As tr�s vezes em que a filha de Get�lio Vargas viu o pai chorar
RESUMO Nestas passagens de "Get�lio Vargas, Meu Pai", a filha do pol�tico que dirigiu o Brasil com m�o de ferro relembra tr�s ocasi�es em que ele chorou. O trecho integra a segunda parte do livro, composta de escritos in�ditos acrescidos � obra publicada originalmente em 1960. A Objetiva lan�a a nova vers�o no dia 30/6.
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O presidente americano Roosevelt (na frente) e Get�lio Vargas (atr�s, de gravata) percorrendo as ruas de Natal (RN) at� a Base A�rea de Parnamirim |
Tr�s vezes em minha vida vi meu pai chorar. Ele era duro. Dizia-me sempre que o estoicismo era sua escola. �s vezes, quando nada tinha para fazer, n�s nos reun�amos em torno dele para que ele nos lesse poesias. Sempre detestei ler poesia, mas sempre gostei de ouvir. De modo que aqueles momentos em que ele desfiava dentro de nossos ouvidos seus poemas prediletos eram momentos de verdadeiro prazer para mim. Ele era, sobretudo, "parnasiano", embora de gosto ecl�tico. Bilac, Augusto de Oliveira, Augusto dos Anjos e uma centena de outros fiquei conhecendo apenas atrav�s de sua palavra c�lida e serena. Lia pausadamente como quem estivesse sentindo, outra vez, a mesma emo��o da primeira leitura. Mas voltemos �s tr�s crises a que assisti.
A primeira foi num dia 1� de janeiro. N�o lembro bem, mas deve ter sido em 32 ou 33. Era meu primeiro R�veillon. Dancei at� de madrugada. Deviam ser quatro horas da manh� quando cheguei com meus tios Walder Sarmanho e senhora. Deitei-me como algu�m que realizou alguma coisa, feliz por dormir; sonhava ainda com meus triunfos de broto quando vejo a porta de meu quarto se abrir de mansinho. Era meu tio. Disse-me: "N�o te assustes, mas te veste e vem comigo". "Por qu�?", indaguei. "Luthero acaba de sofrer um acidente, parece que grave, mas est� vivo e no hospital Pedro Ernesto. � ainda muito cedo para prevenir a Darcy e o Get�lio, de modo que traz os sapatos na m�o para n�o despertar ningu�m." [...]
Meus pais chegaram. Minha m�e me repreendeu por n�o lhe ter avisado e me mandou para casa, para dormir. Nesse momento Luthero acorda de seu torpor e entra em uma esp�cie de del�rio. Canta, fala, debate-se. Resolvi ficar um pouco mais. Virei-me em dire��o a meu pai e vi duas l�grimas correndo de seus olhos. Era a primeira vez que eu o via sentimental a esse ponto. Perguntei o porqu� e ele me respondeu: "O Pedro Ernesto ao me dar a not�cia me disse que havia tr�s hip�teses: morte imediata, derrame cerebral ficando ele inutilizado ou cura em 72 horas". Vi em suas l�grimas o temor de perder seu primog�nito. [...]
A segunda vez ocorreu muitos anos depois, eu j� estava menos crian�a, mais madura, mais experiente. Minha m�e adoeceu. Um dia, meu pai a encontrara quase desmaiada. Eu estudava para meus exames quando papai me chamou para recuper�-la. Depois de v�rias tentativas para despert�-la, resolvi chamar um m�dico e os deixei a s�s. Quando voltei havia l�grimas nos olhos de meu pai. Mas desta vez eu nada perguntei. O m�dico chegou e disse que era apenas necess�rio deix�-la dormir, n�o havia perigo.
A terceira vez foi quando morreu meu irm�o mais mo�o, Get�lio J�nior. [...]
Durante algum tempo s� tinha dele not�cias boas. At� que nesse dia de janeiro de 1943 era ele quem me telefonava. Por sua voz notei que algo de grave se passava, mas nada pude apurar. Disse-me: "Eu estou doente na casa de um amigo. Mas cala a boca e n�o diz nada a ningu�m. � s� pra ti. Estou com qualquer coisa nos p�s e n�o posso mais caminhar. Fala com meu m�dico depois, mas n�o diz nada a mam�e". [...]
Get�lio Vargas, Meu Pai |
Alzira Vargas Do Amaral Peixoto |
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No dia seguinte recebo a not�cia de que estava com "p�lio". [...] Altamente perigoso na idade dele, 24 anos, e de um car�ter violento. Pouco depois, outro telefonema me dizia que ele j� tinha desordem no falar. A�, n�o tive outro rem�dio e contei tudo. Minha m�e, � claro, n�o dormiu e, �s cinco da manh�, tomou um avi�o militar e foi para junto dele. Meu pai n�o podia. Devia ser recebido oficialmente pelo governo do Estado [de S�o Paulo], receber homenagens militares, inaugurar uma exposi��o e tudo isso em horas previamente marcadas.
Eu passei a noite em claro. Foi meu pen�ltimo apelo a Deus. Dizia para mim mesma: "Se eu ficar quieta e sem dormir ele estar� ainda vivo amanh� e se ainda estiver vivo eu vou salv�-lo".
Cheguei a S�o Paulo duas horas depois de minha m�e. Encontrei-a em prantos em um quarto, dizendo que n�o tinha mais esperan�as. [...]
Papai, livre de seus compromissos oficiais, chegou. Depois de algumas palavras de ternura �s quais meu irm�o mal podia responder, chamou-me e disse: "O Roosevelt dentro de cinco dias passa por Natal e quer ter um encontro comigo. Ele vem secretamente de Casablanca, onde esteve com o Churchill, mas eu n�o posso deixar meu filho assim". Respondi-lhe: "Vai, pode ir tranquilo. Mam�e e eu ficamos aqui. Eu n�o volto enquanto ele n�o ficar bom. O senhor n�o pode deixar de ir"�. Houve o encontro em Natal. Mas queria ser chamado de volta ao menor sinal de piora. Roosevelt havia sido v�tima do mesmo mal que fulminou o meu irm�o. A guerra estava em pleno apogeu. N�o era poss�vel que ele embarcasse preocupado. Disse a meu irm�o, que ainda estava plenamente l�cido: "Quando papai chegar para se despedir, diz a ele que tu est�s te sentindo bem e deseja-lhe boa viagem. Depois eu te explico". E assim foi.
Est�vamos em fins de janeiro e, embora um dos m�dicos assistentes me tivesse dito que a doen�a j� atingira o bulbo, recusei admitir a derrota. [...] Decidimos buscar um pulm�o de a�o. Foi dif�cil achar. Conseguimos um na Argentina por interm�dio do sr. Eliezer Magalh�es. Mas quando chegou j� era tarde! J� havia atingido o bulbo. Veio a visita da sa�de e ele quis ver seus amigos. Entraram todos como uma despedida. Meu marido [...] chamou-me e me disse: "� melhor avisar seu pai". Reagi. "Ele n�o vai morrer!" "Pode ser que n�o, mas se for acho que ele preferiria estar presente." Telefonei e disse a papai que viesse. Getulinho come�ara a delirar desde a v�spera e eu n�o queria que fosse verdade.
Papai chegou em tempo para ser reconhecido e assistir a sua agonia e morte. Era o dia 2 de fevereiro. Pouco mais que uma semana, eu me recusava a reconhecer minha primeira derrota. Pensava que o pudesse salvar. Quando minha m�e em prantos me chamou para v�-lo pela �ltima vez, recusei. Queria me lembrar dele como sempre o havia visto, vivo. Mas n�o foi a� que meu pai chorou.
Quando, fugindo das cerim�nias do vestir, do preparar, entrei em uma das salas, encontrei meu pai conversando com os m�dicos e agradecendo-lhes a dedica��o e o interesse por seu filho. Haviam feito tudo o que era poss�vel. J� me ia retirar da sala quando papai, virando-se para um dos m�dicos reconhecidamente cat�lico e crente, perguntou-lhe: "O senhor que � cat�lico praticante e tamb�m � m�dico talvez possa responder a uma minha pergunta: 'Quando � que a alma entra e quando � que sai do corpo?'".
Sa� do quarto para n�o ouvir a resposta que seria t�o vaga quanto os nossos conhecimentos sobre o assunto. Evidentemente o doutor n�o conseguiu responder. Falou em sopro divino, falou que a alma � quem faz o corpo viver, falou em todas as teses j� debatidas por todos os fil�sofos e... Ficou assim. Ele assentiu com a cabe�a e n�o tratou mais do assunto. [...]
Seguiu-se um per�odo infernal em nossas vidas. Minha m�e, que sempre fora uma das mais belas e elegantes de nosso meio, entregou-se ao mais cruel desespero. Ensimesmada, passou todo um ano sem sair sequer de seu quarto. Como e quando eu nunca soube, mas algu�m havia sussurrado em seus ouvidos que Getulinho havia sido v�tima de um "trabalho" contra meu pai. Como ambos possu�am o mesmo nome, Getulinho absorvera o malef�cio destinado a Get�lio e [ela] afastou-se de meu pai. Pela primeira vez passaram a dormir em quartos e hor�rios separados, eles que sempre haviam compartilhado o mesmo leito. Ela, que sempre fora o aguilh�o que o impulsionava para a frente, faltara-lhe no momento mais terr�vel de sua vida.
Preocupada em recuper�-la esqueci-me, durante algum tempo, de meu pai, de meu servi�o e de meu marido. At� que um entardecer, um assunto urgente me fez entrar intempestivamente no gabinete de meu pai. Encontrei-o s�, um monte de pap�is que deviam ser assinados � sua frente, e ele, olhando o vazio, permitiu que duas l�grimas lhe corressem pelo rosto. Assustou-se quando me viu e fingiu ser um resfriado. Tamb�m fingi n�o ter visto. Dei-lhe o recado urgente e depois me sentei a sua frente como se fosse despachar, como de costume. Senti sua solid�o. De repente, como quem n�o quer saber, fiz-lhe a seguinte pergunta ing�nua: "Papai, vov� foi muito severa contigo?". Levantou a cabe�a que havia voltado para seus decretos e me disse: "Foi. Por que voc� quer saber, sua bisbilhoteira?". Respondi: "Porque o senhor tem tanto medo de ser amado, ou, por outra, de se entregar, que deve ter havido alguma coisa na sua inf�ncia que o reprime de mostrar suas emo��es".
N�o sei se meu pai derramou outras l�grimas al�m destas. Nem mesmo sei se alguma vez chorou por mim. Quando estive gravemente doente, quando me operei, quando fiquei noiva, quando me casei e parti, quando por quest�es matrimoniais e de servi�o me afastei dele. Nada sei porque n�o vi. Espero que sim. O que sei � que todas as vezes em que ficava longe dele muito tempo, me chamava de volta.
1. Em outra vers�o do epis�dio: "Tanto ele como meu marido deveriam regressar aos seus respectivos postos. Meu pai chamou em segredo meu marido e disse-lhe que deveria encontrar-se com o presidente Roosevelt, em Natal, em sigilo. Nada poderia transparecer antes".
ALZIRA VARGAS (1914-92) filha de Darcy e Get�lio Vargas, foi auxiliar de gabinete da Presid�ncia da Rep�blica e respons�vel pelo arquivo de seu pai.
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