Jac� Guinsburg, 95, rev� seus 70 anos na edi��o de livros
RESUMO Um dos mais celebrados editores do pa�s, Jac� Guinsburg segue � frente da Perspectiva, refer�ncia em artes e ci�ncias sociais, ao mesmo tempo em que lan�a floril�gio de apontamentos sobre o teatro. Na entrevista, lembra a participa��o do pai na Primeira Guerra e os anos de forma��o, entre cultura �diche e esquerda armada.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
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Jac� Guinsburg, na sede da Editora Perspectiva |
No livro de contos "O que Aconteceu, Aconteceu" (Ateli�,), Jac� Guinsburg descreve como um certo Saul atua na defesa armada de uma r�dio que transmite o com�cio em que "a voz do secret�rio-geral do Partido seria ouvida no pa�s inteiro". Saul era ele mesmo, a r�dio, a Cruzeiro do Sul, e o com�cio, o de Luiz Carlos Prestes, em S�o Paulo, em 1945.
Mais de 70 anos depois, o editor da Perspectiva, um dos mais respeitados do pa�s, fala desse radicalismo de juventude, da coletividade judaica e da longa dedica��o ao of�cio de publicar livros. Tamb�m cr�tico e professor de teatro, ele avisa, antes de mais nada, que � jornalista. "Vou falar como o outro: 'O sr. sabe com quem est� falando?'. [Mostra carteirinha] Est� aqui, 1951, no sindicato. O meu n�mero � 1.031."
Ao longo de duas hora e meia, foi sempre ir�nico, brincalh�o. Aos 95 anos, recebeu a Folha na sede da editora na avenida Brigadeiro Lu�s Ant�nio, que antes foi sua resid�ncia. Est� com dificuldade para andar, mas n�o para recordar, falar e contar piadas, tanto autodepreciativas como sobre amigos que editou.
Evita se gabar dos 1.200 t�tulos da Perspectiva, de Umberto Eco a Haroldo de Campos. Chama mais a aten��o para o fato de que deixou escapar o best-seller "O Nome da Rosa", "uma grande falha". Como autor, lan�ou em dezembro "Boca de Cena: Marca��es de um Espectador" (Edusp), colet�nea de textos sobre teatro, e acaba de voltar �s livrarias com "O Naturalismo", que organizou pela Perspectiva.
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Folha - O sr. veio com tr�s anos, quatro?
Jac� Guinsburg - Cheguei com tr�s anos, pouco depois da Revolu��o de 1924. Eu tinha nascido em 1921 na Bessar�bia, que � atualmente a Mold�via. Meu pai queria ir para os Estados Unidos, mas fecharam a imigra��o. Fui direto para Ol�mpia, no interior. Eu tinha um tio que desde antes de 1914 vivia l�, naquele tempo o faroeste paulista. Tinha at� um cara que era chamado de Lampi�o Paulista [An�bal Vieira].
O sr. foi alfabetizado em �diche ou em portugu�s?
Em portugu�s. O �diche era a l�ngua que se falava na minha casa. Meu pai, al�m do �diche, falava russo, porque foi soldado na Primeira Guerra. Hoje utilizo v�rias l�nguas, mas a �nica em que sou capaz de escrever � o portugu�s. Ler eu leio v�rias. Leio e escrevo ingl�s, franc�s. Leio � boa moda brasileira, quer dizer, o que n�o sei ou vou ao dicion�rio ou invento. [risos] Atualmente falo pouco �diche, porque n�o tenho com quem falar. Esse grupo praticamente desapareceu. Mas no meu tempo de jovem ainda havia uma forte imigra��o que falava o �diche. Al�m disso, eu frequentava clubes culturais e pol�ticos cuja cultura era em �diche. E era uma grande cultura.
No Bom Retiro?
Era no Bom Retiro, mas n�o s�. Era tamb�m no Rio, no Recife. Eram clubes geralmente progressistas, de esquerda, muitos deles ligados ao Partid�o [Partido Comunista Brasileiro]. Esse fen�meno refletia o que acontecia na Europa Oriental. O grupo judaico na Europa Oriental, entre outras correntes, teve o Bund, que reivindicava o status de minoria nacional nos pa�ses em que viviam. N�o era sionista, mas onde tem dois judeus tem tr�s partidos, ent�o logo surgiram tamb�m no sionismo correntes de esquerda e de extrema esquerda. A extrema esquerda foi respons�vel pelo desenvolvimento dos kibutzim em Israel, col�nias coletivas. A grande massa populacional judaica n�o estava na Alemanha, mas na Europa Oriental, Pol�nia, R�ssia, Litu�nia, Rom�nia, Hungria. E dentro dela voc� vai encontrar todas as gamas das lutas e das defini��es ideol�gicas modernas. Todas. Assim como voc� encontra toda a literatura em �diche, traduzida do russo, do franc�s. "O Capital", por exemplo, de Marx.
Como foi a evolu��o do seu pensamento pol�tico?
Sempre tive um p� de um lado e do outro. Eu frequentava, quando jovem, por raz�es familiares, esse lado progressista. Normalmente era gente ligada � ultraesquerda sionista e principalmente ao Peceb�o. E l� havia teatro, havia agitprop, tudo o que voc� pode pensar existia. As discuss�es culturais n�o eram somente sobre temas espec�ficos. Toda a pol�tica brasileira era discutida. Quando o Estado Novo come�ou a cair, um dos lugares onde houve grande agita��o e trabalho pol�tico foi justamente l�. O [escritor] Jorge Amado saiu de uma conversa com o [l�der do PCB Luiz Carlos] Prestes e veio dar uma palestra no Progresso, que deu origem � Casa do Povo, na rua Tr�s Rios.
Por que se chama Casa do Povo?
As correntes socialistas na Europa fundavam esses centros culturais chamados Casas do Povo. Aqui ela foi constru�da em mem�ria dos seis milh�es de judeus mortos, com contribui��es de gente da coletividade. Mas n�o era uma coisa desintegrada da vida brasileira, pelo contr�rio. Passavam por ali n�o s� os principais expoentes da cultura �diche como os da cultura brasileira. A rela��o era de homem para homem. E n�o � que havia de vez em quando alguma coisa. A vida pol�tica era um dos n�cleos. Foi nesse meio que eu me eduquei. O outro foi a rua. Quer dizer, eu n�o estudei numa escola religiosa, n�o vivi a vida de um fam�lia religiosa. Meu pai era um homem que conservava algumas pr�ticas, mas o que ele viu eu n�o vi. Ele foi prisioneiro de guerra, teve uma vida muito interessante e sabia contar hist�rias como ningu�m. Era um homem que tinha vivido o mundo.
Ele foi soldado pela R�ssia?
Foi. A hist�ria dele, que h� muitos anos eu me prometo escrever e acabo n�o escrevendo, � muito bonita. Os pais n�o queriam que fosse para a guerra, isso em 1915, ent�o arrancaram todos os dentes de baixo dele. Mesmo assim, ele disse que queria ver a guerra e se apresentou. E foi para a frente, lutou, ficou prisioneiro nos Alpes, trabalhava nos bondinhos, nos telef�ricos. Fugiu sete vezes.
Nos Alpes?
Numa das fugas que ele contava, com tr�s ou quatro companheiros, um ou dois rolaram. Ele tem uma vida desse tipo. Eu, quando menino, ficava fascinado pelas hist�rias. N�o estou contando nem pr�ximo. A situa��o era terr�vel. Por exemplo, diz ele que, quando foram libertados, no in�cio de 1919, n�o havia comida. Os austr�acos forneceram para eles, no trem, p�o feito de serragem. Muitos morreram. Essas eram as hist�rias que ele contava. Ao lado de outras, como ser denunciado pelos camponeses.
Por ser judeu? Foi por isso que ele saiu, por persegui��o?
Ele saiu porque a situa��o econ�mica l� era dif�cil. A persegui��o estava presente, mas os judeus da Bessar�bia eram um pouco diferentes, mais pr�ximos do mundo do campo, mais rudes, menos dados � cultura religiosa. A primeira imigra��o de judeus para o Brasil, na d�cada de 20, veio principalmente da Bessar�bia.
Qual foi a sua educa��o?
Fui alfabetizado em Santos, depois vim para S�o Paulo e estudei no grupo escolar Regente Feij�, que existe na avenida Tiradentes at� hoje. Quando estourou a Revolu��o de 30, estudava l�. Eu me lembro do dia da revolu��o, depois da famosa batalha de Itarar�... Voc� sabe que o [jornalista] Apar�cio Torelly tomou o nome de Bar�o de Itarar� por causa dela, a batalha que nunca houve? [risos] Quando as tropas do [presidente] Washington Lu�s estavam dispostas em ordem de combate e as do Get�lio [Vargas] tinham vindo do Sul, os militares deram o golpe no Rio e depuseram Washington Lu�s. E o Get�lio se proclamou vitorioso nessa batalha. [risos] Da� o Apar�cio tomou o nome. Figura muito engra�ada, eu o conheci.
E comunista.
Sim. Veja, o comunismo era a op��o de esquerda. Principalmente pela figura do Prestes, o comunismo se tornou o centro. Voc� tem que saber o que o Prestes representou no fim da d�cada de 20 no Brasil. Era o Cavaleiro da Esperan�a. O filho do J�lio de Mesquita [Filho, que dirigiu "O Estado de S. Paulo" de 1927 a 69] chamou-se Luiz Carlos por causa do Prestes. Era quase uma figura m�tica. E de fato, se voc� olhar a Coluna Prestes, foi uma coisa extraordin�ria. E n�o s� pelo feito militar, embora esse seja importante, porque todas as for�as desencadeadas contra ele n�o conseguiram nada. Ele andou por tr�s anos no Brasil.
Prestes foi importante para o sr. tamb�m?
Foi, para mim e para todo mundo. Foi o mesmo processo de mitifica��o de Fidel [Castro], at� em linhas mais puras. Porque era um homem de comportamento absolutamente �tico, pelo menos como era visto ent�o. Depois h� muita coisa discut�vel, mas isso j� com Prestes dentro do partido. Ele representava uma limpeza �tica do tipo que a Lava Jato representa hoje. O movimento tenentista queria uma reden��o do Brasil em termos que as cliques dominantes n�o permitiam. O Prestes foi o cara que surgiu como a express�o disso. E de fato ele era um homem de car�ter ilibado. Como todo ser humano, teve grandes feitos e teve erros tamb�m.
O sr. o conheceu?
N�o s� conheci como participei. Eu era militante. N�o s� no campo espec�fico [cultural], ali�s, muito pelo contr�rio. N�o vou te contar todas as hist�rias porque se n�o voc� n�o me entrevista de novo.
Conta uma.
N�o, mas o que eu posso te dizer � que at� a grupo de choque eu pertenci.
O que � grupo de choque?
Por exemplo, quando houve o com�cio Prestes, eu n�o estava no com�cio. Estava guardando a r�dio Cruzeiro do Sul.
Para evitar que...
Fosse atacada. Mas o partid�o j� naquela �poca procurava uma frente. Foi a pr�pria possibilidade de �xito pol�tico [nas elei��es] que levou o governo Dutra a jog�-lo de novo na ilegalidade. O Partido Comunista reunia gente como [o escritor] Graciliano Ramos. Se voc� pegar a fina flor da intelectualidade brasileira, vai encontrar um n�mero assombroso de pessoas que se declaravam comunistas ou simpatizantes.
Mas uma marca da Perspectiva � n�o ser uma editora ideol�gica.
N�o �.
O sr. teve uma primeira editora j� em 1947, a Rampa. Como foi seu desenvolvimento como editor?
No final dos anos 1940, eu era um homem com muitas ideias pol�ticas, muita milit�ncia, mas n�o estava, como no livro do G�rki, "ganhando o meu p�o". Tinha abandonado os estudos, n�o tinha me definido profissionalmente em nada e n�o me interessava. � verdade que eu tinha um pai que me sustentava. Todos n�s, grandes militantes, temos um pai que sustenta. [risos] Eu n�o sabia para onde ir, mas era rato de livraria. Uma das que eu frequentava era a Brasiliense, na avenida S�o Jo�o. Pegado tinha o cinema Ritz e do outro lado tinha uma livraria chamada Rocha, onde trabalhava um rapaz aparentado com [o escritor] Monteiro Lobato, Edgar Ortiz Monteiro. O Edgar era o meu papo de balc�o de livraria. E num desses papos surgiu a ideia. Como ambos n�o t�nhamos onde cair mortos, come�amos uma editora. [risos]
Ele tinha um primo chamado Carlos, que tinha sido ordenado padre, mas se antecipou � teologia dos pobres e se tornou comunista. Era um homem que sabia latim, grego, alem�o, franc�s, portugu�s nem se diz, ent�o tamb�m n�o tinha onde cair morto. [risos] Nos juntamos os tr�s e fundamos a Rampa. Era uma editora de car�ter geral, mas come�ou com um programa espec�fico. Como tinha havido o Holocausto e as coisas do juda�smo, principalmente do juda�smo laico, eram desconhecidas no Brasil, come�amos por a�. Mas o nosso programa sempre foi ser uma editora geral. Tanto que entre os nossos amigos, que frequentavam e �s vezes dormiam l�, estava o romancista nordestino Paulo Dantas, um antecessor da virada do romance nordestino para o lado m�stico. Tamb�m o [gravador] Walter Levy. Outro era o [Yoshiya] Takaoka, o pintor. Esse era o grupo.
Bastante heterog�neo.
Muito. O Carlos Ortiz tinha sido suspenso de ordens e houve um concurso na Folha, para cr�tico de cinema. Ele ganhou e foi um dos promotores do movimento do cinema brasileiro, um dos caras que trouxeram o [cineasta Alberto] Cavalcanti para c�.
Mas a Rampa n�o durou muito.
At� 1950, 51. A�, como conv�m �s boas sociedades, os s�cios brigaram [risos] e eu acabei vendendo livro de porta em porta e nas cal�adas. Outra parte foi vendida pelo Polano. Era um cara que pegava os saldos de livro e vendia no viaduto do Ch�, na pra�a do Patriarca. N�s tivemos companheiros ilustres. A Ip� foi uma editora paulista de grande porte, que editou todo o Pirandello logo depois da guerra, e acabou como n�s.
Vendendo livro na rua.
De gente important�ssima. Acho que s� a Companhia das Letras ou outra tem hoje esse porte, tal era a import�ncia dela. E n�s acabamos como vizinhos na cal�ada, o que me honrou muito, naturalmente. Tamb�m fui ao Rio vender livro de porta em porta, para saldar as contas. N�o vou entrar em quem estava com a raz�o, porque cada um tem as suas. Foi isso. A Rampa era uma editora que pretendia editar o romance brasileiro, o Dantas e outros que apareciam l�. Infelizmente, s� editamos quatro livros.
Como nasce a primeira editora Perspectiva?
Nasce de um amigo meu de juventude, que estava muito bem de vida e ent�o resolvemos fazer uma editorazinha. Eu trabalhava j�, naquela �poca, na "Brasil-Israel", que � uma revista da irm� do [jornalista] Samuel Wainer.
Nascido na Bessar�bia.
Exato. Ali�s, cuja nacionalidade foi restitu�da pelo [pol�tico, jornalista e editor] Carlos Lacerda numa campanha memor�vel, que vai entrar para os fastos da nacionalidade. [risos] O Samuel era um grande jornalista. Agora, como todo grande jornalista, era um grande sem-vergonha tamb�m. [risos] Depois dessa Perspectiva inicial, trabalhei dez anos na Difus�o Europeia do Livro [Difel] e, quando sa�, n�o pensava em continuar na vida editorial, que sempre me interessou relativamente. Meu interesse maior era jornalismo etc. Mas a� alguns amigos se encarregaram de me convencer de que n�o havia jeito, ent�o voltei, com o nome Perspectiva.
De onde vem o nome?
Como sou casado com uma matem�tica [Gita], eu fiquei na geometria, na geometria projetiva. Foi por essa raz�o, simplesmente. N�s tivemos apoio de muita gente boa. Quer dizer, apoio intelectual, porque na hora de [investir] voc� transpira sozinho.
Como o sr. v� o papel de um editor?
Olha, � extremamente vari�vel. Voc� tem uma gama de editores, todos igualmente v�lidos. Tem o que est� interessado culturalmente, hoje normalmente � um editor acad�mico, se ligou muito �s universidades. Tem o editor grande empres�rio, cujo interesse no livro, por cultural que seja, � como mercadoria. Antes as duas fun��es estavam mais misturadas, basta ver dois exemplos, um � o Lobato na Brasiliense, o outro � Martins Fontes. A livraria Martins teve um papel importante em S�o Paulo. Eu venho de uma fam�lia de comerciantes, ent�o sei com o que estou lidando. Mas o meu interesse e do grupo que estava comigo n�o era esse. Quando comecei a Perspectiva, j� tinha uma certa idade para n�o ser escravo dos modismos.
Como � o lado empresarial da Perspectiva?
� bastante rudimentar. N�o digo que inexiste; ali�s, ele tem melhorado bastante depois que eu passei a estar aqui honorificamente. [risos] A minha esposa, a Gita, mais o meu sobrinho, o Sergio [Cohn], est�o trabalhando com o dia-a-dia. E n�s temos uma equipe de gente pr�xima, muitos dos quais come�aram como eu, n�o sabendo nada de editora, e depois foram se desenvolvendo. �s vezes um editor entra no trabalho porque est� precisando ganhar a vida e vai se apaixonando pelo que faz.
Foi o que aconteceu com o sr.?
Eu n�o sei se � paix�o ou v�cio, no meu caso. [risos]
E vai para 70 anos.
Bom, eu fiz intermitentemente, mas tinha outros interesses tamb�m, como o per�odo que passei colaborando no "Estad�o" e outros jornais. Sempre tive interesse em escrever. O que voc� tem a� [aponta o livro "Boca de Cena"] s�o as migalhazinhas que a gente vai deixando no curso da vida.
O sr. fez doutorado com [o cr�tico e professor] Antonio Candido como orientador?
Foi o pecado da vida dele. [risos]
Qual � a influ�ncia?
Eu tenho duas admira��es. Uma chama-se Antonio Candido, e a outra, Haroldo de Campos [poeta, cr�tico e professor]. Como eles combinam, n�o me pergunte. Ali�s, eles combinam em muita coisa. Haroldo foi orientando de Candido. Depois eles discordaram, e sempre tem mulher no meio. [risos] Antonio Candido � uma grande voz. Eu reverencio o trabalho dele, acho important�ssimo. Agora, n�o existe trabalho que n�o mere�a debate cr�tico. Se n�o merecer debate, n�o presta. Ent�o, h� aspectos no sociologismo de Candido que podem ser discutidos. Como h� aspectos no estruturalismo de Haroldo que podem ser discutidos. At� que ponto a sociologia influi num, e a est�tica influi noutro? Os dois tentaram resolver o problema, eles sabem perfeitamente disso.
[pausa] A vida, ao mesmo tempo em que � grande mestra, � muito madrasta. A gente vai perdendo uma por��o de coisas. A minha gera��o se foi. O meu di�logo atualmente � com pouqu�ssimas pessoas. � outra gera��o. Algumas das vis�es que ela tem s�o ligadas �quilo que a gente pretendia, outras j� ultrapassam. Por exemplo, no teatro: querer levar o teatro exclusivamente para o campo perform�tico � estupidez. O teatro � uma integridade, que vai desde a trag�dia grega at� a performance.
Uma caracter�stica dos seus ensaios sobre teatro � que o sr. sempre valorizou espet�culo, n�o s� texto. O sr. � menos textoc�ntrico do que [os cr�ticos e professores] S�bato Magaldi ou D�cio de Almeida Prado?
Perfeitamente, perfeitamente. O teatro s� se completa quando o ator diz "Ah". Antes, n�o est� completo. Pode estar completa a literatura dram�tica, que para mim tem valores pr�prios. Mas sua potencialidade e a realiza��o final s�o no palco. No teatro escrito voc� tem o recurso da imagina��o, mas a imagina��o incorpora apenas em termos muito dilu�dos. Teatro � corpo a corpo. O fen�meno teatral n�o se d� na minha leitura. J� o teatro perform�tico leva para a outra ponta, quer expulsar a literatura dram�tica.
Esse pensamento se reflete, por exemplo, na "Hist�ria do Teatro Brasileiro" [Perspectiva, 2012/13], que o sr. coordenou junto com [o cr�tico e professor] Jo�o Roberto Faria. � uma hist�ria a partir do espet�culo.
Sim. Toda hist�ria do teatro brasileiro, at� determinado momento, era escrita a partir da dramaturgia. Os valores consagrados eram os da palavra literariamente estruturada. Por�m estava reduzida ao leitor. Ora, o teatro n�o se faz no leitor. A meu ver, existe um ponto de partida teatral na leitura, desde que o leitor fa�a proje��es imaginativas. Mas o teatro, como eu disse, s� se realiza quando o ator diz "Ah".
O sr. nunca escreveu, dirigiu ou atuou pe�as teatrais?
N�o, eu ca� no teatro por acaso. Vi desde muito jovem, mas isso todos n�s, classe m�dia, vagabundo quando jovem, faz�amos. Sempre tive uma certa proximidade, mas n�o me sentia destinado a interpretar pap�is. A partir de certo momento, comecei a escrever sobre determinadas coisas e alguns dos meus amigos houveram por bem achar que eu era cr�tico. Entre os quais esse mo�o aqui [aponta foto]. Esse � o Anatol.
Como o sr. conheceu [o cr�tico e professor] Anatol Rosenfeld?
Foi em 1953, por a�. O Anatol era jornalista da "Cr�nica Israelita". Eu lidava desde certa �poca com �diche, fui fazer uma palestra sobre a l�ngua e o Anatol apareceu para dar uma not�cia na "Cr�nica", que era da Congrega��o Israelita Paulista, alem�. Onde tem dois judeus tem tr�s partidos. [risos] Os refugiados da Alemanha fundaram a congrega��o, que tem um rito liberal. Ela se aproxima das formas rituais protestantes. A forma ortodoxa n�o tem esses coros, embora no templo existisse o coro dos levitas. Bom, � uma mix�rdia dos diabos. [risos]
Eu o convidei para jantar. Morava nesta casa e o recebi aqui, deste lado tinha uma mesa [aponta]. E come�amos a conversar. Era um homem extraordin�rio. N�o s� do ponto de vista de conhecimento como da viv�ncia. Ele veio para c� como imigrante ilegal e foi trabalhar no campo. Foi colono, depois caixeiro viajante, viajou pelo Mato Grosso. Anatol estava preparando o doutorado na Alemanha quando teve que sair, porque na Olimp�ada de Berlim um turista perguntou uma coisa e ele respondeu em franc�s. Tinha um policial perto, que o prendeu, e ele foi citado em ju�zo. Ele sabia que, se fosse a julgamento, iria para campo de concentra��o, ent�o foi embora. Era um cara que conhecia latim, grego, franc�s etc. E al�m disso gostava de cacha�a. E apreciava particularmente as mulatas. [risos]
Foi ele que aproximou o sr. do teatro?
N�o, antes eu j� tinha traduzido "O Dibuk" [Perspectiva, 1952]. A pe�a do An-Ski � uma obra-prima do teatro �diche. Ele foi um dos dirigentes do Partido Socialista Revolucion�rio da R�ssia, metido no movimento anterior � Primeira Guerra. Quando estourou a revolu��o, foi deputado; quando os bolcheviques assumiram, teve que fugir. Mas antes disso era um interessado em etnografia e folclore. Pouco antes da guerra, fez uma expedi��o �s regi�es mais habitadas pelos judeus na Europa Oriental e colheu elementos da cultura popular, entre os quais as hist�rias que formam "O Dibuk".
O que tamb�m me aproximou do teatro foi que eu escrevia sobre letras judaicas no "Suplemento Liter�rio", do "Estad�o", e fiz ali uma s�rie sobre o Habima, um teatro judaico fundado na R�ssia, que ainda existe em Israel, ligado naturalmente a Stanisl�vski, Meyerhold. Os artigos chamaram a aten��o, principalmente do S�bato. Quando o D�cio brigou com o Alfredo Mesquita por causa da Escola de Arte Dram�tica, porque Alfredo [diretor da EAD] n�o queria incorpor�-la � universidade, a cadeira de cr�tica teatral ficou vaga. Anatol, amigo de Alfredo, e S�bato, de quem eu me tornara amigo, me indicaram como professor, a� eu comecei. Foi um desafio. Eu era um espectador j� mais velho, tendo assistido a uma por��o de coisas na Fran�a, Ionesco no Th�atre de la Huchette, o G�rard Philipe, todo esse pessoal, mas n�o era um especialista. Como n�o sou at� hoje.
O sr. escreveu um texto muito citado, de refer�ncia, sobre Cacilda [Becker, atriz e professora da EAD], sobre interpreta��o.
Sim, eu e a Maria Thereza [Vargas, pesquisadora]. Eu fiquei na EAD por causa da Maria Thereza, porque o Alfredo, do alto dos seus quatrocent�es, olhava, principalmente para mim, com um olhar bastante cr�tico. E eu n�o estava pensando em ser professor nem tampouco em me ligar definitivamente. Meu campo era a literatura, onde eu j� tinha escrito sobre Graciliano [Ramos], a figura que mais me tocou na �poca, sobre Jorge [Amado], Rachel de Queiroz, esse pessoal todo. N�o era, portanto, o teatro. Mas eu comecei a dar aula e, com essa liga��o, o que eu n�o sabia os alunos sabiam. Foi uma troca.
O sr. comentou que muitos dos seus interlocutores morreram, Anatol, S�bato, o pr�prio D�cio.
Sem d�vida, mas a minha maior interlocu��o n�o foi com eles. Foi com os meus alunos.
Lembre de alguns.
Tem muitos. Tem T� [Antonio Ara�jo, diretor], Cibele [Forjaz, diretora], a Maria Tha�s [diretora]. Tem v�rios antes. Tem o Possi [Jos� Possi Neto, diretor]. Ele saiu do jornalismo e foi para o teatro numa aula minha, no primeiro curso que dei, quando fui chamado pelo departamento de teatro [da Escola de Comunica��o e Artes]. Possi era um n�mero, atrevido como ele s�.
Como � o di�logo, por exemplo, com Antonio Ara�jo? Voc� discordam?
�s vezes, mas na minha abordagem eu tento n�o fazer imposi��o de ideias. E o T� � um cr�tico muito fino. Ele � t�o bom na cr�tica quanto � na dire��o. E algumas preconcep��es, por exemplo, a utopia do processo colaborativo... Ele mesmo acabou achando que, afinal, a dire��o faz alguma coisa. [risos]
E Jo�o Roberto Faria, que tem sido seu parceiro em muitas publica��es, como "O Naturalismo"?
Muitas. Eu comecei com o Jo�o Roberto na posi��o de examinador chato, no mestrado dele. At� o D�cio [orientador de Faria] n�o gostou nada da minha exposi��o. [risos] Mas o Jo�o Roberto � um pesquisador de primeira qualidade e um homem do maior valor �tico, e � isso o que importa. Eu n�o levo em conta as eventuais ideias contr�rias �s minhas, mas a qualidade da pessoa. Ele pode at� discordar de mim, mas a� � uma outra coisa. N�s discutimos bastante.
Eu tinha um grupo de estudos de p�s-orientandos, do qual faziam parte o T�, a Maria Tha�s. N�s nos reun�amos em casa e discut�amos n�o s� teses, mas as ideias teatrais no plano geral. Foi uma coisa boa, porque evidentemente o fato de eu ser orientador n�o significa que eu tenha solu��o para todas as quest�es nem sequer para algumas. N�o tenho. O que tenho s�o as minhas ideias. S�o minhas? N�o, eu as colhi na literatura, no contato, roubei de outras pessoas. N�o existem ideias pr�prias, existem formula��es e palavras. Voc� acha que Plat�o foi s� ele, fant�stico que seja? N�o, ele roubou dos sofistas. Esse � o com�rcio das ideias.
O sr. n�o orienta mais?
Larguei a bota. A M�riam [Rinaldi, atriz] foi minha �ltima orientanda, no ano passado. Veja, estou aposentado h� muito tempo. Por raz�es f�sicas, estou quase impossibilitado de assistir a espet�culos constantes. Atualmente s� posso orientar, digamos, num plano mais retroagido. E n�o acho certo. Agora, eu tive 30 orientandos, a [cr�tica e professor] Silvia Fernandes, a Ingrid [Koudela, cr�tica e professora], com quem trabalho ainda hoje.
Sobre a editora, o sr. est� preparando algu�m?
Um sucessor? Para o meu sucessor, a primeira coisa que eu diria �: "O diabo que te carregue". [risos] N�o, j� est� havendo... Primeiro, a minha atividade se reduziu. A Gita assumiu. Ela foi professora da f�sica, assistente do [f�sico Mario] Schenberg, agora est� aqui. Ela tem temperamento muito mais executivo do que o meu. E tem o Sergio [Kon], que est� entrando.
E � um of�cio, n�o �? Que se transmite.
� um of�cio que exige grande especializa��o. Agora, tem o perigo de ser demasiado of�cio para quem o exerce, porque o cara perde a no��o da perspectiva cultural. A Perspectiva n�o � nem poderia ser editora de best-seller. N�s n�o editamos grandes romances n�o foi por... Eu n�o editei "O Nome da Rosa". Estava na minha m�o, mas eu n�o tinha dinheiro. Foi uma grande falha minha, como editor. Todo mundo me joga isso na cara. Eu acho Eco um romancista relativo. Os tipos dele s�o fixos, n�o t�m an�lise psicol�gica mais profunda. Mas isso n�o � dor de cotovelo transformada em cr�tica. [risos]
Qual � a perspectiva para o mercado editorial brasileiro, hoje?
Tivemos v�rios fen�menos. Primeiro, os meios eletr�nicos introduziram uma novidade. A pequena livraria n�o est� despojada de seu papel, mas ele se reduziu bastante. N�s nunca tivemos uma corrente efetiva de livrarias. N�o existia essa coisa, por exemplo, da Fran�a, em que a [editora] Gallimard vende para os livreiros, n�o p�e em consigna��o. Nunca tivemos isso. Agora a venda por internet reduziu o poder de fogo das pequenas livrarias, tornando as grandes os principais clientes das editoras. E as grandes livrarias sofreram com duas coisas: a redu��o do poder de compra, decorrente da crise econ�mica; e uma parte delas come�ou a vender tamb�m por via eletr�nica, por�m sem todo o "know how" da Amazon. As pequenas editoras se tornaram ref�ns dos grandes grupos de livrarias, que trabalham com o capital dessas editoras e, na crise, adiam pagamentos. Pagar, pagam, mas manipulam � sua vontade. A depend�ncia se tornou muito maior. Ou voc� parte para um sistema em que possa ter independ�ncia, pela rela��o direta com seu leitor, ou voc� fica preso.
Como � que o sr. se define politicamente, hoje?
Eu me defino � esquerda da esquerda da direita. Atualmente, n�o sou partid�rio de defini��es muito estritas, por causa do formalismo delas. As pr�prias palavras se desmentem.
E religiosamente?
Eu sou, infelizmente, meio ateu, gra�as a Deus. N�o sou praticante, n�o. De vez em quando guardo, por raz�es culturais, uma ou outra festividade religiosa. Pessoalmente nunca fui.
NELSON DE S�, 56, � rep�rter especial da Folha
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