Filha de Jos� Wilker relembra encontro do pai com Clarice Lispector
Rio de Janeiro, 1965
Faz tr�s anos que meu pai morreu. � imposs�vel me aproximar de qualquer coisa que diga respeito a ele sem abra�ar o fato de que ele n�o est�. Tem uma frase do poeta Mariano Marovatto que muito me marcou, porque foi lida no momento em que a aus�ncia do meu pai se fez presente: "estar ausente do lugar em que se deveria estar � estar em todos os outros lugares".
Destaco outro trecho que s� agora, passados esses tr�s anos, me chamou aten��o em seu texto "Sobre Muletas e Ep�grafes": "A tentativa de abarcar todas as possibilidades de casa, seja ela uma pessoa, um trem, uma cidade, um vulc�o, uma ilha, um chope. � a percep��o de que a casa � o mundo, de que o amor/casa � um conceito que se expande, feito o universo".
Pego emprestada, a partir desse ponto, essa ideia de casa que Mariano apresentou, mas que l� atr�s, no meio da confus�o que a imensa concretude da falta me provocou, deixei passar.
Meu pai foi um homem de muitas casas, foi at� um homem sem casa alguma –adorava contar que, na �poca da faculdade de ci�ncias sociais na PUC-Rio, morou na Vila dos Diret�rios, na pr�pria universidade, dormindo num sof� enrolado com uma bandeira do Brasil.
Ele tinha muito amor por uma outra casa, sua �ltima, de tr�s andares, no alto do Jardim Bot�nico, onde vivia rodeado de livros, filmes, obras de arte, orqu�deas e dos mais variados cacarecos e objetos engra�ados. Agora que ele n�o est�, essa casa se tornou de outra pessoa. Suas coisas se espalharam por a�, e ele realmente chegou a todos os lugares. Sua verdadeira casa era o seu trabalho.
Seu amor pelo of�cio que escolheu era algo bonito de se ver. Ele dizia que nunca havia sonhado em ser ator, que isso simplesmente lhe acontecera. Acho que atuava para suportar a sandice que � estar vivo.
CCPF/Funarte | ||
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Fauzi Arap, Jos� Wilker, Glauce Rocha, Clarice Lispector e Dirce Migliaccio em 1965, no Rio |
Ele era extremamente c�tico, e talvez exatamente por isso fosse tamb�m t�o encantadoramente engra�ado. Todos os trabalhos lhe pareciam ser o primeiro. Mas n�o sei dizer ao certo qual foi seu primeiro trabalho. (�s vezes, sinto que, se esgotar tudo que h� para saber sobre meu pai, talvez ele diminua de tamanho, ou fique mais distante de mim). Locutor de radionovela no Recife? A ponta no longa "A Falecida", de Leon Hirszman, em 1965?
No final desse mesmo ano de 1965, estreava no Teatro Maison de France, no Rio, "Perto do Cora��o Selvagem", montagem de um texto de Clarice Lispector.
Dirigida por Fauzi Arap, contava em seu elenco com Glauce Rocha, Dirce Migliaccio, o pr�prio Fauzi e meu pai, ent�o com 20 anos, talvez menos –h� diverg�ncias em rela��o a sua data de nascimento; nunca me preocupei em perguntar; para mim, basta o 20 de agosto de, talvez, 1945–, e mais magro n�o poderia ser.
Imagino esse menino delgado dando seus primeiros passos no palco. Antes do Teatro Ipanema, antes de "A China � Azul", antes de Rubens Corr�a e d'"O Arquiteto e o Imperador da Ass�ria", antes de Vadinho, de Lorde Cigano, de Roque Santeiro.
Ele me contou que tudo era muito novo no projeto, que as pessoas n�o sabiam muito o que esperar, e que foi uma surpresa quando montaram. "Acho que a plateia riu em dado momento", disse, lembrando que o elenco n�o tinha ideia de que aquela passagem poderia ser engra�ada.
Hoje, sou eu que atuo numa montagem de textos da Clarice. Gosto de imaginar que nos encontramos em cena, por meio dessas palavras. � esquisito falar, e n�o ler, Clarice, mas todo o processo de cria��o de "Brincar de Pensar" me ensinou que tamb�m � uma del�cia falar esse dialeto curioso.
Meu pai era outro que tinha um jeito bem particular de existir. Nos anos que passei em sua companhia, aprendi a "falar Jos�", o que inspirou muito a cria��o da Mar�lia, minha personagem de agora.
Ele era um jagun�o-menino que nunca perdia a piada –mesmo que n�o tivesse ningu�m para ouvi-la; esse cara que achava uma del�cia ser bobo, que n�o tinha medo de t�dio e que nunca parou de brincar.
S� ele mesmo para me fazer achar gra�a quando leio Clarice dizendo: "A vida n�o � de se brincar, porque em pleno dia se morre".
ISABEL WILKER, 32, atriz, encenou o espet�culo "Brincar de Pensar", do grupo Vulc�o, baseado em contos de Clarice Lispector.
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