Biografia pinta Lutero como homem moderno, mas intolerante com judeus
RESUMO Art�fice do racha que deu origem ao ramo protestante do cristianismo, Martinho Lutero oscilou entre atitudes modernas, como a problematiza��o de pr�ticas da Igreja Cat�lica e a defesa da educa��o para mulheres, e um discurso de �dio contra judeus. O monge � tema de biografia rec�m-lan�ada na Fran�a.
Samuel Brosset | ||
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Retrato de Martinho Lutero com h�bito de frei agostiniano, por Lucas Cranach |
Cat�licos e evang�licos lembram neste ano o quinto centen�rio do come�o da Reforma Protestante, movimento que dividiu o cristianismo ocidental e provocou guerras civis na Europa a partir do s�culo 16.
Em 31 de outubro de 1517, o te�logo Martinho Lutero (1483-1546) pregou na porta principal da igreja e da Universidade de Wittenberg, no nordeste da Alemanha, suas c�lebres "95 Teses", texto deflagrador do cisma cujas consequ�ncias se estendem at� o presente.
Naquele comp�ndio, Lutero contestava pr�ticas da Igreja Cat�lica de Roma, sobretudo o com�rcio de indulg�ncias (perd�o de pecados) –estimulado � �poca para financiar a constru��o da bas�lica de S�o Pedro–, e afirmava a cren�a de que a salva��o era obtida exclusivamente pela gra�a de Deus (por meio da f� em Cristo), sem necessidade de media��o da igreja.
Terminaria excomungado pelo papa Le�o 10� e banido pelo imperador Carlos 5�, em 1521.
Entre os principais lan�amentos em torno da efem�ride da Reforma Protestante est� *"Luther" [Fayard, 25 euros]*, biografia de quase 700 p�ginas escrita por Matthieu Arnold, professor de hist�ria do cristianismo da Universidade de Estrasburgo. Ele pesquisa a trajet�ria do "papa de Wittenberg" h� 30 anos e � coeditor de suas obras na reputada cole��o Pl�iade.
No livro, Arnold delineia as nuances do personagem, acusado por detratores de ser antijudeu e de se portar como capacho da nobreza, mas considerado por outros um homem e um te�logo moderno, bem mais complexo do que a imagem unidimensional de r�gido opositor do papado que lhe foi colada.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o bi�grafo concedeu � Folha.
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Folha - O que sr. descobriu sobre o homem e o te�logo nestes anos mergulhado na vida de Lutero?
Matthieu Arnold - Para mim, Lutero � um homem de contrastes. � algu�m que consegue confortar as pessoas ao proclamar a mensagem do Evangelho com as tonalidades mais suaves e calorosas, ao mesmo tempo em que, ao perceber amea�as a essa mensagem, pode defend�-la da forma mais pol�mica que seja. � um paradoxo que permanece at� o final de sua vida.
No segundo aspecto, a viol�ncia de sua linguagem lhe valeu o ep�teto de Rabelais alem�o, numa refer�ncia aos excessos do escritor franc�s Fran�ois Rabelais (1494-1553).
� redutor. Para mim, Rabelais alem�o quer dizer, sobretudo, algu�m que usa da ironia, da grosseria e da s�tira. Mas a obra de Lutero n�o pode ser comparada � de Rabelais nesse sentido. � uma obra propriamente religiosa.
O sr. insiste que Lutero deseja antes de tudo corrigir erros da igreja oficial, e n�o provocar a ruptura.
Em rela��o �s indulg�ncias, seu primeiro combate se refere � penit�ncia. E � nisso que a prega��o de [Johann] Tetzel [monge dominicano alem�o conhecido pelo com�rcio de indulg�ncias] � escandalosa. Infelizmente, a igreja rejeitou um debate profundo com Lutero. A discuss�o foi logo deslocada para a quest�o da autoridade e do poder da igreja. Disseram a ele: "Se voc� condena as indulg�ncias, condena o papa. E quem � voc� para conden�-lo? Voc� � um simples monge, e o papa n�o se engana".
� uma pena que a igreja, por quest�es teol�gicas e tamb�m, sem d�vida, financeiras, n�o tenha ouvido Lutero. Ele foi levado em conta depois, mas j� era tarde.
Lutero � criticado por agir de forma autorit�ria em rela��o aos advers�rios e por ter buscado o apoio da autoridade pol�tica dos pr�ncipes.
Os pol�ticos desejavam, j� no fim da Idade M�dia, ocupar-se mais das quest�es da igreja, pois achavam que n�o eram tratadas de forma correta pelo clero. � verdade que Lutero, em 1520, com seu apelo � nobreza, conclamou-os a assumir as r�deas. Por outro lado, sempre distinguiu o que tem a ver com a pol�tica daquilo que se relaciona com a prega��o. O poder pol�tico assegura a paz e tamb�m est� a servi�o de Deus, e a esfera religiosa anuncia o Evangelho.
O senhor acha correto apontar Lutero como precursor do iluminismo ou da modernidade?
Desconfio um pouco quando dizem isso, porque os iluministas n�o colocavam Deus no centro. Mas � verdade que Lutero inicia uma abordagem cr�tica, argumenta a partir da B�blia, diferenciando o contexto de diferentes �pocas.
Ele dava grande import�ncia � raz�o, mas s� em rela��o ao que n�o diz respeito � salva��o. Do ponto de vista terrestre, a raz�o � o maior bem. No dom�nio da f�, diz que as coisas t�m a ver com o mist�rio. Ele procurava ter um discurso razo�vel na interpreta��o da B�blia, mas preservava sempre uma parte de mist�rio.
Em que medida se pode dizer que ele antecipou a laicidade?
O problema � que h� muitas defini��es de laicidade. Hoje, na Fran�a, diz-se que � a exclus�o da religi�o da esfera p�blica. Evidentemente, nesse caso, Lutero n�o � precursor, bem pelo contr�rio. Isso n�o seria poss�vel em sua �poca.
Mas pode-se argumentar que o tenha sido ao dizer, em 1520, que os poderes temporais n�o podem mais ser submetidos ao papado, como era o caso na Idade M�dia.
Desse ponto de vista, ele insiste numa autonomia do pol�tico, distingue claramente as compet�ncias das duas esferas, p�blica e religiosa, mas sem reduzir o religioso � intimidade do indiv�duo.
O sr. se det�m sobre a defesa que Lutero faz da instru��o para mulheres.
Nesse ponto ele se distingue, inclusive dos humanistas. Na maioria dos tratados humanistas, a instru��o se refere apenas aos meninos, e Lutero assinala tamb�m a educa��o para as meninas.
Em seu tratado de 1524 sobre a abertura de escolas, se veem ilustra��es de classes de meninos e de meninas. Ele valoriza a instru��o feminina. E chega at� a dizer que, na aus�ncia de homens competentes, uma mulher pode pregar publicamente, o que j� era muito para a �poca.
Apesar de ter enfrentado a oposi��o de Estados centralizados, onde fracassou, o protestantismo conseguiu se impor em outras �reas. Como isso se deu?
At� hoje, a influ�ncia maior de Lutero � na Alemanha. Mas ele contribuiu para mudar a face da Europa no plano pol�tico. Os historiadores por vezes dizem que os te�logos superestimam a influ�ncia de Lutero, argumentando que os movimentos de emancipa��o de pr�ncipes teriam se produzido sem ele.
Eles t�m raz�o em dizer que n�o h� s� teologia. Mas sem Lutero n�o teria havido essa divis�o religiosa, com a reorganiza��o da Europa.
Os escritos de Lutero sobre os judeus s�o pol�micos. Em 1523, ele publica "Jesus Nasceu Judeu", em que adota certa dist�ncia em rela��o ao antijuda�smo da �poca. Mas, em 1543, "Dos Judeus e de Suas Mentiras" exorta ao �dio e mesmo � queima de sinagogas.
Diria que seu texto de 1523 � quase excepcional para a �poca, ao defender a conviv�ncia com os judeus. J� em 1543, Lutero vai pedir exatamente o contr�rio, ou seja, a segrega��o, at� mesmo a expuls�o. Pede que sejam destru�dos os locais onde praticam seus cultos.
N�o h� nenhuma explica��o satisfat�ria para essa reviravolta. Lutero muda. Em 1523, ainda acredita no poder da palavra, no Evangelho. Espera que alguns judeus se convertam ao cristianismo. A primeira explica��o cl�ssica � sua decep��o com a n�o ocorr�ncia da convers�o. Mas isso n�o basta.
A �nica coisa que digo � que � preciso ler os escritos de 1543 ao lado de seus outros textos daquele momento, contra seus advers�rios, contra o papa, que s�o at� mais violentos, pois ele pensa que o fim do mundo est� pr�ximo.
Como o sr. analisa a apropria��o do discurso antijudeu luterano pelo nazismo e ainda nos dias atuais?
N�o emprego o termo antissemita para Lutero, pois tem uma conota��o racial. N�o se trata de desculpar Lutero, mas de ser preciso na terminologia. Ele n�o prega um antissemitismo racial ou racista, como foi o caso nazista. Permanece na esfera do antijuda�smo crist�o, mesmo que se expresse de forma extremamente violenta.
Os nazistas n�o eram for�osamente crentes, tinham uma f� um pouco pag�, e n�o precisavam de Lutero para defender suas abomin�veis medidas. Mas havia pastores que estimavam que a religi�o deveria se aliar ao nazismo, e foram eles, mais do que os nazistas, que avaliaram que se deveria reeditar os escritos de Lutero.
Lutero era assombrado pela no��o de diabo, chegando a ver nas manobras de seus advers�rios obra de Sat�.
As no��es de diabo e do dualismo de for�as existem nos escritos fundamentais do cristianismo. Ainda hoje os evang�licos dizem que o diabo existe, n�o � s� um s�mbolo.
Lutero, como seus contempor�neos, insiste bastante na ideia de diabo. O problema � ele encarar seus advers�rios como instrumentos de Sat�. Quando os diaboliza, tira-lhes a humanidade e defende medidas ainda mais duras contra eles.
Por outro lado, penso que hoje n�o se reconhece mais o mal. Quando o Estado Isl�mico ou outra organiza��o comete um atentado, as pessoas dizem que � obra de desequilibrados. Para mim, trata-se de uma forma de negar o mal. A for�a de Lutero est� em reconhecer que existe o mal. E a fraqueza, em dizer "n�s somos instrumentos de Deus, e os outros, de Sat�".
O que mudou para que cat�licos e protestantes celebrem em conjunto os 500 anos da Reforma?
H� uma comemora��o comum, mas, evidentemente, as �nfases s�o um pouco diferentes. Os cat�licos n�o se alegram for�osamente pela divis�o. Os protestantes tamb�m n�o, mas sim pela contribui��o dada por Lutero ao cristianismo.
Os cat�licos t�m hoje, mais do que antes, tend�ncia em dizer que Lutero era tamb�m um homem de f�. Certamente houve excessos, sua mensagem teve consequ�ncias que ele pr�prio n�o desejava, mas hoje cat�licos e protestantes est�o mais pr�ximos do que antes.
O que provocou essa aproxima��o?
H� um progresso do di�logo ecum�nico. Em 1999, assinou-se a declara��o comum sobre a justifica��o pela f�, que j� mostrava que, no fundo, os dois lados concordavam. Esse di�logo ecum�nico avan�a em paralelo ao progresso nas pesquisas sobre Lutero.
A percep��o de Lutero hoje mudou?
Penso que a percep��o hoje sobre ele � mais nuan�ada, como procurei demonstrar na biografia. Os protestantes n�o v�o mais dizer que � o seu her�i sem medo, sem defeitos e sem reprova��es. Os cat�licos n�o o consideram mais como um her�tico e conseguem enxergar suas intui��es teol�gicas fundamentais, o lugar dado ao Cristo. Ao mesmo tempo, h� sensibilidade a seus excessos. H� declara��es do protestantismo sobre a vis�o de Lutero acerca dos judeus.
FERNANDO EICHENBERG � jornalista em Paris.
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