Intelig�ncia artificial pode trazer desemprego e fim da privacidade
RESUMO Os benef�cios da intelig�ncia artificial se fazem ver em v�rias �reas. O mesmo vale, contudo, para as amea�as sopradas pelo turbilh�o tecnol�gico. Entre elas, segundo o autor, est�o a autodetermina��o das m�quinas, o desemprego e o fim da privacidade. A falta de uma ag�ncia reguladora global acentua o temor.
Gabriel Cabral/Folhapress | ||
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"Por muito agarrados que estejamos � vida, at� uma serpente hesitaria diante da eternidade", diz o personagem de Jos� Saramago no in�cio da "Hist�ria do Cerco de Lisboa". Mas a morte, como componente incontorn�vel da vida, pode estar com os dias contados.
Ray Kurzweil, cientista da computa��o, inventor e futurologista, autor de best-sellers sobre intelig�ncia artificial e sa�de, prev� que a vida eterna v� se tornar tecnicamente poss�vel a partir de 2029. Ou seja, em 12 anos.
O progn�stico poderia soar como desvario se Kurzweil n�o trabalhasse na �rea de inova��o de um dos chefes de fila da pesquisa sobre intelig�ncia artificial, o Google.
Al�m disso, ele est� envolvido em fa�anhas como o reconhecimento �tico de caracteres e a transmiss�o direta da linguagem falada para impressoras.
Da� � eternidade n�o h� muito mais que um passo –ao menos � nisso que acreditam os adeptos do transumanismo. O movimento tem se desenvolvido nos �ltimos 20 anos e procura melhorar o funcionamento do organismo humano por meio da engenharia gen�tica, das tecnologias da informa��o, da nanotecnologia molecular e da intelig�ncia artificial.
A humanidade, segundo os transumanistas, n�o � o �pice da evolu��o. A ci�ncia e a tecnologia podem nos fazer p�s-humanos, ampliando nossas capacidades muito al�m daquilo que um humano atual pode imaginar.
Transcend�ncia ou morte. Eis o lema fundamental do transumanismo. De fato, nossa intelig�ncia pode superar a maioria das atuais limita��es biol�gicas. Nos pr�ximos 20 anos, ci�ncia e tecnologia provocar�o em n�s e em nossa organiza��o social muito mais mudan�as do que as registradas nos �ltimos 300 anos.
M�QUINA INTELIGENTE
Na base de todas essas transforma��es est� uma diferen�a crucial entre o progresso t�cnico contempor�neo e tudo que o precedeu.
Se a Revolu��o Industrial promoveu a substitui��o da for�a animal e, posteriormente, do pr�prio trabalho humano por m�quinas, agora � nossa intelig�ncia que vai sendo trocada por dispositivos eletr�nicos cada vez mais potentes.
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O poder computacional desses aparatos dobra, em m�dia, a cada dois anos. Vejamos: o sequenciamento gen�tico custava US$ 100 milh�es em 2001 (R$ 240,7 milh�es, em valores de junho daquele ano) e US$ 10 milh�es em 2008 (R$ 16,3 milh�es, idem). Hoje, essas informa��es podem ser obtidas por US$ 1.000 (R$ 3.100).
Os seis pequenos ret�ngulos de sil�cio que, em 1958, permitiram ao Vanguard I (o quarto sat�lite lan�ado ao espa�o e o primeiro alimentado por energia solar) mandar informa��es � Terra custavam muitos milhares de d�lares por watt. Na d�cada de 1970, o pre�o tinha ca�do para US$ 100. Agora, a US$ 0,50, a energia solar j� compete com o carv�o. A Ag�ncia Internacional de Energia Renov�vel estima que ela baixe a US$ 0,05 ou 0,06 em oito anos.
Os dispositivos eletr�nicos, al�m disso, n�o se confinam a um setor ou a uma dimens�o da vida social; eles se combinam. Todos os objetos com que nos relacionamos se tornam meios de intensificar nossa conex�o a redes cada vez mais amplas.
A natureza exponencial (dada pela velocidade do aumento da capacidade computacional) e combinat�ria das tecnologias atuais faz com que as mudan�as sejam incontorn�veis e irrevers�veis.
Os ganhos reais e potenciais dizem respeito �s mais diversas �reas, da gera��o de energia � produ��o de bens materiais, da agricultura de precis�o aos autom�veis aut�nomos, da preven��o de doen�as � cria��o cultural, da organiza��o urbana �s finan�as e � circula��o de informa��o.
Ao mesmo tempo, por�m, ampliam-se a apreens�o e os alertas relativos aos riscos da evolu��o tecnol�gica, e eles partem de atores importantes. Alguns n�o hesitam em comparar esses riscos aos representados pelos artefatos nucleares e pelas mudan�as clim�ticas.
A diferen�a � que a corrida nuclear e as mudan�as clim�ticas est�o enquadradas por algum tipo de acordo e de governan�a global, mesmo que o resultado dessas iniciativas seja contest�vel.
AMEA�AS
Quanto ao avan�o da intelig�ncia artificial, n�o h� nenhuma coordena��o nem sequer para sinalizar as amea�as –dentre as quais destacam-se quatro. A primeira refere-se n�o tanto ao poder desse conjunto de tecnologias, mas, sobretudo, a sua autonomia.
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Nick Bostrom, professor de filosofia em Oxford (Inglaterra) e um dos expoentes do transumanismo, publicou em 2014 o livro "Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies" (Oxford University Press; superintelig�ncia - caminhos, perigos e estrat�gias), que se tornou best-seller nos Estados Unidos. Na obra, afirma que a superintelig�ncia "�, possivelmente, o mais importante e intimidador desafio que a humanidade jamais enfrentou".
Bostrom compara nosso uso da intelig�ncia artificial ao que faz uma crian�a brincando com uma bomba. O que est� em jogo, de acordo com ele, muito mais que uma explos�o, � nossa capacidade de manter a pr�pria condi��o humana.
Essa preocupa��o j� estava presente entre os pioneiros da intelig�ncia artificial, nos anos 1950. Eles haviam percebido que as m�quinas poderiam fazer muito mais do que simplesmente pensar numericamente. Eram (e, de fato, tornaram-se cada vez mais) capazes de deduzir e de inventar provas l�gicas.
Atualmente, elas v�o bem al�m. Podem aprender, e n�o s� a partir daquilo que n�s lhes ensinamos. Esse aprendizado tamb�m se baseia no rastreamento das informa��es que circulam nos meios digitais, uma imensid�o de dados interpretada por meio de algoritmos cada vez mais complexos e opacos.
� por causa desse rastreamento que voc�, ap�s escrever a um amigo dizendo que pretende ir a Santiago, passa a receber mensagens publicit�rias sobre passagens de avi�o e hospedagem no Chile.
O avan�o exponencial e combinat�rio do poder computacional difundido nos mais variados tipos de objeto n�o amplia s� a magnitude das informa��es coletadas. Amplia tamb�m, e sobretudo, a capacidade dos algoritmos de analisar e interpretar esses dados.
Sua geladeira saber� que voc� est� sem leite. Sua m�quina de lavar dir� qual o momento de menor consumo de energia no sistema ao qual voc� est� ligado. A temperatura dos ambientes poder� ser regulada em fun��o da presen�a ou da aus�ncia de pessoas em seu interior e � dist�ncia.
J� existem t�cnicas que permitem circunscrever a aplica��o de fertilizantes e agrot�xicos a necessidades espec�ficas de cada lote da unidade produtiva, por meio da interpreta��o de informa��es captadas por drones e decodificadas por poderosos algoritmos. Baterias de celulares ser�o recarregadas por sinais de r�dio, via wi-fi.
INTERNET DA ENERGIA
Est� emergindo uma internet da energia, que monitora o que os domic�lios, as f�bricas, os escrit�rios e as fazendas produzem a partir do Sol, dos ventos e da biomassa, distribuindo essa energia conforme as necessidades do conjunto dos usu�rios.
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Quem produzir mais energia do que consome tem cr�dito; quem produzir menos paga. S�o as chamadas "redes inteligentes", que compatibilizam no��es que o s�culo 20 sempre considerou antag�nicas: descentraliza��o e efici�ncia.
As virtudes da internet das coisas, o fato de que cada um dos bilh�es de objetos de nosso cotidiano vai sendo dotado de um protocolo de internet que o identifica e faz dele uma fonte de informa��o, a cognifica��o generalizada do mundo material, isso tamb�m se estende �s pessoas. � o que especialistas batizaram de computa��o afetiva.
A Apple, no in�cio de 2016, comprou a Emotient, empresa l�der em reconhecimento facial e que tem a ambi��o de detectar nossos estados emocionais. � a internet das emo��es. Voc� est� triste? O que posso fazer para que voc� melhore seu estado de �nimo?
Alguns dos estudiosos do tema sustentam que n�s somos a �ltima gera��o mais inteligente que as m�quinas.
Essa esp�cie de triunfo da intelig�ncia humana sobre ela mesma se apoia naquilo que o historiador Yuval Noah Harari, em seu rec�m-publicado "Homo Deus: Uma Breve Hist�ria do Amanh�" (Companhia das Letras), chama de o grande desacoplamento: "A intelig�ncia est� se desacoplando da consci�ncia".
At� h� pouco, apenas seres conscientes "podiam realizar tarefas que exigissem alto grau de intelig�ncia, como jogar xadrez, dirigir autom�veis, diagnosticar doen�as ou identificar terroristas".
COGNI��O SEM CORPO
J� temos, por�m, e teremos cada vez mais, uma intelig�ncia n�o apenas sem corpo como tamb�m desprovida de emo��es e sentido social e, no entanto, capaz de realizar tarefas complexas com mais efici�ncia que os humanos.
Gerd Leonhard, empreendedor e pesquisador, vai al�m no livro "Technology vs. Humanity: The Coming Clash Between Man and Machine" (Fast Future; tecnologia x humanidade: o embate vindouro entre homem e m�quina), publicado h� alguns meses. Ele sustenta que a intelig�ncia artificial representa uma dissocia��o entre nossa capacidade de interferir no mundo e as bases �ticas dessa interven��o.
A maior amea�a ligada � intelig�ncia artificial deriva do fato de que as m�quinas conseguem mimetizar nossos padr�es de comportamento �tico, mas, por defini��o, n�o podem e jamais poder�o se dotar de consci�ncia �tica. A tecnologia � um meio para atingir fins que s� podem estar fora dela.
Se m�quinas dotadas de intelig�ncia artificial ampliam seu poder de gest�o e de interven��o na sociedade e nos indiv�duos, h� o risco de que elas pr�prias definam as finalidades de suas a��es.
Assim, nossa condi��o humana passaria a depender cada vez mais de dispositivos com aptid�o para despertar em n�s sentimentos que nos definem, como nossa felicidade, nosso sentido de pertencimento e at� nossa libido.
Leonhard prop�e uma esp�cie de ag�ncia para proteger os seres humanos, um Conselho Global de �tica Digital. N�o se trata de esfor�o (v�o) para deter a expans�o das tecnologias digitais, mas sim para garantir que elas n�o comprometam aquilo que nos faz humanos.
Um exemplo? Nossa capacidade de desenvolver atividades �teis para os outros, de fortalecer nossa intera��o e, portanto, a pr�pria coes�o social. Em outras palavras, nosso trabalho.
DESEMPREGO
� justamente a� que entra a segunda grande amea�a representada pela intelig�ncia artificial.
Os mercados de trabalho est�o sofrendo mudan�as que respondem, em grande parte, pela espantosa reconcentra��o da riqueza nos pa�ses desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos.
At� pouco tempo atr�s, considerava-se que apenas trabalhos rotineiros e de baixa qualifica��o seriam deslocados pelo avan�o da computa��o. A intelig�ncia artificial, por�m, derrubou essa barreira protetora.
Num escrit�rio de advocacia, por exemplo, as m�quinas s�o muito mais eficientes na pesquisa de julgamentos passados e de artigos de lei que podem ajudar na argumenta��o de um caso espec�fico. Na medicina, a mesma ideia se aplica � interpreta��o de chapas radiol�gicas. A preciosa sabedoria dos taxistas n�o chega aos p�s do que um dispositivo inteligente � capaz de saber.
Claro que a revolu��o digital tamb�m cria empregos, sobretudo na intera��o entre homens e m�quinas. Mas ela o faz em volume menor que a Revolu��o Industrial, que, h� dois s�culos, come�ou a substituir as ocupa��es agr�colas.
N�o � que o trabalho v� subitamente desaparecer, como atesta a situa��o de quase pleno emprego nos Estados Unidos. O mercado de trabalho, contudo, vai consolidando um padr�o polarizado. A minoria dos detentores de conhecimentos apropriados � era digital consegue ganhos de renda, enquanto a grande massa dos assalariados aproxima-se da pobreza e, sobretudo, da irrelev�ncia.
A capacidade de aprendizagem das m�quinas e a multiplica��o dos rob�s torna cada vez mais f�cil substituir o trabalho humano.
Atualmente, j� se pode robotizar quase inteiramente o trabalho nas cadeias de fast-food, com as vantagens de maior padroniza��o do produto, melhor higiene e amortiza��o do investimento em menos de dois anos.
Se algu�m imagina que isso se limita aos pa�ses desenvolvidos, vale lembrar que a China j� � o maior mercado consumidor de rob�s do mundo –e vai se tornando tamb�m o principal produtor.
DESIGUALDADE
Carl Frey e Michael Osborne dirigem o Programa de Tecnologia e Emprego da prestigiosa Oxford Martin School, no Reino Unido. Seus trabalhos mostram que o ritmo dessas metamorfoses se acelera, que a lista de setores por elas atingidos se amplia e que, diferentemente das inova��es t�picas da era industrial, os benef�cios das mudan�as tecnol�gicas n�o s�o, nem de longe, amplamente distribu�dos.
Levou 119 anos para que o fuso industrial, uma vez inventado, se tornasse padr�o na tecelagem. A internet difundiu-se em menos de uma d�cada, e os objetos conectados em rede, que j� eram 13 bilh�es em 2013, totalizar�o nada menos que 500 bilh�es em 2030.
As consequ�ncias sobre os empregos ser�o devastadoras, mostram Frey e Osborne. Est�o em risco 47% dos postos de trabalho nos EUA, 57% na m�dia dos pa�ses, desenvolvidos, da OCDE (Organiza��o para a Coopera��o e Desenvolvimento Econ�mico), 69% na �ndia, 77% na China e 85% na Eti�pia. A destrui��o tende a ser maior onde a estrutura ocupacional � mais distante da economia do conhecimento.
Tais preocupa��es n�o se confinam ao universo dos que desconfiam da tecnologia. Elas s�o hoje expressas por alguns dos mais destacados protagonistas contempor�neos da cultura digital.
Em 2015, o f�sico Stephen Hawkin e os empres�rios Elon Musk (criador da Tesla e um dos mais reconhecidos inovadores do mundo) e Bill Gates publicaram documento com forte alerta sobre as amea�as trazidas pelo avan�o da intelig�ncia artificial. A principal delas est� na perspectiva de dr�stica redu��o de postos de trabalho.
Em fevereiro deste ano, Gates sugeriu que os propriet�rios de rob�s deveriam pagar um imposto que serviria ao treinamento e � reinser��o dos trabalhadores deslocados pela intelig�ncia artificial.
COMPARTILHAMENTO
A terceira grande amea�a representada pelo avan�o da intelig�ncia artificial refere-se � economia do compartilhamento.
Em 2010, Rachel Botsman e Roo Rogers publicaram um livro sobre a ascens�o do consumo colaborativo. Contavam, encantados, a hist�ria dos jovens que tiveram a ideia de hospedar em casa pessoas que n�o encontravam lugar em hot�is durante um congresso de design, em San Francisco, em 2007.
A partir desse epis�dio, eles criaram um dispositivo digital que resultou no Airbnb. A novidade n�o era, claro, o colch�o de ar e o "bed and breakfast" [cama e caf� da manh�], abreviados no nome daquela que se tornou a principal central de reservas de hospedagem no mundo atual.
O fascinante na iniciativa era a possibilidade, aberta pela conectividade generalizada, de que as pessoas colocassem � disposi��o umas das outras bens e servi�os dos quais n�o necessitavam e que poderiam ser compartilhados.
Os resultados seriam a amplia��o da renda de quem oferecia bens para compartilhamento, os pre�os mais baratos do que os cobrados pelos mercados convencionais e o potencial de economizar recursos materiais, com benef�cios crescentes para o meio ambiente.
O segredo estava em conseguir que indiv�duos que n�o se conheciam confiassem uns nos outros devido �s refer�ncias digitalizadas. Da� o t�tulo do livro de Botsman e Rogers: "O que � Meu � Seu" (Bookman). Como a revolu��o digital permite a universaliza��o da pr�tica, o resultado seria o aumento generalizado da prosperidade.
A marca distintiva da economia moderna, a propriedade, seria ent�o substitu�da pelo acesso. Por que possuir um carro se posso pegar carona? Por que comprar um jornal se as not�cias est�o dispon�veis de forma aberta e gratuita na internet?
A era digital parecia prestes a realizar os mais nobres ideais de coopera��o social e compartilhamento que os movimentos oper�rios perseguem desde o s�culo 19, sem o risco da centraliza��o e da burocracia que marcaram o socialismo real.
O consultor e futurologista Jeremy Rifkin chega a prever "o eclipse do capitalismo" no livro "Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo" (M. Books).
Para Rifkin, o capitalismo ser� superado n�o por um tipo de tomada do Pal�cio de Inverno, a��o pela qual os bolcheviques, em 1917, iniciaram a forma��o da Uni�o Sovi�tica, mas pelo triunfo da coopera��o social descentralizada, cujo caminho ter� sido aberto pela economia digital.
J� Yochai Benkler publicou em 2011 o livro "The Penguin and the Leviathan", com o subt�tulo "How Cooperation Triumphs over Self-Interest" (Crown Business; o pinguim e o leviat�: como a coopera��o supera o autointeresse).
A euforia emancipat�ria, contudo, teve vida curta. Em pouco tempo, aquilo que aparecia como express�o virtuosa de coopera��o direta e descentralizada entre indiv�duos aut�nomos revelou-se um dos mais importantes epicentros da acumula��o financeira.
Pior: a ambi��o de compartilhamento na hospedagem acabou por contribuir para a degrada��o de cidades como Amsterd�, Barcelona, Berlim, Paris e Nova York.
CONCENTRA��O
Em vez de dividirem com os outros os espa�os n�o usados, propriet�rios venderam seus im�veis a companhias interessadas em explorar a loca��o. Os locais figuravam como bens pessoais, mas pertenciam a empresas.
Por causa disso, v�rias cidades adotaram legisla��es para impedir a desfigura��o de suas �reas tur�sticas, como registra o norte-americano Tom Slee em "What's Yours Is Mine: Against the Sharing Economy" (OR Books; o que � seu � meu: contra a economia do compartilhamento).
N�o importa se alojamento, transporte, servi�os de limpeza ou refei��es r�pidas; Slee mostra que a economia do compartilhamento converte-se sistematicamente em seu contr�rio. Ou seja, em lugar de distribuir oportunidades, ela vem dando lugar a uma concentra��o crescente de renda e de poder.
A quarta grande amea�a trazida pela intelig�ncia artificial refere-se � privacidade. Michael Sandel, professor de filosofia pol�tica em Harvard, pergunta-se se n�o � perigoso estarmos nos aproximando de um cotidiano em que a vigil�ncia –de governos, empresas de que compramos, companhias de seguro e empregadores– torna-se cada vez mais intrusiva.
ADEUS � PRIVACIDADE
As companhias de seguro j� come�am a propor a clientes que vistam dispositivos capazes de acompanhar sua vida cotidiana (exerc�cios f�sicos, consumo de �lcool e tabaco, alimenta��o, sono). A partir dos dados coletados pela indument�ria, os valores da ap�lice seriam elevados ou reduzidos. Segundo Sandel, a troca da privacidade pela conveni�ncia levanta quest�es �ticas que deveriam pautar as decis�es de empresas e indiv�duos. E se um empregador exigir que seu funcion�rio use o dispositivo?
Mas o pior � que estamos o tempo todo fornecendo o que h� de mais precioso no mundo contempor�neo, ou seja, a informa��o, de forma gratuita e inteiramente involunt�ria. Em uma fala no TED (confer�ncia sobre tecnologia, entretenimento e design), a jornalista especializada em tecnologia Marta Peirano mostra que, sem que saibamos, nossos celulares e todos os dispositivos conectados de que nos servimos est�o produzindo informa��es processadas por algoritmos cada vez mais poderosos.
Essas informa��es n�o s�o s� utilizadas por servi�os de intelig�ncia mas tamb�m por empresas que nos oferecem pontos por compras e que conhecem melhor nossos h�bitos que nossos familiares. Diferentemente das empresas telef�nicas, a maneira como esses dados s�o usados n�o � objeto de regula��o estatal.
A privacidade, muito mais que um instrumento, � um valor. A ideia t�o frequente de que o cidad�o honesto nada tem a temer com a transmiss�o � rede dos dados de sua vida pessoal passa por cima justamente de um dos mais importantes fundamentos �ticos da vida contempor�nea, que � o poder do indiv�duo sobre sua vida pessoal.
N�o foi � toa que, em fevereiro, a Alemanha proibiu a comercializa��o da boneca Cayla, que ouvia e dialogava com as crian�as. Enquanto fazia isso, ela armazenava as informa��es do di�logo –e o fazia sem o conhecimento dos pais. A preocupa��o das autoridades alem�s n�o impediu que o produto continuasse � venda nos EUA.
DISCUSS�O �TICA
Em suma, nunca foram t�o poderosos os meios t�cnicos para melhorar a sa�de humana, permitir que as pessoas levem adiante trabalhos interessantes, favorecer a coopera��o social e ampliar a soberania dos indiv�duos sobre suas vidas e suas decis�es. Ao mesmo tempo, nunca foram t�o avassaladoras as amea�as que emergem da concentra��o de riqueza e de poder ligada a esses meios t�cnicos.
� fundamental que se amplie a discuss�o p�blica (sobretudo a de natureza �tica) sobre esses temas, pois � da� que vir�o pol�ticas e iniciativas empresariais e cidad�s que poder�o colocar a intelig�ncia artificial a servi�o do florescimento da esp�cie humana.
RICARDO ABRAMOVAY, 63, professor s�nior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, � autor de "Muito Al�m da Economia Verde" (Planeta Sustent�vel).
CAROLINA DAFFARA, 32, � infografista da Folha.
GABRIEL CABRAL, 28, editor-assistente de Imagem da Folha e fot�grafo.
THEA SEVERINO, 36, editora de Imagem da Folha.
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