�culo de dan�a "Rasante" (2014); dirigiu as conterr�neas Yara de Novaes e D�bora Falabella em "Contra��es" (2013); escreveu "Guerrilheiras ou Para a Terra n�o H� Desaparecidos" (2015) para a dire��o de Georgette Fadel, em S�o Paulo; atuou com Renata Sorrah, Inez Viana e a Companhia Brasileira em "Krum" (2015), multipremiado no Rio.
N�o lhe interessa, com esse p�riplo, tornar-se uma "artista diversificada" (vers�til, por�m sem profundidade), mas adensar a pr�pria voz e agu�ar sua capacidade de cria��o.
Desde a estreia de "Vaga Carne" no Festival de Curitiba de 2016, liberdade � a palavra mais ouvida por Pass� na boca de espectadores que a procuram para dizer o que os cativou na montagem (ou o que sentiram diante dela).
"Esse texto funda um modo de narra��o na dramaturgia. Uma voz que invade um corpo e o manipula nos coloca de novo frente � palavra e transforma o sentido do teatro", opina Inez Viana, em alus�o a uma teatralidade que j� n�o se direciona nem �s rela��es externas, como no drama, nem � interioridade de um eu l�rico, mas � pr�pria constitui��o do sujeito pela linguagem.
VIRADA
Para o diretor da Companhia Brasileira, Marcio Abreu, o solo marca um ponto de virada –e de abertura– na carreira da escritora, que experimenta estruturas diferentes daquelas fundadas em f�bulas contempor�neas e personagens. "Grace escava a experi�ncia do teatro, faz emergir a voz dela e tem a coragem de ir para um lugar mais desconhecido como linguagem", afirma.
Al�m da complexidade formal, chama aten��o o modo como a artista avan�a "na investiga��o da identidade, sem abandonar suas contradi��es", conforme descreve Aline Vila Real, produtora do Espanca! desde 2008 e diretora da nova pe�a do grupo, "Passar�o".
Na vis�o de Isabel Diegues, diretora editorial da Cobog�, que publicou cinco textos de Pass�, as experimenta��es formais ensaiadas nas primeiras pe�as com o Espanca! deram � autora propriedade para incorporar "a condi��o de mulher, negra, atriz e diretora" a sua escrita.
Se � verdade que todo artista orbita ao redor de um ou de alguns poucos temas ao longo de sua trajet�ria profissional, o mote principal de Grace Pass� seria o descompasso entre corpos, palavras e imagens.
"A l�ngua do mundo sempre me foi muito penosa, e a minha ideia de comunica��o � um abismo. Meu contato com a arte tem a dimens�o de descoberta de uma l�ngua –e isso n�o � uma met�fora", diz Pass�, escolhendo com cuidado suas palavras. "Quando escrevo ou atuo, me sinto falando mais a verdade do que aqui e agora", acrescenta, num caf� no centro de Belo Horizonte.
Norte de sua obra, a ideia de inven��o � levada ao paroxismo em "Congresso Internacional do Medo" (2008), em que a autora criou um idioma para cada personagem. "Ela tinha post-its espalhados pela casa toda, com desenhos, coisas escritas ao contr�rio, palavras inventadas", lembra a iluminadora Nadja Naira, integrante da Companhia Brasileira. "Demorou anos para [o espet�culo] amadurecer e chegar ao que era proposto. Ela tinha uma vis�o de futuro ali."
Criada no bairro Al�pio de Melo, na periferia de Belo Horizonte, Pass� conta que o contato com a literatura na inf�ncia, quando a irm� professora a obrigava a ler, abriu-lhe as portas para escrever sem pudor.
"Sou a filha mais nova de uma fam�lia de oper�rios vindos do interior de Minas e da Bahia, pessoas com aptid�es art�sticas enormes. Fui a �nica com oportunidade real de experimentar a arte como trabalho", diz a ca�ula de seis.
SEMENTES
Quem lhe trouxe a "no��o radical de inventividade", ainda nas leituras de inf�ncia, n�o foi outro sen�o Guimar�es Rosa. "Ele carrega um olhar sobre um tipo de sujeito no qual consigo me reconhecer –o sertanejo– e toca em lugares pelos quais minha hist�ria familiar j� passou, como mineira. Foi meu encorajamento para inventar", afirma.
E ela n�o mais se conteve. Dona de "uma imagina��o muito solta", nas palavras de Marcelo Castro, ator e cofundador do Espanca!, Pass� fez valer a inf�ncia desfrutada ao ar livre, aquela "vida com espa�o para o pensamento".
"Consigo imaginar essa menina fabulando no quintal. O jeito como escreve n�o vem de nada que leu. Ela est� � frente, criando a partir do inconsciente. Sempre me impressionam seus 'insights'", afirma Castro.
Para Aline Vila Real, a dramaturga realizou a dif�cil travessia entre "os estudos te�ricos de homens brancos europeus", aprendidos nos bancos da escola de teatro (o Centro de Forma��o Art�stica e Tecnologia da Funda��o Cl�vis Salgado), e uma escrita que representasse sua pr�pria personalidade, sustentada por ra�zes profundas e trabalhada � exaust�o.
Em seus processos criativos, Pass� costuma investir as 24 horas do dia. Para "Congresso Internacional do Medo", dirigia improvisa��es de manh� e � tarde e escrevia � noite. Essa propens�o � imers�o a levou a dividir um apartamento com os integrantes do grupo paulista XIX por seis meses para conceber "Marcha para Zenturo" (2010) e a se mudar para Buenos Aires por "O L�quido T�til" (2012).
No teatro da mineira, essa tens�o entre exterior e interior, objetivo e subjetivo, caminha ao lado de uma convic��o da qual ela n�o arreda p�: "N�o deixar a fic��o se sobrepor � consci�ncia de que estou presente diante do p�blico". Com isso em mente, busca questionar os automatismos do rito teatral, criando formas de direcionar a aten��o � situa��o de encontro com os espectadores.
Desde "Por Elise", os processos criativos do Espanca! se detinham em quest�es como "o que acontece depois que as cortinas se abrem?", "elas se abrem?", "como soam os sinais?", "como transformar essas formalidades e conven��es?", recorda Marcelo Castro.
Esse tipo de metalinguagem e autorreflex�o escapa do hermetismo gra�as � fluidez po�tica das met�foras criadas. O expediente instiga a imagina��o tanto pelos elementos materiais da cena quanto pelos jogos com a linguagem.
R�TULOS
Outra obsess�o da autora � a de "explicitar o que n�o se consegue ver na imagem de algu�m". Para Nadja Naira, o que Pass� faz � desmontar r�tulos e estere�tipos impostos �s imagens. "Mesmo eu, voc�, qualquer pessoa tem essas travas. Est�o cravadas em n�s, � dif�cil ver de onde v�m e saber como lutar contra elas", diz a iluminadora e atriz.
Pass� conta sentir nela mesma a for�a perversa dessas etiquetas. "Sempre achei que havia uma dist�ncia enorme entre o que a minha imagem sugere � sociedade racista e machista e o que ela [efetivamente] � capaz de fazer", afirma, comparando-se ao silencioso hipop�tamo de "Amores Surdos", que "guarda uma fera muito grande dentro de si".
Por ter lutado para estar em institui��es "mais ricas ou mais brancas", a dramaturga e atriz n�o subestima a import�ncia de sua presen�a em cena ser posta em evid�ncia. Sabe que, de alguma forma, encarna a supera��o da opress�o. "'Vaga Carne', para mim, � esse grito da imagem do corpo, com tudo o que ele significa."
A destreza com que ela transita entre a escrita, a dire��o e a atua��o � fruto de uma forma��o fora do ambiente acad�mico, num tempo em que a faculdade de teatro ainda dava os primeiros passos em Belo Horizonte.
Pass� conciliava o curso t�cnico no Centro de Forma��o Art�stica e Tecnol�gica (Cefart), no prestigioso Pal�cio das Artes, com tentativas de criar companhias teatrais. "Ia buscando as refer�ncias enquanto fazia. Comecei a trabalhar antes de pensar em fun��o [espec�fica]", lembra.
Foi na mesma �poca, em 2002, que Marcelo Castro assistiu � pe�a "Todas as Belezas do Mundo", da Cia. Clara, e se encantou pelo desempenho de Pass� –com tal intensidade que logo tratou de se juntar ao grupo. Pouco depois, acompanhou-a na funda��o do Espanca!, em que a artista acumularia fun��es de atriz, dramaturga e encenadora. "Essa totalidade j� estava colocada", observa o ator.
Apesar de "Por Elise", com texto de Pass�, ter sido sucesso de p�blico e cr�tica, os integrantes da companhia cogitaram outros autores para o segundo projeto da trupe, que originalmente seria dirigido por Marcio Abreu. "No �ltimo momento, a Grace, meio t�mida, disse 'eu tenho um texto' e mostrou o esbo�o de 'Amores Surdos'", lembra Castro. Ao que Abreu reagiu: "Voc� tem que montar isso!".
Ali j� estavam dados os contornos do fino coment�rio social que viria a ser sua marca. "Grace tem um olhar po�tico para quest�es agudas da sociedade, [cria] uma po�tica da viol�ncia, sem camuflar contradi��es", avalia Aline Vila Real.
Com o tempo, os primeiros espet�culos da artista se abriram a novos sentidos. "Visitando fotos antigas de 'Amores Surdos', vemos que a m�e tinha o cabelo escovado. Hoje, a Grace faz [a personagem] de cabelos crespos. Aquele olhar cr�tico est� ainda mais direto", completa Vila Real.
COMO UM CACHORRO
Entre 2004 e 2013, o Espanca! encenou cinco espet�culos –quatro deles com textos assinados pela autora. �nica pe�a que ela n�o escreveu, "O L�quido T�til" representou tamb�m sua despedida da companhia.
Texto e dire��o eram do argentino Daniel Veronese , em quem a dilig�ncia de Pass� deixou forte impress�o. "Podia-se ver atrav�s dos olhos e da express�o do rosto como ela processava, entendia e executava. Eu a definiria como uma atriz potente e muito profissional", recorda, em e-mail.
"Levo [o of�cio] a s�rio como uma crian�a", define a artista, em busca de uma compara��o que d� conta da ideia de se entregar por inteiro �quilo que se faz. "Ou como um cachorro."
Nadja Naira, parceira na cria��o de "Vaga Carne" e "Mata Teu Pai", faz coro. "Ela n�o consegue realizar nenhum trabalho que n�o mobilize todas as suas c�lulas. Quando est� perdida ou insegura, n�o esconde. � at� engra�ado fazer teatro, lugar da simula��o, exatamente o que ela n�o �."
Atualmente, Pass� entrega suas c�lulas a projetos que iluminam quest�es identit�rias. Ela dirige "Eras", novo show das Negras Autoras. "� uma reuni�o de mulheres negras. N�o existe nenhum discurso que d� conta desse fato. Essa conviv�ncia � extremamente revolucion�ria", diz a diretora.
Ao lado de Marcio Abreu, ela inicia a cria��o do pr�ximo espet�culo da Companhia Brasileira. Ser� um desdobramento do "projeto brasil" (que abrangeu a��es realizadas em capitais das cinco regi�es do pa�s e a montagem do espet�culo hom�nimo), provisoriamente batizado de "Preto" e realizado em coprodu��o com teatros de Dresden e Frankfurt, na Alemanha.
A pesquisa debru�a-se sobre o passado escravocrata do pa�s e seus ecos no presente, escavando tabus e viol�ncias veladas infligidas aos negros. Al�m de atriz, a mineira ser� uma das dramaturgas da montagem.
Ao mesmo tempo, ela prepara uma nova pe�a do projeto "Gr�os de Imagem", o mesmo que originou "Vaga Carne". O mote agora � a tentativa de um escritor de colonizar o corpo de uma atriz –ponto de partida que ganha outra camada de leitura pelo fato de ser ela, uma autora, a "parir" esse personagem.
Al�m de buscar os palcos, Pass� aventura-se cada vez mais no cinema. Em "Pra�a Paris", de L�cia Murat (de "A Mem�ria que me Contam"), interpretar� sua primeira protagonista, ao lado da atriz portuguesa Joana de Verona. A personagem � uma ascensorista da Universidade Federal do Rio de Janeiro que faz terapia num programa de assist�ncia a carentes.
"Nunca tenho no��o da dire��o que um filme vai tomar. Essa � a grande diferen�a para mim [em rela��o ao teatro]: n�o estar na concep��o das coisas", diz a atriz.
Ela estar� tamb�m em dois longas-metragens da produtora mineira Filmes de Pl�stico: "No Cora��o do Mundo", de Gabriel Martins e Maur�lio Martins, e "Temporada", de Andr� Novais Oliveira. E no pr�ximo filme de Ricardo Alves Jr. –parceiro de longa data, com quem j� manteve um blog (Senhora K) e montou uma vers�o teatral para "Sarabanda" (2013), de Ingmar Bergman, al�m de atuar sob a dire��o dele no filme "Elon N�o Acredita na Morte".
Para a atriz, dramaturga e diretora que inventa l�nguas teatrais como estrat�gia de resist�ncia numa sociedade organizada por rela��es de opress�o, "a �poca � perigosa em todos os n�veis –tanto pol�tico quanto subjetivo–, mas, ao mesmo tempo, profundamente transformadora".
� sua maneira de sugerir (esperar?) que a lama que tudo impregnava em "Amores Surdos" e hoje engolfa o pa�s arraste de vez comportamentos antidemocr�ticos e gestos de intoler�ncia, sobre os quais nenhuma l�ngua (consagrada ou inventada no ato) pode silenciar.
LUCIANA ROMAGNOLLI, 34, � jornalista, cr�tica de teatro e editora do site Horizonte da Cena.
Livraria da Folha
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